178.2

Memória, Verdade e Justiça também no futebol sul-americano

Fabio Perina 2 de abril de 2024

Esse texto emerge no final de março de 2024 diante do dever da memória coletiva e histórica de vincular passado e presente por conta dos temas tão imprescindíveis sobre a (des) comemoração dos golpes militares de 31 de março de 64 no Brasil e 24 de março de 76 na Argentina. Assim como no Chile uma importância análoga com o 11 de setembro de 73 com impacto imediato no Estadio Nacional como centro de detenção e tortura, tema que já tratei em texto anterior.1 Dessa forma, a relevância do estudo das 3 ditaduras em Brasil, Argentina e Chile se justifica pelos imensos impactos na política e sociedade nas décadas seguintes nesses 3 principais países sul-americanos. E sobretudo para o interesse desse texto meramente exploratório e panorâmico os impactos atuais no futebol como espaço fértil de memória. Assim como as ditaduras análogas em outros países como Uruguai, Paraguai e Bolívia certamente também poderiam ser estudados pelos impactos no futebol, embora aqui irei dispensar essa tarefa pela limitação de fontes de pesquisa. Assim como a limitação de não aprofundar cada tema, mas mencionar alguns links de rápida leitura que guiem melhor cada percurso.

Publicação do River Plate em suas redes socias, no dia 24 de Março de 2023 em homenagens as vítimas da ditadura militar da Argentina.

Como brevíssima retrospectiva geral, somente no início dos anos 80 que os movimentos populares finalmente se aproveitaram do declínio das 3 ditaduras para “ganar la calle” e lutar por acelerar a volta da democracia. Processo que ocorreu em diferentes ritmos e em diferentes perfis ao longo da década. Primeiro na Argentina com as imensas vitórias de em pouco tempo (e outras de lá para cá, apesar de recuos) levar os torturadores militares e colaboradores a julgamento, fazendo a palavra-de-ordem do presidente Alfonsin que ecoa até hoje em cada etapa dessa luta: “Nunca más”. Assim como contava com um imenso respaldo social de organizações surgidas na ditadura e duradouras até hoje como as mães e avós da Plaza de Mayo em seus inconfundíveis “pañuelos” brancos. Depois no Brasil a imensa vitória da Constituição Cidadã de 88, embora parcial pela demora na eleição direta através de uma transição pactada. E por fim no Chile, ainda mais tardio e ainda mais pactado.

Já ao longo dos anos 2000 ocorreram importantes processos dignos de registro através de governos considerados progressistas de Kirchner, Lula e Bachelet e vínculos mais próximos com movimentos populares de esquerda e direitos humanos. Vide na Argentina e Chile os avanços institucionais de importantes centros de memória nas capitais Buenos Aires e Santiago, mas também um permanente ativismo dos movimentos populares demonstrando autonomia aos governos ao cobrarem também sobre casos de violência estatal ocorridos em regime democrático mostrando seus limites. Daí em ambos casos o importante surgimento da palavra-de-ordem “ni perdon ni olvido” pelas ruas em faixas e pichações e mais recente no ativismo digital nas redes. Enquanto no Brasil um imenso avanço (embora ainda longe do necessário) ocorreu com a Comissão Nacional da Verdade em intenso trabalho de memória (embora não de justiça como nos casos anteriores) no governo seguinte de Dilma (com o imenso simbolismo de ser ela própria uma ex-torturada).

