37.7

O elegante mulato de Bangu: Francisco Carregal

Hugo Lovisolo 31 de julho de 2012

Mario Filho, para construir sua história do reconhecimento e valorização do negro no futebol brasileiro, persegue e nos persegue com causos de, sobretudo, mulatos, que fazem coisas (usam pó de arroz ou esticam o cabelo carapinho) para serem aceitos como produto do racismo interiorizado. De fato, sua argumentação implica que os mulatos são simuladores ou enganadores, pois, mediante artifícios, tentam parecer aquilo que não são, portanto, agem como animais miméticos, com a diferença de que seus agires são intencionais1.

Para isso, Mario entra nas mentes, nas intenções, nos motivos dos causos que narra. Jamais explicita quais são as fontes de seu conhecimento, das intenções ou motivos, embora declare de modo geral e introdutório que usou fontes escritas e depoimentos, jamais responde às questões de quem diz, em qual contexto, o que diz e sobre quem diz. Suas evidências e testemunhas estão quase sempre ausentes.

Um causo típico é o do mulato Francisco Carregal, jogador do Bangu, filho de pai português branco e mãe brasileira preta. Não lembro de nenhum causo inverso narrado por Mario Filho, ou seja, pai negro e mãe branca. Na verdade, ele poderia ter escrito sobre a ascensão da mulher negra mediante o casamento com um branco que, nos casos de Mario Filho, geralmente é estrangeiro ou não brasileiro. A atração da negra e da mulata foi, e talvez ainda seja, tão forte que Noel Rosa pedia a volta da escravidão para comprar “aquela mulata” que era sua paixão. Contudo, podemos supor que também podiam existir dificuldades no mercado matrimonial para os estrangeiros mesmo quando acomodados (preconceito?), criando um mercado preferencial ou protegido de aliança matrimonial para a mulher preta.

Time do Bangu em 1905 – Acervo: Carlos Molinari / Bangu.net (Da esquerda para direita) Em pé(atrás): José Villas Boas (Presidente), Frederich Jacques e João Ferrer (Presidente Honorário);  Em pé(na frente): César Bochialini, Francisco de Barros, John Stark, Dante Delocco e Justino Fortes;  Sentados: Segundo Maffeu, Thomas Hellowell, Francisco Carregal, William Procter e James Hartley.

The Bangu Athletic Club nasceu em 1904, quatro anos antes que Mario, que é de junho de 1908. Dois meses depois o clube tinha um time de futebol. O “verdadeiro time do Bangu”, relata Mario, apenas nasceria um ano depois com cinco ingleses, três italianos, dois portugueses e um brasileiro mulato, Francisco Carrregal. Mario Filho afirma que “chama atenção a diferença entre o apuro no vestir de Francisco Carregal, preocupado em não fazer feio, e o pouco se me dá de Willian Procter, que não ligava para essas coisas” .

“Francisco Carregal, talvez por ser brasileiro e mulato, o único brasileiro, o único mulato do time, caprichou na maneira de vestir. Era o mais bem vestido dos jogadores do Bangu. Um verdadeiro dândi em campo” (p.32).

Mario Filho se deleita descrevendo uma fotografia do time, de 1905, dando ênfase aos bigodes, aos modos de se vestir. Os ingleses, nos diz, não prestavam muita atenção aos detalhes e eram mais descuidados que os italianos e os portugueses. Aqui estaríamos no campo das diferenças entre culturas nacionais?.

Francisco Carregal, um simples tecelão que chegaria a mestre,

comprou tudo de novo: as botinas travadas e as meias de lã, os calções. A camisa, quem dava era o clube. William Procter, o mestre eletricista, mandou travar umas botinas velhas, cortou com uma tesourada uma calça branca que não servia mais, nem comprou as meias de lã que custavam oito mil reis na Casa Clark. Enfiou o PE numa meia comum, que lhe ia somente até o meio da perna, e deixou-se fotografar de ligas pretas (p. 33).

Procter, sugere Mario filho, podia ser descuidado por orgulho de raça superior.

