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O futebol e o olho eletrônico: reflexões sobre a lesão de Sanchéz em lance com Marcelo

O primeiro jogo entre Fluminense e Argentinos Juniors, pelas oitavas de final da Copa Libertadores da América, ficou marcado por um episódio doloroso, que gerou intensas discussões. Após se desvencilhar de outros dois adversários, o lateral esquerdo Marcelo avança com a bola dominada, e passa também pelo terceiro, que fica no chão. Mas logo freia, interrompe a jogada, e toca a bola para lateral, pedindo pelo atendimento médico ao adversário. Ao olhar para a perna do argentino no chão, o jogador brasileiro entra em desespero. O replay, em close e slow-motion, exibe aquilo que, em velocidade normal, e no plano aberto, até então ninguém havia sido capaz de perceber. A imagem é assustadora. Ao efetuar o último drible, Marcelo acaba pisando na perna do zagueiro Luciano Sanchez, que se dobra de uma maneira nada natural. Enquanto o jogador argentino está no chão, sendo avaliado pela equipe médica, Marcelo vaga pelo campo, chorando inconsolável. Chamado pelo árbitro de vídeo para revisar o lance, o juiz chileno Piero Maza, que em um primeiro momento sequer havia marcado falta, decide pela expulsão do brasileiro.

O episódio se tornou pauta de discussões nos mais diferentes jornais esportivos, redes sociais, grupos de Whatsapp e afins, praticamente monopolizando as análises em torno do jogo. O médico do Argentino Juniors comentou que, em mais de vinte anos de profissão, nunca viu uma lesão deste tipo. Comentaristas em programas esportivos, e o streamer Casimiro foram na mesma direção. O espanto e a comoção foram generalizados. Porém, o lance também gerou controvérsias. Em debate, duas questões: Houve ou não intencionalidade na ação do jogador? Em não havendo, como parece ser o caso, o cartão vermelho foi ou não justo? 

Marcelo Fluminense
Foto: Marcelo Gonçalves/ Fluminense FC/fotos Públicas

Durante a entrevista após o jogo, o técnico do Fluminense e da Seleção Brasileira, Fernando Diniz, demonstrou contrariedade com a decisão do árbitro: 

Vou fazer uma metáfora. Para mim, é a mesma coisa que quando tem alguém trafegando na avenida, a pessoa atravessa o sinal verde, e a culpa é do motorista. O Marcelo estava driblando e não tinha onde colocar o pé. Todo mundo está triste pelo o que aconteceu com o jogador. Isso é uma coisa. A segunda coisa é que a expulsão foi absolutamente equivocada. (…) Não tem como aceitar a expulsão do Marcelo (LIMA, 2023, GE)

No mesmo sentido, Felipe Melo, um dos mais experientes do elenco tricolor, também criticou a expulsão. A diretoria do clube concorda com a visão de seus funcionários e entrará com um pedido de anulação da punição de Marcelo. O precedente para a anulação viria de uma partida entre Boca Juniors e Cruzeiro, pelas quartas de final da Libertadores de 2018. Na ocasião, o zagueiro Dedé, ao subir para cabecear, acerta de modo involuntário uma forte cabeçada no goleiro Andrada. Ao ver que a boca do goleiro sangrava, o árbitro revisa o lance, com a ajuda do VAR, e decide pela expulsão do jogador brasileiro. Dias depois, a comissão de arbitragem acata um pedido do Cruzeiro, e libera o zagueiro brasileiro para jogar a partida de volta, no Mineirão. No entanto, no caso atual, o questionamento à decisão do árbitro está longe de ser unânime.

Entre os defensores da absolvição de Marcelo, o argumento gira em torno da falta de intencionalidade, que teria como avalizador a boa índole do jogador, e mesmo a reação dele depois do ocorrido. Para estes, o jogador teria sido punido não por sua ação, mas sim pela consequência inesperada (e imprevisível) da mesma. A contusão teria sido um acidente de trabalho, uma triste fatalidade. Já entre os que concordam com a decisão do árbitro, há desde aqueles que alegam no mínimo uma ação temerária do jogador (questionando até que ponto podemos falar em fatalidade), até aqueles que, mesmo não vendo maldade, alegam que a consequência em si já tornaria imoral o questionamento à punição.

