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Mídia e direito de torcer no futebol: a Canarinhos LGBTQ+ pela democratização dos estádios

O mundo político acompanhou, nos últimos anos, a ascensão de grupos ultraconservadores em diversas democracias ocidentais. Experiências políticas que abalaram o establishment mundial, gerando repercussão planetária e elevando nomes que se diziam antissistêmicos ao poder. No campo político, são nomes que se colocam como conservadores e que possuem características da extrema-direita, cuja principal essência é o ataque à democracia (MUDDE, 2022).

Em terras brasileiras, Jair Bolsonaro é o expoente dessa direita ultrarradical, comandando o fenômeno conhecido como bolsonarismo, chegando à presidência em 2018, após diversos acontecimentos desde junho de 2013, como o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), a Lava-Jato, a prisão de Lula (PT) com atuação parcial do judiciário, a desinformação nas eleições de 2018, entre outros fatores (PINHEIRO-MACHADO, 2019). Além de ataques frequentes ao sistema democrático brasileiro, Bolsonaro e seus apoiadores fazem uso da guerra cultural para promover o nós contra eles e por como inimigo tudo aquilo que não se encaixa no ecossistema bolsonarista.

Definido um alvo, é produzido, por exemplo, o discurso de ódio contra minorias, como a perseguição a mulheres, a negros e a grupos LGBTQIAPN+. Contrário ao avanço sexual e aos direitos reprodutivos (MISKOLCI, 2018), o bolsonarismo atacou ainda mais esses grupos, seja pela ausência de políticas públicas, nas redes sociais ou até mesmo por meio da imprensa. Um cenário excludente às minorias.

No futebol, tal sequestro fez com que parte da população não se sentisse mais representada pela camisa da seleção brasileira, recusando-se a usá-la na Copa do Mundo de 2018 (REIS, 2021). Com o passar dos anos, grupos políticos reavaliaram o afastamento dos símbolos nacionais e passaram a usá-los novamente, já num contexto de enfrentamento à extrema-direita. Dentro do futebol, isso também é verificado com o Coletivo Canarinhos LGBTQ+, que surgiu em 2019 com o objetivo de lutar pelo direito da população LGBTQIAPN+ de torcer e estar presente no esporte mais popular do país, democratizando-o a grupos excluídos dentro de um ambiente historicamente heteronormativo. Faremos uma análise da atuação da Canarinhos LGBTQ+, via Instagram e site oficial da organização, para confirmar o enfrentamento à extrema-direita brasileira como forma de resistência, de autodefesa e democratização do futebol.

Canarinhos
Fonte da imagem: canarinhoslgbtq.com.br

Quando jornalistas esportivos fazem comentários políticos que desagradam uma ala de seguidores, comumente recebem como comentário algo como “você comenta futebol, não política”, “vai comentar futebol que é o que você sabe”, entre outras frases que mostram como uma parcela da população visa a despolitizar o futebol. Afinal, política e futebol se misturam? O futebol é político? Antes de iniciar qualquer debate, é interessante afirmar que futebol e política são distintos com experiências próprias histórica e socialmente construídas.

Historicamente, a política tratava apenas as relações de poder entre o Estado e os cidadãos, no entanto, está presente em todos os fenômenos sociais, mesmo que as relações com o Estado e a vida pública não estejam nítidas. Ribeiro (2020) afirma que, a partir da metade do século XX, houve uma reconfiguração do conceito de política influenciada, entre outras coisas, por movimentos sociais e culturais, como o “Maio de 68”, o feminismo, a luta contra o Apartheid. Isto é, a política deixa de ser definida como algo natural apenas entre Estado e cidadão, perde esse caráter único para uma prática socialmente construída ao longo da história. Movimentos sociais como uma união de mulheres pela igualdade salarial no Brasil, por exemplo, constitui política. Ou o trabalho do Coletivo Canarinhos LBGTQ+[1] que luta pela inclusão da população LGBTQIAPN+ no futebol.

Bandeira LGBT
Bandeira (LGTB) é hasteada na Embaixada do Reino Unido para marcar o Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A política do Estado é sim uma ordem que responde a um bem comum, mas é, em última instância, uma ordem produzida na tessitura das relações sociais de disputa de poderes. A política se exerce por meio de uma complexa rede de micropoderes, integrados ou não ao Estado (RIBEIRO, 2020, p. 27)

Portanto, é uma política que sai das ruas como forma de micropoder, retirando do Estado o monopólio do poder hegemônico. A quem interessa o poder fora da sociedade, fora das ruas, fora dos movimentos, fora dos coletivos etc.? A política nas ruas abre margem para as subjetividades, o que põe sob ameaça o poder dominante. Existem grupos que lutam para sobreviver e enfrentar a ordem vigente e, por consequência, tornar o espaço onde vivem mais democrático. Porém, também há o mesmo do outro lado, organizações que se colocam como defensores do sistema para mantê-lo como está.

Talvez por isso que DaMatta (1997) afirma que o brasileiro é avesso às tensões sociais, porque ele não deseja mudanças profundas na sociedade, caracterizando certo conservadorismo. Lembra do Escola sem Partido? Dos gritos de “sem partido” nas manifestações de junho de 2013? Há despolitização para, num momento oportuno, acontecer a cooptação de determinado experimento social. No futebol não é diferente, pois é esse o caminho daqueles que não desejam a mistura da política com o esporte. O futebol despolitizado fica blindado da atuação dos micropoderes e inteiramente exposto à manipulação dos poderes oficiais (governos, Fifa, confederações, clubes sem a participação das ruas). Não há democracia.