As ligas pretas chegam a ferir os olhos na perna branca de William Procter. Parece até que ele não acabara de se vestir, que viera correndo lá de dentro, para a pose fotográfica, sem calças, de cuecas. Principalmente porque está ao lado de Francisco Carregal, todo vestidinho, entre Francisco Carregal e James Hartley, que, além das meias de lã, botou, cobrindo as pernas, as caneleiras. Caneleira era coisa rara, não havia por aqui, só vindo da Inglaterra, como um verdadeiro requinte (p. 33).

Em oposição a Procter, o “Descuidado”, Francisco Carregal não podia ser descuidado. “No meio de ingleses, de portugueses, de italianos sentia-se mais mulato, queria parecer menos, quase branco. Passava perfeitamente. Pelo menos não escandalizava ninguém” (p. 33, sublinhado do autor). Temos, então, a intenção: parecer menos mulato.

Tudo o que Filho conta ocorreu antes de ele ter nascido. Tudo parece surgir de sua leitura da fotografia. Mario já escolheu o Willian Procter para ser comparado com o Francisco. Ele não escolheu o James Hartley, pois é muito requintado. Necessita de um inglês sem requinte, mais ainda, esculachado, diríamos hoje, para criar o efeito de distância que lhe permite colocar o racismo interiorizado como motivação. O ponto central é o da intencionalidade de Francisco Carregal ser cuidadoso para parecer branco. Alguém terá contado sobre essa intencionalidade a Mario Filho? Se assim for, com qual intencionalidade contou-se sobre a intencionalidade? Na superfície, temos um elogio à elegância de Carregal, por baixo, uma explicação depreciativa: queria parecer menos mulato, quase branco! Ou seja, o causo se fundamenta no preconceito de que os mulatos preferem ser brancos ou pelo menos parecer!

O jogo de sempre: Mario Filho sabe quais são os sentimentos e os motivos de qualquer um, sobretudo, se ele é mulato, no caso não há dúvidas: é para se sentir menos mulato, quase branco. Conhecer os motivos dos personagens é uma virtude do romancista, do autor. A fotografia sobre a qual o enredo das interpretações se constrói tinha sido tirada em 1905, Mario Filho se inicia como repórter esportivo em 1926. O Negro no futebol brasileiro é de 1947. Assim, Mario sabe dos sentimentos e motivos, jamais nos informa como, entre 21 e 42 anos depois, evidências e testemunhas entram no jogo de sua construção.

Faz algumas décadas tive a oportunidade magnífica de participar de um grupo de trabalho com Milton Santos e outros destacados colegas da área no marco do Projeto Nordeste (assim o identificavam). Uma figura importante entre os organizadores era o saudoso Prof. José Arapiraca. Ambos eram negros. Milton Santos um intelectual de prestígio internacional que foi criativamente além do marco habitualmente enquadrado na geografia. Enquanto José Arapiraca se vestia corretamente para sua função de professor universitário, com cuidado, mas não cuidadosamente, Milton Santos era um dândi, sua elegância era inatacável e até motivo de inveja, pois não se trata apenas de recursos, há um conhecimento ou saber estético considerável na produção da elegância. Suas roupas combinavam e não se repetiam; seus sapatos brilhavam ainda nas escuras sombras das mangueiras dos jardins do Refúgio de São Francisco, onde costumávamos nos reunir para trabalhar. Eu estava fascinado pela figura de Milton Santos e pela sua forma de raciocinar e expor seus pontos de vista. Eu tinha a impressão de que Milton era um perfeccionista intelectual e estético solidamente estabelecido a partir de seus saberes amplos e profundos.

Milton Santos

Jamais passou pela minha cabeça que seu dandismo podia ser produto de parecer menos negro. Ao contrário, minha sensação era, e ainda é, de que ele estava perfeitamente instalado dentro da cor de sua pele. Um negro intelectualmente brilhante e elegante podia ser um problema para os outros, não para ele: simplesmente, Milton Santos era assim. Talvez também fosse assim, em termos de elegância, Francisco Carregal.

Eu igualava, na minha imaginação, os cuidados em se vestir de Milton com os do “Morocho del Abasto”, Carlos Gardel. E isto é um elogio que nada tem a ver com racismo, admiro pessoas elegantes, ocidentalizadas ou não, sejam da raça, gênero ou nacionalidade que forem.