Foto publicada nas redes sociais de Marcelo, na intenção de pedir desculpas publicamente a Luciano.
Foto publicada nas redes sociais de Marcelo, na intenção de pedir desculpas publicamente a Luciano. Fonte: @marcelotwelve/Instagram

Alguns comentários no twitter são ilustrativos desses argumentos. Um torcedor do Fluminense comenta “Como disse Rizek e Diniz, o lance não era pra expulsão. Segundo Salvio Spinola, analista de arbitragem, a regra ‘não pune pelo resultado, pune pela ação do jogador’. Entendo a expulsão pelo choque do árbitro e do VAR ao ver a gravidade da lesão” (@DuendeFCC, 2023). Já outro perfil, mesmo sem concordar com a expulsão, critica o treinador tricolor: “Eu concordo que não deveria expulsar. Mas é muita falta de empatia falar disso hoje, nesse tom, numa coletiva pós-jogo. Melhor dizer que não vai comentar porque num momento desse o que importa é a saúde do atleta, companheiro de profissão, que pode ter a carreira encerrada” (@leitaoleslie, 2023). Já para o jornalista Mauro Cézar Pereira “Marcelo quebrou a perna de Luciano Sánchez, do Argentino Juniors. Foi sem maldade? Sim. Triste. Mas era lance para expulsão. E diante de um colega que sai na maca e vai parar por longo tempo, outros jogadores estão preocupados em reclamar da expulsão justa. Que bosta, não?” (@maurocezar, 2023)

Fato é que o próprio Marcelo, que há poucos dias havia sido destaque na mídia e nas redes sociais, por sorrir, com ar debochado, após aplicar um drible desconcertante em um adversário (algo que só foi possível notar com os modernos recursos do olho eletrônico), agora é punido, e até criticado, por um lance que, dentro da dinâmica normal do jogo, a arbitragem sequer havia interpretado como falta, mas que exibido em corte, e em slow motion, não poderia passar impune.

Mais do que entrar na polêmica sobre a se a expulsão foi ou não correta, nos interessa utilizar o lance para pensar sobre como a imagem televisiva molda nosso olhar sobre o jogo. Para isso, resgatamos a discussão presente no artigo “Sobre meus lábios: visibilidade e controle no futebol contemporâneo”, publicado na revista Pensar a Prática, em 2007. 

O artigo parte da análise da repercussão midiática de dois episódios, à primeira vista, com algumas similaridades. Uma briga generalizada entre jogadores do Brasil e Uruguai, nos anos 1950, e a famosa cabeçada de Zinedine Zidane em Materazzi, na final da Copa do Mundo de 2006. Enquanto a primeira foi comemorada pela imprensa da época, como prova de valentia e brio dos jogadores brasileiros, o segundo lance foi unanimemente reprovado pela imprensa em seu tempo. Essa mudança no trato com a violência, e com outros lances que fogem ao esperado em um jogo de futebol, seria consequência direta da transformação do futebol em um espetáculo televisivo. 

Inspirado pelas reflexões foucaultianas sobre o panóptico, o autor busca refletir sobre como o aperfeiçoamento das transmissões televisivas, com suas múltiplas câmaras e recursos tecnológicos, transformam o estádio num enorme estúdio televisivo. Um espaço de controle total, onde emerge uma nova moral, que altera não apenas a sensibilidade de nós torcedores, mas a própria dinâmica da partida: “passamos a ler lábios, e a exigir dos atletas e técnicos mais cuidados com as palavras. (…)  Uma nova moral, assim como novos mecanismos de controle, emerge da visibilidade proporcionada pela televisão” (p.129). 16 anos da publicação do artigo, o advento do VAR, entre outros novos recursos de imagem, tornam essa afirmação ainda atual. 

