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O futebol brasileiro ainda vai virar um imenso tribunal (II): versão pandêmica Brasil x Argentina

Fabio Perina 21 de setembro de 2021

Em texto anterior, procurei uma breve retrospectiva quanto ao ano de 2019 (o último a ter temporada inteira de estádios com torcedores) e o péssimo encontro do punitivismo com o identitarismo. Ali trabalhei com uma breve definição de punitivismo como medidas “inócuas, desproporcionais e abusivas”. A hipótese que persiste de lá para cá é da atualização dessa “máquina” punitiva sempre com novas invenções para prejudicar o andamento das partidas. Dessa vez irei destacar o péssimo encontro do punitivismo com o legalismo (ou seja, levar em conta apenas a legalidade formal mas desprezando qualquer contexto ou outra circunstância). Para aqueles que tem catarses ao gritar que é preciso cumprir cegamente a lei, deixam de lado o profundo problema de sua seletividade. E por falar em “máquina”, me parece necessário tratar desse caso como mais um de muitos de um certo “curto-circuito”, ou seja, em que o excesso de instituições punitivas (sejam elas esportivas ou não) acaba sendo muito pior do que a falta delas! Em suma, o legalismo não é uma invenção recente e dele se desmembrou essa nova bolha sanitária (em complemento à prévia bolha jurídica) como no escândalo que será o foco principal da discussão. Assim como premissa fundamental é preciso acrescentar o cuidado com a metáfora de “máquina” parecendo que o punitivismo tivesse vida própria ao invés de ser uma ferramenta, portanto dependendo de quem dela se apropria. Antes já abusivamente usada pela direita neoliberal e agora também experimentada pela direita neofascista.

Brasil Argentina
Foto: Lucas Figueiredo/CBF/Fotos Públicas

O evidente episódio para esse pano de fundo foi a partida Brasil x Argentina em Itaquera válida pelas Eliminatórias no recente dia 5 de setembro. Porém logo em seus minutos iniciais com a suspensão pelas autoridades sanitárias literalmente invadindo o gramado! Antes de tratar desse episódio principal, é preciso recordar que nos últimos meses os confrontos entre brasileiros e argentinos estiveram tão pegados fora de campo quanto dentro de campo. Primeiro, no dia 4 de maio pela Copa Sul-Americana o confronto Bahia 2 x 2 Independiente já se foi aplicado um abuso de poder à delegação argentina tendo de repetir protocolos de exame e perdendo horas de descanso retidos durante madrugada no aeroporto. Depois, em meados de julho vieram os tão tumultuados confrontos entre Atlético-MG x Boca Juniors pelas oitavas de final da Libertadores. Já tendo como aperitivo a conquista da Argentina em pleno Maracanã da Copa América dias antes. E como aperitivo mais quente as declarações do presidente do clube mineiro que iriam revidar a forma que foram tratados, e depois ele próprio chegou às vias de fato agredindo os argentinos. Uma confusão que teve origem distinta pela anulação de gols pelo VAR, porém com um desfecho parecido nas conclusões que se tira com o caso de Itaquera. No sentido que a confusão entre delegação argentina e autoridades no vestiário encontra uma parcela da mídia brasileira que ainda se entrega ao velho “pachequismo” de colocar de antemão toda a culpa no rival ao invés de apurar os fatos.

Por outro lado, isso oculta o que o caso Galo x Boca e Brasil x Argentina tem em comum: dificilmente uma delegação estrangeira teria condições concretas de ser a “vilã” da história se em um espaço acanhado de um vestiário estão desarmados diante de todo o poder de intimidação “corpo a corpo” na hora do ocorrido através da PM-MG no Mineirão e da PF em Itaquera. Assim como instrumentos jurídicos posteriores como autuação, prisão e deportação. Em suma, a importância de aproximar esses dois casos deve guardar como lição que o punitivismo causa cada vez mais danos pois ao ser conivente com um abuso que prejudique o outro lado se abre o precedente para em outro dia ele se repita porém prejudicando o nosso lado. (Obs: a mídia argentina evidentemente tratou de uma retrospectiva nas últimas duas décadas de abusos de poder de policiais brasileiros contra jogadores e torcedores argentinos. É tentador atribuir toda a culpa em casos assim à xenofobia, mas também não se pode esquecer disso ser uma manifestação da luta de classes específica ao futebol por ser policiais contra trabalhadores– importando menos a cor da camisa que vestem).