Aplicar a reiterada hipótese de Mario Filho, ao longo do seu livro, de que negro ou mulato que se embeleza é para ser menos negro ou mulato não faz nenhum sentido para mim. Os cuidados estéticos, como os intelectuais, forma parte do cultivar-se, de se tornar mais culto. Milton Santos foi um representante da cultura e, mais ainda, quando exercia o sentido crítico.

Francisco Carregal, um tecelão, creio que podia sentir o mesmo impulso de cuidar-se esteticamente. Não para ser menos negro ou mais branco, apenas para ser mais cultivado, para se sentir melhor e, porque não, para se admirar no espelho. Willian Procter, mestre eletricista, do qual creio que pouco ou nada sabemos, como o Dr. House do seriado, que se admira e satisfaz quando soluciona o enigma médico, podia ter outras formas de se cultivar e admirar.

Talvez um negro ou uma negra elegante seja duas vezes mais negro ou mais negra, em contra de todas as imputações de sentimentos e motivos inventadas por Mario Filho, que, podia se sentir muito bem, quando fazia uma construção que encaixava direitinho na história que pretendia narrar. .

Contudo, se pensamos que o nicho de circulação no Brasil está determinado pela posição social (renda e educação, principalmente) e pela posição racial (brancos, negros e mulatos) estar no topo de algum dos eixos aumenta o nicho de circulação. Tanto um negro pobre quanto um branco pobre terão dificuldades para estacionar em um restaurante de elite. Eu, embora branco e quase louro, não tentaria de chinelo, shorts e camiseta com publicidade (prendas típicas dos pobres brasileiros) entrar num teatro ou num restaurante da Zona Sul. Alguma reação existirá: ou não me deixariam entrar ou fingiriam que não existo.

Seja branco ou negro para circular nos espaços brasileiros, e em outros países também, a aparência é fundamental. As pessoas se vestem segundo a ocasião. A pessoa elegante, bem arrumada, será melhor quista que seu oposto. Vamos da aparência à essência. O modo de se vestir, com suas agregações e padrões na moda aristocrática, burguesa, dândi ou boemia entre outras, sempre foi um passaporte positivo ou negativo para circular nos nichos socialmente regulados do espaço público. E não apenas a roupa, hoje o desdentado, negro ou branco, é vistos como tendo uma posição inferior. Mais ainda, os dentes tortos, embora fortes e funcionais, colocam a seu portador em um nível inferior. A prova é uma odontologia que vive da ortodontia, dos implantes e das próteses.

Ou seja, não se trata de deixar de ser negro ou mulato. Trata-se de, a partir da aparência, manejar os nichos nos quais se pode circular e “não pagar mico”. A aparência que indica a “essência”, ou a transformação do externo no reconhecimento social, não reside apenas na forma de se vestir, a forma de cumprimentar, o andar, o cheiro do corpo e do hálito, a forma de se maquiar e até o modo de olhar entram como dimensões significativas.

Creio que Milton Santos produzia alguma dissonância. A academia e o mundo intelectual brasileiro foram influenciados por ideias de resistência à aparência. Muitos colegas declaram que jamais usam uma gravata, mesmo quando se pense que seria adequado para a ocasião. Entre as mulheres, ainda parece dominar a vontade de se vestir segundo a ocasião. Contudo, existem traços de uma moda acadêmica e intelectual que qualquer nativo reconhece.

Franciso Carregal talvez não se tornasse menos mulato. Apenas com sua elegância criava uma circulação que não teria sem ela. Deixava de ser um mulato e se transformava em um “mulato elegante” e, talvez, bem posicionado socialmente. Sem dúvida, ascendia em termos de recepção e circulação enquanto cultivava sua pessoa mediante a elegância. E, talvez, diante do espelho, se sentisse um mulato bonito, e não menos mulato, como pretendia Mario Filho.

[1] As citações são de O Negro no Futebol Brasileiro, Rio de Janeiro, FAPERJ/MAUAD, 2003.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

LOVISOLO, Hugo. O elegante mulato de Bangu: Francisco Carregal. Ludopédio, São Paulo, v. 37, n. 7, 2012.
Leia também: