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A camisa 10 na festa da ditadura

José Paulo Florenzano 28 de março de 2024

Em 1972, o regime civil-militar instaurado em 1964 encontrava-se em festa.[1] Isto por vários motivos. De um lado, exaltava-se o assim chamado “milagre econômico”. De outro lado, explorava-se a conquista do tricampeonato de futebol. A efeméride do Sesquicentenário da Independência, nesse sentido, fornecia o pretexto ideal para converter 1972 em um ano repleto de festividades.

A Taça Independência, ou Mini Copa, constituía-se em um evento chave na extensa e intensa programação elaborada pela ditadura. Tratava-se de manter o clima de euforia e ufanismo despertado pela campanha dos “70 milhões em ação”, no México. Consoante a propaganda oficial, os agora “90 milhões continuam em ação”.[2] A Independência, segundo a mesma peça veiculada na imprensa, revela-se como a “soma de múltiplas vitórias”, destacando-se no mosaico de imagens que compunham a visão do “Brasil Grande”, a do selecionado nacional. À luz da narrativa difundida pela propaganda oficial, a hipótese de uma derrota em casa adquiria as feições de um pesadelo.

Moeda Pelé
Foto: Rodrigo Ferreira/CBF

Não obstante todas as pressões exercidas para demovê-lo da decisão de não vestir mais a camisa verde e amarela, Pelé manteve-se inabalável, declinando o convite para participar da competição destinada a reencenar o ritual da unidade nacional.[3] Embora o Brasil continuasse a ser considerado pela crônica esportiva como o principal candidato ao título, a ausência do célebre camisa 10 introduzia uma interrogação a respeito do futuro desempenho da equipe.  Nesse sentido, não resta dúvida, a Taça Independência viria a ser assombrada pelo “fantasma de Pelé”.[4]

E, no entanto, Pelé não estava completamente ausente da Mini Copa. Deslocado do papel habitual de atleta de futebol para a nova função de “garoto-propaganda”. ele comparecia regularmente nos jornais, revistas e comerciais de televisão, promovendo o televisor Colorado RQ.[5] Conforme ressaltava o anúncio veiculado durante o evento, realizado entre 11 de junho e 9 de julho, Pelé  encontrava-se na “torcida” pelo Brasil. Na torcida, também, achava-se o presidente Médici. Na quarta-feira à noite, 28 de junho, lá estava ele, na Tribuna de Honra, no Maracanã, para prestigiar a estreia do Brasil contra a Checoslováquia,

Cercada de imensa expectativa, a partida, no entanto, frustraria a todos: atletas, comissão técnica, público torcedor, crônica esportiva e autoridades do regime civil-militar. Com efeito, depois do jogo, já de madrugada, Médici permanecia insone, diante do aparelho de televisão, assistindo ao vídeo-taipe do empate de 0 a 0, tentando entender o que se passara com o time tricampeão do mundo.[6] De um modo geral, o futebol apresentado durante a Mini Copa ficaria muito aquém da imagem arrebatadora exibida na Copa de 70. Exceção feita aos 3 a 0 contra a Iugoslávia, realizada no Morumbi, as apresentações da Seleção Brasileira ao longo do torneio suscitaram decepção, críticas e vaias. Sobretudo, elas evidenciaram o problema crucial: encontrar o substituto de Pelé.

Coube a Tostão, na Mini Copa, a árdua  tarefa de herdar a camisa 10. Atuando, porém, em um sistema de ataque confuso, cujos atletas se mostravam taticamente desconexos, e enfrentando, ademais, adversários entrincheirados na defesa, ele pouco podia fazer pela equipe. Como observava Armando Nogueira, se, na Copa de 70, os “diálogos” entre Tostão e Pelé confundiam as defesas adversárias, na Mini Copa de 72 o novo camisa 10 via-se reduzido ao monólogo, à espera de uma interlocução com os demais componentes do ataque.[7]

Tostão e Pelé. Fonte: CBF
Tostão e Pelé. Fonte: CBF

A rigor, os desentendimentos de Tostão não se resumiam ao jogo da Seleção Brasileira. Em fevereiro, quando os dirigentes do Cruzeiro anunciaram a contratação do técnico Yustrich, ele e outros jogadores se posicionaram contra a adoção no clube de um regime “linha dura”.[8] Com efeito, no contexto da militarização do futebol brasileiro, Yustrich emergia como a personificação do autoritarismo nas relações sociais de trabalho, sendo solicitado amiúde pela classe dirigente para solucionar problemas de “disciplina”.[9]

O impasse no Cruzeiro foi resolvido com a transferência de Tostão, em abril, para o Vasco. Recém-chegado ao Rio, o jogador buscava se aclimatar ao novo clube, ao mesmo tempo em que, na Seleção, tentava se adaptar à nova função que lhe atribuía o técnico Zagalo. As coisas, porém, não corriam como o esperado, nem no Vasco, nem na Seleção. Nesta última, as vitórias chegavam em lances produzidos menos em função do entrosamento tático da equipe do que em razão da habilidade técnica dos atletas que a formavam. Nesse sentido, na partida contra a Escócia, no Maracanã, o gol de Jairzinho, aproveitando de cabeça o cruzamento de Rivelino, foi assinalado aos 38 minutos do segundo tempo, gol que classificava o Brasil para a final da competição.[10]

