39.1

Pó-de-arroz: grito de racismo ou de desigualdades sociais

Hugo Lovisolo 4 de setembro de 2012

Os supostos casos de atos racistas no futebol brasileiro são, de modo geral, hilariantes e se derivam, quase todos, dos escritos de Mário Filho, especialmente de sua obra O negro no futebol brasileiro. Inclino-me a pensar que Mario filho era um grande contador de causos com uma tremenda queda para o humor. O piadista contador de causos ou o contador de causos humorista é uma figura conhecida na paisagem brasileira. Eu diria que forma parte de sua cultura embora não seja uma propriedade exclusiva, não configurando uma singularidade nacional ou regional. Todavia, temos que reconhecer que existem estilos ou tipos de humor, todos parecem pertencer à natureza do “animal que ri”.

Um dos casos de racismo exemplar mais mencionado é o de “pó de arroz” que, nos tempos de Mario filho, grafava-se “pó-de-arroz”. De tão repetido ele ganhou o estatuto de nome próprio e, então, seria melhor escrever Podearroz. É isso que fiz no título como homenagem ao talento de Mario Filho.

O caso de Carlos Alberto, do Fluminense. Tinha vindo do América, com os Mendonças, Marcos e Luis. Enquanto esteve no América jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era mulato. Também Carlos Alberto, no América, não quis passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em exposição. Tinha que entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de moças na arquibancada, para um instante, levantar o braço, abrir a boca num hip, hip, hurrah1.

Dou uma paradinha na citação para apontar alguns dados que creio formam parte do contexto de interpretação. O caso na citação se inicia com um título que ressaltei em negrito. Mario Filho coloca o América, juntamente com Fluminense, Botafogo e Flamengo como os grandes times. Também realizou descrições da vida social do Fluminense com a participação das famílias ricas nas arquibancadas e dando especial ênfase à participação das moças que iam admirar e se relacionar com os atletas. Isto não ocorria nos clubes do subúrbio, como o Bangu, nos clubes dos pobres (Mario filho não informa qual era o costume no América). As mulheres do Fluminense, ele conta, iam muito bem vestidas e supomos que também maquiadas. O pó de arroz era naquela época usado como base, alguém me diz que ainda se usa, isto é, para deixar a pele mais homogênea, com menos marcas, enfim, mais bonita e mais jovem, pois algumas marcas vêm com os anos e indicam que a juventude se foi.

Foto de Carlos Alberto (reprodução).

Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais a atenção. O cabelo de escadinha ficava mais escadinha., emoldurando o rosto cinzento de tanto pó-de-arroz.

Observe-se que Mario Filho tem o poder de entrar na cabeça ou na alma de Carlos Alberto, em seus temores e lhe atribui, então, a cobertura com o pó-de-arroz, embora “não podia enganar ninguém”. Carlos Alberto sofreria de racismo internalizado? O causo de Mario Filho afirma isso, dado que seria o único motivo para o pó de arroz. Depois de tudo, ele já estava jogando no Fluminense e, se fosse mulato, era de domínio público e aceito.

O que Mario filho está contando tem a estrutura típica da piada sobre o negro burro, análoga às piadas sobre os portugueses contadas pelos brasileiros ou sobre os “gallegos” contadas pelos argentinos que, também, fazem piadas sobre si mesmos, talvez por influência da tradição judaica. De fato, Carlos Alberto tinha que ser pouco inteligente para fazer um ato que não podia enganar a ninguém e que era de natureza cômica: homem usando pó de arroz. Veja só!

Se há racismo é o de Mario Filho no julgamento da conduta, tão pouco inteligente, inventada de Carlos Alberto.

O próprio Mario Filho apresenta outra versão da expressão: ela era aplicada ao Fluminense, como Flamengo é urubu, River Plate “gallina” e os torcedores de Boca são identificados como “bosteros”. O apelido é tão comum no futebol que resulta difícil rejeitar o entendimento de Carlos Alberto:

Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto:

Pó-de-arroz! Pó-de-arroz.

