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Antonio Negri (1.8.1933 – 16.12.2023): futebol, potência e paixão

De um cárcere romano, em outubro de 1997, Antonio Negri escrevia sobre as agruras da vida entre as grades que, entretanto, ganhara um agravante: a péssima fase do AC Milan, clube da sua devoção, cujas dificuldades se viam aumentadas pelos bons resultados dos times da capital, AS Roma e SS Lazio. Habitar prisões não era novidade para o filósofo, que as frequentara ao ser acusado de envolvimento com grupos da luta armada opositores do estado italiano nos anos 1970, em especial, as Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas). Mas isso fora muito tempo antes e, se a situação se repetia é porque ele deliberadamente retornara ao país natal depois de 14 anos de exílio na França. O objetivo era não apenas buscar o acerto de contas com a legalidade, mas, principalmente, elaborar publicamente o passado de confrontação política dos anos de chumbo.

O conhecimento sobre futebol nunca foi alheio a Negri, ele que se orgulhava de, sim, ter inspirado as Brigate Rossoneri (Brigadas rubro-negras), torcida organizada do Milan, em fins dos anos 1960 e início da década seguinte. Nem mesmo a compra do clube por Silvio Berlusconi, em 1996, o faria desistir do clube de coração. Afinal, como destacava, Os meus amigos, eu os escolhi entre os milanistas, e entre as tantas vicissitudes de minha vida, felizes ou desafortunadas que fossem, só não fui traído pelos milanistas.

O envolvimento de Negri com o futebol não era, no entanto, apenas o de torcedor, mas o de atento observador. É notável, por exemplo, sua elaboração sobre as grandes linhas formadoras do calccio italiano, uma unidade tensa entre a estrutura do esporte jogado em torno do Danúbio e a força do talento de além-mar. Diz ele que

A Hungria era uma grande equipe de futebol danubiana: um estilo extremamente delicado, de movimento através das linhas, antes que pela força. O grande futebol italiano é uma síntese de duas vertentes: o futebol do Danúbio e o argentino. Os danubianos são as linhas, os argentinos o indivíduo. Daí nasce o que[Gianni] Brera [diretor do Gazzetta delloSport] chamava de a raça camponesa italiana. Você coloca esses três elementos juntos e tem a síntese dialética perfeita, a força do futebol italiano.

Se é mais que conhecida a força de Budapeste, assim como de Praga e de Viena, para a formação da Europa moderna e contemporânea, isso não é diferente no esporte mais popular, como, aliás, bem mostra Detlev Claussen em seu livro sobre Béla Guttmann. É com razão que Negri se refere também à influência argentina. Não foram poucos os jogadores da margem direita do Rio da Prata que, refazendo ao inverso o caminho de seus pais, foram à Itália dos anos 1930 em diante, para participar dos torneios no país e representar a Squadra Azzurra Mas também da margem esquerda, como os uruguaios Juan Alberto Schiaffino Villano e Alcides Ghiggia, autores dos gols que derrotaram os brasileiros na final de 1950, que atuaram pela seleção italiana na mesma década. Expressão dos processos de globalização em forma do deslocamento de um razoável contingente de trabalhadores, na medida em que o esporte se profissionalizava, as idas e vindas entre Europa e América foram constantes. Não se pode pensar sobre o futebol europeu sem a presença da América, seja compondo os quadros dos clubes e selecionados nacionais, seja fazendo um contraponto no estilo de jogo, como propõe Pier Paolo Pasolini.

Antonio Negri
Antonio Negri durante uma conferência em Berlim em 2009. Foto: Rosa Luxemburg-Stiftung/Flickr.

“A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código”, diz Pasolini, com o qual ecoa Negri, que afirma que “nós que somos de Pádua, ligados em velha aliança com o Milan, somos os inventores do catenaccio [parafuso]. E o catenaccio é a grande construção do operário-massa”. De qualquer forma, diz Pasolini, Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira”. Ou seja, é por contraste, também, que o futebol italiano pode representar-se e, com ele, colocar o país não exatamente como território, mas como projeto cultural. O mesmo vale, pelo menos até certo ponto, para a Europa.

A atenção de Negri não se destinava apenas ao que acontecia nos campos italianos. Encantado com o futebol praticado nos anos 1970 pelos holandeses – essa mescla de habilidade, técnica, estrutura tática e condição física – classificou-o como “[] a transição para o social, o início do cognitivo. Aqui estão os esplêndidos holandeses que giram, giram, até o ponto em que não podem mais ser encontrados: não havia um zagueiro, um ala, um centroavante. Todo mundo, em todos os lados, a todo momento. Os esquemas do futebol total, as novas geometrias em que singularidade e conjunto podiam funcionar.

São bonitas as elocubrações do filósofo. É bom ler textos e entrevistas, como as que nos deixou, mostrando a paixão e a potência do olhar e do que é visto, indistintamente. Ânimo que vem da multidão, essa força política que pode ser um manancial de afetos outros. Se é Baruch Espinoza a origem da orientação para o singular pensador que foi Negri, é talvez no calccio que se encontra uma brecha para afecções que sequer conhecemos. É preciso olhar. Que na eternidade da memória permaneça o milanista fascinado pelo jogo de bola, restando-nos seguir pensando sob tamanha inspiração. Grande Toni!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Antonio Negri (1.8.1933 – 16.12.2023): futebol, potência e paixão. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 30, 2023.
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