Boca Juniors Atlético Mineiro
Foto: Pedro Souza / Atlético/Fotos Públicas

Chegando finalmente ao episódio do Brasil x Argentina pelas Eliminatórias, aqui um breve panorama para apresentar o episódio principal. Ainda em um breve levantamento de alguns importantes questionamentos em blogs que convergem com minha argumentação:

“Não sou médico, mas gostaria que me explicassem por que um brasileiro que vem da Inglaterra não é obrigado a quarentena (para nossos jogadores, por exemplo, bastaria uma testagem ou quarentena de dois dias para que pudessem atuar) e os estrangeiros só são autorizados a circular pelo país depois 10 dias confinados num hotel? Por acaso, o coronavírus olha o passaporte de alguém antes de contaminá-lo?” (Renato Maurício do Prado)

“Mas por que então, querida Anvisa, estamos aqui há quase dois anos jogados a nossa própria sorte, comandados por um lunático que faz campanha de remédios ineficazes, defende a liberdade de não usar máscara, apoia aglomerações sem que você tenha se manifestado de forma contundente? Por que os argentinos precisam fazer quarentena mas os brasileiros vindos dos mesmos destinos não precisam? (…) Outra pergunta: Foi divertido para quem fazer aquele show ao vivo interrompendo importante evento da Rede Globo? Quem ganha com isso? O que ganha quem ganha? (…) Entre quatro argentinos errados e um Bolsonaro mais ou menos certo, fico do lado dos quatro argentinos errados” (Milly Lacombe

“Por que nada disso aconteceu nos jogos aqui no Brasil durante a pandemia? Por que a Anvisa, mesmo sendo contra a volta do futebol sem termos uma vacina, não interrompeu um jogo? E não venham dar a justificativa do “protocolo”. Todos os times, em algum momento, entraram em surto de Covid.” (Casagrande)

“O Escândalo de Itaquera não demorou a tomar patrióticos contornos — com pinceladas de xenofobia. Afinal de contas, no Brasil temos nos equivocado desde o começo da pandemia, mas o erro só é imperdoável se quem erra vem de fora. Há responsabilidades e pontas soltas de todos os lados, mas a dimensão alcançada parece bastante incompatível com o fato em si. Até porque o perigo de transmissão dessas variantes será incomparavelmente maior entre os milhares de torcedores que a CBF pretende incentivar nas arquibancadas do que seria pelos quatro argentinos correndo em um gramado numa tarde de domingo.” (Douglas Ceconello)

Em suma, é incrível como mesmo em um futebol pandêmico sem torcedores foram as próprias autoridades quem conseguiram gerar mais confusão do que os torcedores que sempre levavam a culpa por tudo! Ao acompanhar pela televisão achei muita legítima a indignação repetidas vezes do narrador Milton Leite interpretando que o rigor das autoridades sanitárias ocorria pela conveniência de buscarem um “holofote” para si. Pois se realmente estivessem preocupados com a saúde coletiva poderiam ter abordado os jogadores argentinos durante os 2 dias antes que estiveram no Brasil ou até mesmo 2 horas depois da partida, sem que ela fosse prejudicada. E o desfecho da indignação: “Se em um aeroporto internacional não há rigor e segurança suficiente para fazer esse controle, em que parte do país haverá?!” Logo depois o comentarista Pedrinho também declarou uma indignação legítima, pois os cerca de 30 minutos com a aglomeração entre autoridades, jogadores e comissão técnica no túnel para o vestiário foi muito mais arriscado para qualquer transmissão do que se a partida rolasse normalmente no gramado ao ar livre!

A nível de hipótese “conspiratória”, também deve ser levado em conta o oportunismo das federações. Pois desde a Copa América a enfraquecida CBF deve sentir que foi driblada pela articulação entre AFA e Conmebol para a liberação de público parcial apenas para a final. Assim como nos últimos dias ela se sentiu ainda mais enfraquecida por não ter conseguido negociar junto aos clubes ingleses a liberação de seus jogadores convocados, porém a AFA sim, os quais foram o pivô de toda essa confusão.

Brasil Argentina
Foto: reprodução TV Globo

Em suma, em um Brasil com tantas autoridades coniventes por tanto tempo com o genocídio causado pela pandemia, chama a atenção que a principal autoridade sanitária somente depois de um ano e meio resolveu “mostrar serviço” sendo rigorosa com se cumprir as regras. Afinal, mais uma vez, o oportunismo e o “timing” em que os fatos se conectam nunca são uma inocente coincidência. Evidente que escrevendo no calor da conjuntura é impossível não traçar paralelos dos absurdos no futebol e na política mais geral. Após tantos meses com notas de repúdio inócuas com “as instituições estão funcionando” encontra sua analogia com “os protocolos estão sendo cumpridos”. Em ambos se manifesta esse legalismo em sua bolha jurídica alheia à realidade. Mais um elemento discreto chega a ser extremamente simbólico, que é esse caso atualizar o discurso que “o Brasil é o país da carteirada” diante de uma autoridade ter invadido o campo com uma arma escondida na camisa para intimidação aos jogadores argentinos. Por fim, se como tem sido repetido ultimamente pelos setores progressistas e democráticos o discurso que “o patriotismo é o último refúgio dos covardes”, é preciso que a ele também se acrescente o novo discurso que “o legalismo é o último refúgio dos covardes”!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. O futebol brasileiro ainda vai virar um imenso tribunal (II): versão pandêmica Brasil x Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 33, 2021.
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