A torcida do Fluminense procurava esquecer de que Carlos Alberto era mulato. Um rapaz muito fino.

(“…) Carlos Alberto sem se dar por achado, como se não fosse com ele, como se fosse com o Fluminense.

Mario Filho entra na cabeça da torcida, sabe quais são suas intenções, e continua entrando na de Carlos Alberto de novo “um rapaz, embora muito fino,” muito burro, pois “nem se tocava com o grito da torcida, achava que era com o Fluminense”. Depois (sem nenhuma evidência sobre o antes e o depois) ele afirmara que o Fluminense passou a ser chamado de pó de arroz a partir do ato de Carlos Alberto. Contudo, Mario filho continua com o racismo de apostar na burrice de Carlos Alberto que nem sacava que o grito do apelido era para ele.

O contexto indica que o Fluminense era chamado de “Podearroz” pela sua formação social e pela participação das mulheres na torcida. Se supusermos que Carlos Alberto, filho de um fotógrafo de formaturas, que “entrara nas boas rodas” e era cativante com uma “delicadeza de quase moça” não era um idiota total, o ato, de se fazer passar por branco, enganando, mediante o bendito pó, não faz o menor sentido.

O sentido aparece apenas quando o consideramos burro ou quase irracional, condição da piada. Se abandonarmos esta leitura da mente feita por Mario Filho, teremos que concluir que o grito ‘Podearroz’ era contra o Fluminense e que Carlos Alberto estava certo em não se tocar. Ou, talvez, supondo que alguma vez usou pó de arroz, foi para dizer as moças: olhem, eu também estou aqui, eu também sou “alvo”! Se alguma vez usou pó de arroz teria sido para fazer uma piada e não para parecer branco? É bem possível, tão possível quanto Mario Filho aproveitar uma piada para fazer outra.

Creio que minha reconstrução ganha em coerência e consistência. Perde, entretanto, o humor. É deste mundo e muito lógico entender, pelos dados fornecidos pelo próprio Mario Filho, que gritaram “Podearroz”! contra o Fluminense. O que não é deste mundo nem lógico é o poder de Mario Filho de entrar na cabeça dos indivíduos e da multidão e saber quais são os motivos de suas condutas e seus sentimentos. De fato, se Mario Filho é um defensor dos negros e mulatos, dos afro brasileiros, diríamos hoje, ao mesmo tempo, não perdeu a oportunidade de fazer uma piada racista, filha do preconceito que considera os negros ou mulatos pouco inteligentes e enganadores ou simuladores A piada racista, paradoxalmente, parece que se encaixou como uma luva na superação do racismo e na denuncia do preconceito. Sua piada foi e ainda é citada como expressão de racismo e preconceito. Pois, teria sido o preconceito interiorizado que levou a Carlos Alberto a se cobrir com pó de arroz para parecer branco ou menos mulato ou mais branco….

O problema que resta é se perguntar sobre as razões que levaram tantos jornalistas e cientistas sociais a tomar o grito como sinônimo de racismo quando, de fato, o racismo está na própria piada e, o grito, no campo das relações entre ricos e pobres, entre clubes de ricos e de pobres. Creio que o motivo é simples, o causo seria uma suposta prova do “racismo internalizado”, sem dúvidas o pior dos racismos para uma identidade que aspira a ser potência maior unida nas diferenças (para pior ou para melhor como já foi salientado em repetidas oportunidades). Esta interpretação joga fora a outra possível: o grito Podearroz era um símbolo de relações entre pobres e ricos, uma emergência das desigualdades no futebol. E isto foi apagado pelo preconceito de uma piada racista que, paradoxalmente, pretende desnudar o racismo.

[1] Todas as citações são da página 60. Estou usando a 4º edição, Rio de Janeiro, FAPERJ/MAUAD, 2003.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

LOVISOLO, Hugo. Pó-de-arroz: grito de racismo ou de desigualdades sociais. Ludopédio, São Paulo, v. 39, n. 1, 2012.
Leia também:
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza
  • 178.14

    Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte

    José Paulo Florenzano