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O goleiro entre o gol 1000 de Pelé e a ditadura argentina

Há um ano, em setembro de 2019, Edgardo Andrada morreu em Rosário, sua cidade natal, na Argentina, aos 80 anos de idade. Deixou sua marca no gol do Vasco da Gama, mas é lembrado por ter sofrido o milésimo gol de Pelé e, no final da vida, por ter seu nome envolvido com o regime militar da Argentina.

É impossível contar a história de Andrada sem começar pela noite de 19 de novembro de 1969. A ocasião guarda um dos mais emblemáticos capítulos do futebol brasileiro: o milésimo gol de Pelé. Antes mesmo de ser tricampeão mundial no México, o Rei do Futebol alcançou a marca num jogo sem muita emoção contra o Vasco da Gama, no Maracanã com menos da metade do público normal do estádio na época.

Foto: Reprodução

A outra face do gol 1000

Conforme Pelé se aproximava da marca de 1000 gols, os jogos do Santos foram transformados numa espécie de novela na busca do gol 1000 de Pelé. Depois de ficar no quase contra Bahia e Botafogo da Paraíba, a oportunidade surgiu em uma partida contra o Vasco da Gama, no Maracanã.

Eram exatos 65.157 pagantes nas arquibancadas do maior estádio do mundo, quando o árbitro Manoel Amaro de Lima assinalou penalidade máxima de Fernando em Pelé.

O cronômetro marcava 33 minutos da etapa final de um jogo morno em que Vasco e Santos empatavam em 1 a 1. Entre os mais de 65 mil presentes, talvez Andrada fosse o único que não quisesse ver a bola entrar, justamente por não querer entrar para a história como o goleiro do milésimo gol.

Não adiantou o esforço do ótimo goleiro argentino, que pulou no canto certo e chegou a tocar na bola, mas não evitou o balanço das redes exatamente às 23h23min que marcou o 2 a 1 santista e o milésimo gol de Pelé.

Enquanto o Rei do futebol era carregado nos ombros pelos companheiros de time, cumprimentado pelos vascaínos, ovacionado pela torcida presente no Maracanã e cercado pelos repórteres que invadiram o campo, Andrada era o retrato de uma gritante solidão.

Era imenso o contraste entre os sorrisos e as comemorações pelo gol 1000 de Pelé, e a monumental inconformidade de Andrada, a única reação que destoava da atmosfera de alegria que tomou conta do Maraca. Era solitária a indignação do arqueiro, o inconsolável goleiro, que socava o chão por ter saído como coadjuvante na foto do milésimo gol.

Justo ele, contratado pelo Vasco da Gama no início de 1969, que até àquela noite não havia sofrido gols de Pelé, mas foi escolhido pelos “Deuses do Futebol” para sofrer o gol 1000 do Atleta do Século e a contragosto se tornar o “Arqueiro Mil”.

Após o episódio, Andrada seguiu por mais cinco temporadas no Vasco da Gama e marcou época como um dos melhores goleiros do clube, além de conquistar títulos como o Campeonato Brasileiro e Carioca.

A carreira ainda lhe reservou uma infeliz coincidência, El Gato ficou marcado por também sofrer o último gol de Pelé com a camisa da Seleção Brasileira. Dentro de campo, porém, foi um ótimo goleiro, apesar de sua estatura de 1.78 metros, fez história no Vasco da Gama como um gigante da história cruzmaltina.

A defesa indecente

No entanto, Andrada não foi apenas o goleiro do milésimo. Campeão carioca e brasileiro pelo Vasco, o final da carreira do goleiro guarda um nebuloso envolvimento com a ditadura argentina e anos depois, a acusação de ter sido informante do regime.

Depois de deixar o Vasco, em 1975, Andrada passou uma temporada apagada no Vitória e em 1977, o consagrado goleiro retornou ao país natal para jogar pelo Cólon, até 1979 e encerrar a carreira em 1982, aos 43 anos.

Pelé e Andrada. Foto: Reprodução.

O retorno de Andrada à Argentina aconteceu num contexto histórico conturbado. Em 24 de março de 1976, as forças armadas do país depuseram Isabel Perón e o general Jorge Rafael Videla assumiu o controle da junta militar, que passou a governar a Argentina.

Com os militares no poder muitos argentinos passaram a ser perseguidos pela repressão do regime e buscavam exílio fora do país. Nesse cenário, Andrada fez o caminho inverso e retornou ao país. A ditadura argentina foi uma das mais sangrentas da América Latina, de acordo com historiadores, os militares perseguiram, torturaram e assassinaram cerca de 30 mil pessoas que se opunham ao regime.

Nos clubes em que jogou no regresso, Andrada teve pouco destaque e ao se aposentar, passou a ser o treinador de goleiros de sua primeira equipe, o Rosário Central. Após o fim da ditadura, o nome do ex-goleiro passou a ser ligado aos repressores, mas as ilações sempre foram rebatidas pelo acusado.

O informante do regime(?)

Em 1997, a desconfiança passou a ser uma sombra na carreira de Andrada. Um documento anônimo chegou ao Tribunal Federal de San Martín e identificava o ex-atleta como tendo sido o “agente secreto C-3 do Destacamento de Inteligência de Rosario” e citava o sequestro de dois militantes do qual Andrada teria participado.

O caso em questão aconteceu em 14 de maio de 1983, meses após Andrada deixar o futebol. Na manhã daquele dia, agentes da repressão invadiram o bar Magnum, na cidade de Rosário, e levaram dois rapazes que pertenciam aos quadros da guerrilha opositora, eram Osvaldo Cambiaso e Eduardo Pereyra Rossi. Três dias depois, os corpos foram encontrados amarrados, com marcas de choques elétricos e perfurações de tiros caracterizando a tortura seguida de execução.

A opinião pública já desconfiava de Andrada, quando em 2008, numa entrevista a uma rádio, Eduardo “Tucu” Costanzo apontou o ex-goleiro como participante do crime. “Tucu” Costanzo foi um militar que integrou as engrenagens de repressão da ditadura, confessou sua participação e cumpre prisão perpétua por crimes contra a humanidade.

Além da acusação, Constanzo deu detalhes como o suposto apelido de Andrada, que era chamado de Antelo pelos militares, e ainda, segundo o delator, teria participado de outras operações como informante.

Dessa vez, Andrada foi chamado pela Justiça para prestar esclarecimentos. Junto ao ex-atleta, mais sete pessoas foram apontadas como suspeitas pelo crime. Em novembro de 2011, Andrada permaneceu em silêncio durante um interrogatório, mas por conta da repercussão se afastou do Rosário Central, clube em que ainda trabalhava aos 73 anos.

Mesmo com a denúncia de um reconhecido torturador, Andrada não foi processado, pois o juiz Carlos Villafuerte Ruzo considerou que não havia indícios que o ligassem ao crime e à ditadura. Somente o ex-goleiro e o tenente Victor Hugo Rodríguez foram absolvidos.

Fato é que, apesar de ter sido um goleiro lendário e que participou de um dos momentos mais importantes do futebol, o milésimo gol de Pelé, Edgardo Andrada viveu recluso em seus últimos anos e malvisto pela opinião pública ainda que não tenha respondido formalmente pelo crime e nem que tenha se esclarecido seu envolvimento com a ditadura argentina.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. O goleiro entre o gol 1000 de Pelé e a ditadura argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 70, 2020.
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