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Mulher em campo incomoda quem?

Thasya Tomé 11 de agosto de 2023

No dia 07 de maio de 1940, o Jornal Diário da Noite trouxe consigo, em uma das suas várias folhas, uma carta escrita pelo Sr. José Fuzeira, dirigida ao então presidente da república Getúlio Vargas, onde indignava-se com a grande adesão das mulheres à prática do futebol. Em trechos do seu texto, que fora publicado para leitura do povo carioca, Fuzeira, que anteriormente se assume um homem “sem nenhuma autoridade educacional ou scientifica”, exige que medidas sejam tomadas quanto ao “movimento entusiasta” que estaria “empolgando” as mulheres do país.

Alegava que elas não poderiam praticar um esporte tão violento como o futebol sem que isso lhes afetassem psicologicamente e que as fortes pancadas contra os seios das jogadoras, provenientes do choque durante o jogo, poderiam gerar câncer. Ao longo de sua extensa carta, que chega a ser dividida em duas páginas do periódico, o Sr. José clama para que o presidente “acuda e salve estas futuras mães do risco de destruírem sua preciosa saúde e, ainda, a saúde dos filhos dellas… e do Brasil”. Segundo GOELLNER (2005):

Além do medo de que a participação das mulheres em atividades esportivas pudesse desonrá-las, havia, ainda, outra preocupação: seu sucesso nestas práticas poderia infringir as leis da natureza pois, ao mostrarem-se mais fortes do que se supunha, seria fissurado o discurso das diferenças naturais cuja base estava assentada na sobrepujança física de um sexo sobre outro.

O escrito, que de certa forma foi tido como inofensivo por alguém, culminou, não apenas no decreto-lei 3199/1941, onde se lia que “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” (BRASIL, 1941, Art.54), mas também em cerca de 40 anos de ilegalidade do futebol praticado por mulheres. Apesar do decreto ter sido derrubado em 1979, o futebol feminino só foi devidamente regulamentado em 1983. Mesmo em meio a proibição, as mulheres que se dedicavam ao futebol não o deixaram de lado, organizando-se, assim, em campos de várzea e espaços mais periféricos e, em situações mais extremas, chegaram a se vestir como homens para dar continuidade a prática esportiva.

Proibição do futebol feminino
Decreto-Lei foi publicado em 14 de abril de 1941, no governo Getúlio Vargas Fonte: Divulgação/Museu do Futebol

Atualmente estamos vivendo a nona edição da Copa do Mundo Feminina, que teve seu início, de fato, em 1991, mas anos antes já havia diversos campeonatos extraoficiais, sem a autorização da FIFA. Entre estes, a Coppa del Mondo Martini & Rossi, idealizada pela FIEFF, a Federação Internacional Europeia de Futebol Feminino, sediada na Itália em 1970. No ano subsequente, quem recebeu o evento foi o México. De acordo com Stein (2023), “O fortalecimento do futebol feminino na década de 1970 permitiu que novas iniciativas surgissem, independentemente da chancela da Fifa.”

O espaço que as jogadoras do futebol feminino ocupam hoje não é, nem de longe, o que elas merecem de fato, mas é inegável o quão simbólico são todas as suas conquistas, sejam elas em equipe ou individuais, o processo transição de uma prática proibida a ter uma Copa do Mundo Feminina televisionada pela primeira vez em 2019 – tardiamente, não podemos negar. De acordo com Goellner (2005):

[…] apesar destes significativos avanços, ainda é precária a estruturação da modalidade no país pois são escassos os campeonatos, as contratações das atletas são efêmeras e, praticamente, inexistem políticas privadas e públicas direcionadas para o incentivo às meninas e mulheres que desejam praticar esse esporte, seja como participantes eventuais, seja como atletas de alto rendimento.

As conquistas durante toda essa trajetória de lutas e resistência não as blindam da hostilidade por parte dos fãs do futebol masculino, pelo contrário: as expõem ainda mais às críticas que se utilizam de um parâmetro completamente desproporcional para questionar a qualidade de seus campeonatos, desqualificar o desempenho individual das jogadoras e, muitas das vezes, ultrapassando o que pode ser considerado como opinião, vindo a ser um discurso de ódio.

Diariamente podemos passear por estes discursos, a era da tecnologia nos expõe a tudo – comentários, opiniões, críticas e, pasmem: a violência. Só é preciso uma olhada nas respostas de algum post, seja ele do Instagram, Facebook ou Twitter, que ouse fazer a mínima menção que seja ao futebol feminino que se abre um enorme portal para todos os tipos de ofensas gratuitas e menosprezo dirigido às mulheres. Na semana passada, a transmissão do jogo entre Nova Zelândia e Noruega, que ocorria pelo YouTube, precisou ter o chat desativado devido à uma enxurrada de comentários machistas e sexistas direcionado às atletas.

Desde o início da movimentação nas mídias sobre o futebol feminino, que precedia a estreia da Copa do Mundo Feminina, é notável o incômodo exagerado, e incompressível, dos espectadores do futebol. E isto é algo que nos faz chegar ao questionamento: os homens gostam, de fato, do futebol como um esporte? Ou gostam do futebol como uma extensão do seu pacto de masculinidade?  

Não se pode, em hipótese alguma, legitimar os discursos ofensivos proferidos contra às atletas, mas é inegável a existência de uma logicidade dentro disso, visto que o pacto de masculinidade se constrói em cima do domínio dos homens e repúdio a tudo que é feminino. E de certa forma, é compreensível o incomodo deles de verem um instrumento, que vem há anos sendo utilizado como forma de perpetuação do poder masculino e viril dentro de uma sociedade, se fortalecendo, ainda que com suas limitações, para e pelas mulheres que ali dedicam todo seu tempo. Tornando-se, ainda mais, um instrumento de resistência que busca pela equidade de gênero dentro do esporte.

Brasil torcida
Torcedores(as) se reúnem no bar Nossa Arena para acompanhar a estreia da seleção brasileira de futebol feminino contra o Panamá, na Copa do Mundo 2023. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.

É essencial para a continua evolução do futebol feminino compreender todo o processo de busca pelo reconhecimento das mulheres como esportistas, passando por todo período em que o futebol exercido por elas foi proibido, e chegando aos dias atuais onde temos associações, clubes, confederações e federações que organizam e estruturam todo este sistema. E apesar de termos conseguido criar toda essa estrutura para o bom desenvolvimento do futebol praticado por mulheres, precisamos entender que em nenhum momento essa mudança foi reparadora.

 Até os dias atuais, um número imensurável de meninas é afastado dos seus sonhos de serem grandes atletas profissionais, devido ao baixo investimento no futebol feminino, seja no amador ou no profissional. Estamos longe da equidade de gênero dentro desse esporte. É necessário entender também que não, não chegaremos a esta tão sonhada isonomia através de correlações irreais e falsas simetrias.

Criar comparações a respeito de técnicas, desempenho e qualidade de jogo, não é uma forma justa de tentar equalizar as modalidades. O futebol feminino é único! Logo, não é, e tampouco deveria ser, parecido com o futebol masculino, uma vez que, assim como em qualquer outro esporte, sempre haverá particularidades entre os times femininos e masculinos, já que eles definitivamente não partem do mesmo ponto, e se partem, essa corrida não foi justa para um dos lados – e nós sabemos muito bem quem foi afetado com isso.

Bibliografia

Autoria desconhecida. Um disparate sportivo que não deve prosseguir. Diário da Noite. Rio de Janeiro: 7 de maio de 1940. p. 11-12. 

Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html>.

STEIN, L. A história dos torneios internacionais que precederam a Copa do Mundo Feminina. Disponível em: <https://trivela.com.br/futebol-feminino/copa-do-mundo-feminina/a-historia-dos-torneios-internacionais-que-precederam-a-copa-do-mundo-feminina/>. Acesso em: 24 jul. 2023.

GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades . Revista Brasileira de Educação Física e Esporte[S. l.], v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000200005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16590. Acesso em: 26 jul. 2023.

O pacto de silêncio dos homens: O que é? Como se estrutura? E por que acontece? Disponível em: <https://papodehomem.com.br/pacto-de-silencio/>. Acesso em: 27 jul. 2023.

Notícias. Disponível em: <https://museudofutebol.org.br/crfb/eventos/616956/>. Acesso em: 27 jul. 2023.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thasya Rosane Tomé Ferreira

Atleticana fundamentalista e graduanda em História pela Universidade Estadual de Montes Claros

Como citar

TOMé, Thasya. Mulher em campo incomoda quem?. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 11, 2023.
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