De lá para cá, uma breve menção aos anos de 2018 e 2019 com alguns fatos que seguem ecoando até os dias atuais e com repercussões no futebol ou ligados a temas intrínsecos a ele: No Brasil, em março de 2018 o assassinato de Marielle Franco e seu longo arquivamento; e logo no início de 2019, infelizmente a coincidência das tragédias do incêndio dos jogadores da base do Flamengo no Ninho do Urubu e a destruição de Brumadinho-MG pelo rompimento de barragens levando à morte de dezenas de trabalhadores da Vale e moradores da cidade. Porém felizmente nos últimos dias surgiram novos esforços pela permanente luta por memória, verdade e justiça através de um documentário2 e uma partida beneficente com o ex-jogador Reinaldo3 de mostrar que em ambos casos o suposto “acidente” possui responsáveis nítidos entre dirigentes e empresários e que com uma anistia ou um esquecimento nada impedirá novos abusos de poder. Na Argentina ocorreu o cenário mais diluído ao longo de meses e mais plural quanto a pautas com fortes afinidades entre si: contra a ditadura e a favor de direitos humanos como habitual e alguns fatos novos de ativismo de sócios dentro dos clubes a favor da manutenção do modelo associativo (em repúdio à importação do modelo empresarial chileno) e grandes mobilizações feministas pelo direito ao aborto (com os conhecidos “pañuelos” verdes). Enquanto no Chile no final daquele ano houve o famoso “estallido social” com  e uma ampla defesa de direitos sociais através mudanças no sistema político visando revogar a Constituição de Pinochet, vide uma conhecida palavra-de-ordem, dentre tantas mais em destaque: “não é por 30 centavos mas contra 30 anos de neoliberalismo”. Sob impactos específicos no futebol vale mencionar vários elementos como a trégua entre as barras rivais (recuperando mesmo que provisoriamente sua consciência de classe) e a intensa repercussão de um torcedor do Colo-Colo morto por policiais na saída do estádio.4

Como balanço final diante dos dias atuais, sugiro diante deste curto ensaio evitar hierarquizar se pautas e movimentos de dentro ou fora do futebol ou não e se seriam mais urgentes que outras pautas e movimentos ou não, mas destacar a importância da atitude permanente por memória, verdade e justiça por nos ser cobrado diariamente através de novos elementos, como se já não bastassem os elementos históricos ainda pendentes. No Brasil, o tema de futebol e política parece bem menos aquecido do que foi nos últimos anos na agenda da militância torcedora em comparação a jornadas populares de Argentina e Chile conforme citado que ainda ecoam. Na política brasileira mais geral ecoam agendas cruzadas. Embora o governo Lula com suas contradições inerentes busque separá-las e apaziguá-las, sendo um dever dos movimentos de esquerda e direitos humanos seguir lutando para vinculá-las nas ruas, como foi no último dia 23:5 a inconclusão do caso Marielle e sobretudo a possível anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023 remete à anistia ainda vigente aos golpistas de 64. Um atrito no qual os movimentos se sentiram abandonados e até traídos pela liderança (quem contradiz até sua própria biografia de ter sido um preso político da ditadura e quase morto por ela) ao recusar a construção de um espaço de memória e declarar ser preciso apenas olhar para frente sem remoer o passado… Na Argentina, além de protestos semanais por temas atuais como a conjuntura econômica, também vinculando passado e presente, sócios e hinchas novamente se juntaram nas ruas a uma imensa e ampla frente de militantes organizados ou meramente cidadãos não-organizados diante da luta contra o autoritarismo do atual governo Milei e sua apologia à ditadura de 76.6 Já no futebol, outro tema que “arde” na conjuntura são os casos de (ex) jogadores estupradores: lá a imediata prisão e início de julgamento de 4 jogadores do Velez acusados de um estupro em plena concentração do time em um hotel em Tucumán7 e aqui a imensa repercussão das sentenças judiciais de Robinho e Daniel Alves com (aparente) desfecho. O que prontamente mobilizou um fértil debate indireto sobre ações de clubes, respectivamente Santos para um e Bahia e Barcelona para outro, se os manteriam ou não no memorial de ídolos. Assim como uma fértil cobrança direta para que a CBF e a seleção brasileira concentrando e treinando na Europa para amistosos se posicionasse e deixasse sua tradicional neutralidade.

Marielle
Estátua da ex-vereadora Marielle Franco é inaugurada no Buraco do Lume. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Por fim, passado o tempo do combate nas trevas,recorro a uma metáfora futeboleira que vários desses e outros casos sobre memória, verdade e justiça possuem em comum serem lutas permanentes em “cancha ajena”. Ou seja, exigem uma postura ética “desde baixo” de constranger torturadores e estupradores até vencer as “trampas” da política e judiciário “desde cima” cuja inércia tende a anistiá-los (ou sequer denunciá-los) se não forem elas próprias também constrangidas. Para não perder o costume de inserir ironia nos meus textos, apesar do conservadorismo popular sustentar os clichês do Brasil ser o “país da impunidade” embora seu futebol o tornar “país da alegria”, fica toda a solidariedade aos lutadores sociais para que aqui não seja o “país da anistia” para essas demandas e outras que virão.

Notas

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Memória, Verdade e Justiça também no futebol sul-americano. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 2, 2024.
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