O futebol é popularizado, globalizado e profissionalizado nos dias atuais. Porém, ainda há camadas sociais que lutam para ter direito de se fazer presente. Conhecendo o caráter heteronormativo do futebol, o que será discutido mais à frente, quaisquer subjetividades que lutam por inclusão LGBTQIAPN+ e de mulheres nesse esporte, por exemplo, ameaçam as estruturas misóginas e LGBTfóbicas do futebol.

LGBT
Manifestação organizada pelo movimento Copa pra Quem?, na Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília, protesta contra a Copa do Mundo e pede mais direitos às mulheres e à população LGBT em 2014. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil.

No Brasil, sob o bolsonarismo, houve ataques corriqueiros à comunidade LGBTQIAPN+. Mesmo em 2023, após Bolsonaro sair da presidência, um pastor bolsonarista incentivou que fiéis evangélicos matassem pessoas LGBTQIAPN+[2]. Foram ataques subsequentes às minorias, incluindo a população LGBTQIAPN+, que se viu como alvo frequente da extrema-direita brasileira, que abomina os avanços sexuais e reprodutivos, especialmente de mulheres e homossexuais, denominando-os como “ideologia de gênero” (MISKOLCI, 2018).

Em 2011, uma semana após o Supremo Tribunal Federal regulamentar a união entre pessoas do mesmo sexo, o então deputado federal Jair Bolsonaro liderou movimento contrário à distribuição de material escolar que visava ao enfrentamento da discriminação e da violência contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais, pejorativamente chamado de “kit gay”. Bolsonaro logo obteve apoio da bancada evangélica no congresso nacional. Os ultraconservadores usavam o argumento de doutrinação das crianças para que elas se tornassem gays, gerando um pânico moral na população. Com crianças usadas como tática de convencimento, gerando grande repercussão midiática, os ultraconservadores conseguiram que a distribuição do material fosse cancelada pela presidenta Dilma Rousseff (MISKOLCI, 2018).

O trabalho da Canarinhos LGBTQ+, que congrega torcidas LGBTQIAPN+ de diversos clubes brasileiros, mostra-se ainda mais fundamental nesse contexto de exclusão da população LGBTQIAPN+ do futebol. Midiaticamente, esses coletivos têm o Instagram como uma das principais ferramentas de atuação. A exemplo do próprio Canarinhos LGBTQ+. Nele, o grupo detalha ações e projetos em andamento, denuncia as violências sofridas pelo público LGBTQIAPN+ no futebol e cobra políticas públicas de inclusão de autoridades. Exemplo: em 17 de maio de 2023, o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, a página do coletivo revelou que apenas três clubes da Série A não se posicionaram a favor da causa: Flamengo, Coritiba e Cuiabá[3]. Uma forma de cobrar a diretoria dessas equipes a repensarem a estratégia e permitir que os torcedores LGBTQIAPN+ dessas equipes se sintam acolhidos pelo clube do coração.

Em consequência de lutar pelo direito de existir, o trabalho do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ mostra-se fundamental para a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+ no futebol. Um espaço que é machista, misógino e homofóbico que precisa ser combatido e desconstruído (GOELNNER, 2005; BANDEIRA, 2019). Isso só acontecerá com ações como a do coletivo e atitudes de autoridades públicas que vão além do punitivismo, como medidas socioeducativas. É possível que haja interesse das instâncias políticas para inserir o debate contra a LGBTfobia na sociedade e, consequentemente, no futebol. Os comentários no post de anúncio da parceria entre o coletivo e a CBF só confirmaram tal necessidade.

Confira o artigo completo, publicado nos anais do Intercom 2023 (46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação) clicando aqui.

Referências Bibliográficas

DAMATTA, Roberto; BRASIL, Sabem Com Quem Está Falando? Um Ensaio Sobre A Distinção Entre Individuo e Pessoa no Brasil. In: MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 179-248.

GOELLNER, Silvana. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Rev. bras. educ. fís. esp ; 19(2): 143-151, abr.-jun. 2005.

MISKOLCI, R. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, [S. l.], n. 53, 2018. Disponível em: 

MUDDE, Cas. A extrema-direita hoje. Tradução João Marcos E. D. de Souza. 1 ed. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022.

PINHEIRO-MACHADO; FREIXO. Brasil em transe: Bolsonarismo, Nova direita e Desdemocratização. Rosana Pinheiro-Machado, Adriano de Freixo (organizadores) – Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2019.

REIS, Mattheus. Amarelo desbotado: crise e sequestro da camisa da seleção brasileira de futebol. 2021

RIBEIRO, Luiz Carlos. Futebol e política. In: GIGLIO, Sérgio Settani; PRONI, Marcelo Weishaupt. (Orgs.). O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.


[1] https://canarinhoslgbtq.com.br/

[2] Disponível em: > https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/pastor-andre-valadao-incita-fieis-a-matar-lgbts-em-culto-nos-estados-unidos-16614188 <. Acesso em: 10 ago. 2023.

[3] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CsgteJoOI6N/. Acesso em: 14 jul. 2023.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

RESENDE, Marcelo. Mídia e direito de torcer no futebol: a Canarinhos LGBTQ+ pela democratização dos estádios. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 11, 2023.
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