Para além de lances violentos, podemos pensar em outros episódios, outrora exaltados como geniais passes de mágica, ou exemplos de “malandragem”, como o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra na Copa de 1986, o gol da pedra de gelo, do folclórico atacante Dé Aranha, ou o passo à frente de Nilton Santos para evitar a marcação do pênalti, no jogo contra a Espanha, na Copa de 1962… Desmascarados pelo olhar eletrônico, que tudo vê, como esses lances seriam hoje interpretados pela mídia e pelos torcedores? Nelson Rodrigues, tão avesso à objetividade, já refletia sobre essa diferença de percepção dos eventos, durante a Copa de 1962: 

E o patético é que, quinta-feira, o vídeo-tape de Brasil x Inglaterra nos dera uma versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: – o delírio dos locutores [do rádio] e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: – a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo que o vídeo-tape é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético. Disseram os locutores que o Brasil  fizera, contra a Inglaterra, uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo, altamente veraz. O vídeo-tape demonstrou o contrário. Azar da imagem (RODRIGUES, 1993, p. 90).

Por fim, deixamos aqui a indicação de leitura do artigo “Sobre meus lábios: visibilidade e controle no futebol contemporâneo”, de Renato Saldanha, escrito em 2007 e publicado na revista Pensar a Prática, que ainda hoje pode suscitar boas reflexões.

Referências

DUENDE, do FLU. Marcelo não teve nenhuma culpa. Como disse Rizek e Diniz, o lance não era pra expulsão. Segundo Salvio Spinola, analista de arbitragem, a regra “não pune pelo resultado, pune pela ação do jogador”. Entendo a expulsão pelo choque do árbitro e do VAR ao ver a gravidade da lesão. 02 de agosto de 2023, @DuendeFFC. Disponível em https://twitter.com/DuendeFFC/status/1686656162337308672 Acesso em 02 de agosto de 2023

LEITÃO, Leslie. Eu concordo que não deveria expulsar. Mas é muita falta de empatia falar disso hoje, nesse tom, numa coletiva pós-jogo. Melhor dizer que não vai comentar porque num momento desse o que importa é a saúde do atleta, companheiro de profissão, que pode ter a carreira encerrada. 1 de agosto de 2023, @leitaoleslie. Disponível em: https://twitter.com/leitaoleslie/status/1686554500146798592 Acesso em: 02 de ago de 2023

LIMA, Thiago. Fernando Diniz, do Fluminense, critica expulsão de Marcelo: “Absolutamente absurda”. GE, Buenos Aires, 01 de ago de 2023. 

CEZAR, Mauro. Marcelo quebrou a perna de Luciano Sánchez, do Argentinos Juniors. Foi sem maldade? Sim. Triste. Mas era lance para expulsão. E diante de um colega que sai na maca e vai parar por longo tempo, outros jogadores estão preocupados em reclamar da expulsão justa. Que bosta, não?. 1 de agosto de 2023. Disponível em: https://twitter.com/maurocezar/status/1686517978035073024 Acesso em: 03 de ago de 2023

SALDANHA, R. M. Sobre meus lábios: visibilidade e controle no futebol contemporâneo. Pensar a Prática, 10/1: 117-132, jan./jun. 2007

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Verônica Toledo Ferreira de Carvalho

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer (EEFFTO/UFMG).Membra do grupo de pesquisa FuLiA/UFMG e do GEFFUT-PE.

Renato Saldanha

Professor da UFPE (CAV/UFPE), formando em Educação Física pela UFV, Doutor em Estudos do Lazer pela UFMG.Membro do GeFUT/UFMG (Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas) e coordenador do GEFFuT-PE (Grupo de Estudos sobre Festas, Futebol e Torcidas - Pernambuco)

Como citar

CARVALHO, Verônica Toledo Ferreira de; SALDANHA, Renato Machado. O futebol e o olho eletrônico: reflexões sobre a lesão de Sanchéz em lance com Marcelo. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 6, 2023.
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