A decisão com Portugal colocava frente à frente as duas melhores equipes da competição, prevendo-se uma  partida dura, de resultado incerto, disputada palmo a palmo do começo ao fim, consoante a análise de João Saldanha.[11] De fato, quando a torcida no estádio já se preparava para a prorrogação, novamente Jairzinho, mais uma vez no cruzamento de Rivelino, fez de cabeça o gol do título, aos 44 minutos do segundo tempo. De acordo com Nélson Rodrigues, qualquer vitória pode e deve ser considerada “doce e santa”, mas a que “explode no último minuto” se converte na “rainha das vitórias”.[12]

Enquanto, na Tribuna de Honra, Médici comemorava o gol, pulando com os dois braços levantados; no gramado do Maracanã, Jairzinho se ajoelhava, as mãos entrelaçadas em prece, os olhos erguidos para o céu.[13] Pouco depois, em meio às comemorações pela conquista da competição, ele se colocou outra vez de joelhos, desta feita com os braços abertos e os punhos cerrados. A performance religiosa de Jairzinho remetia tanto ao passado quanto evocava o futuro. Ela interligava a conquista da Mini Copa  à “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, empreendida em 1964 às vésperas do golpe civil-militar; e, ao mesmo tempo, prenunciava o advento dos Atletas de Cristo, o movimento que viria a se formar na segunda metade dos anos setenta para construir uma hegemonia conservadora no campo esportivo.

Os atletas do Brasil, em 1972, devotos de todos os santos, extravasavam as tensões acumuladas ao longo da competição, celebrando intensamente a vitória, com direito à volta olímpica e troca de camisas com os portugueses. Na Tribuna de Honra, cerca de sessenta agentes policiais cuidavam da segurança das autoridades ali reunidas, em especial, a do general-presidente. De acordo com o protocolo oficial, somente os capitães das duas equipes teriam acesso à Tribuna de Honra. A foto de Médici entregando nas mãos de Gérson o troféu da Taça Independência ocupa um lugar de destaque na iconografia da festa promovida pela ditadura militar.      

Autor: Xico

Uma outra imagem do cerimonial, no entanto, talvez não tenha merecido a devida atenção. Antes da entrega do troféu para Gérson, o general-presidente, seguindo o protocolo, recebeu e cumprimentou o capitão da Seleção de Portugal. A fotografia, publicada no caderno de esportes de O Globo, mostra Eusébio, curvado diante de Médici, estendendo-lhe a mão.[14] À primeira vista, a cena retrata uma reverência excessiva do jogador moçambicano ao ditador brasileiro. Vista por outro prisma, contudo, ela permite conjecturar a respeito do embaraço que ela provocava. De fato, em vez de se apresentar na Tribuna de Honra trajando a camisa 13, da Seleção Portuguesa, Eusébio cumprimentava Médici vestindo a camisa 10, da Seleção Brasileira, trocada com Tostão, ao que tudo indica, ainda no gramado do Maracanã.

 Apropriando-se da verde e amarela, Eusébio, um dos expoentes do futebol africano, rasurava a cena da ditadura civil-militar, evocando o vínculo profundo entre o futebol-arte as lutas de emancipação dos grupos subalternos, elo tecido desde o final dos anos cinquenta, quando jovens periferia da antiga Lourenço Marques (hoje Maputo), jogavam em campos de terra em uma equipe autodenominada “Os Brasileiros”, expressando, dessa maneira, a inspiração que os movia no contexto do colonialismo português, a saber, a Seleção Brasileira de 58.[15]

Os significados da camisa 10, durante a festa da ditadura militar, escapavam ao controle e entravam em choque com a propaganda oficial. Durante a Taça Independência, ela foi passando de mãos em mãos: de Pelé para Tostão, de Tostão para Eusébio, colocando o autoritarismo na roda. A recusa do primeiro em atender à “convocação” da ditadura militar; a dissidência do segundo em relação ao regime de  “linha dura”, e a transgressão do terceiro, ao (des)cumprir o protocolo do nacionalismo exacerbado, reafirmaram, em plena festa do autoritarismo, as narrativas diaspóricas, os valores éticos e as expressões estéticas do futebol-arte.


Notas

[1] Almeida, Adjovanes Thadeu Silva de. O regime militar em festa. Rio de Janeiro, Apicuri/Faperj, 2013.

[2] Cf. A propaganda veiculado na imprensa: “90 milhões continuam em ação”, Jornal do Brasil, 10 de julho de 1972

[3] Cf. “Pelé diz a Médici que não volta à Seleção”, O Globo, 6 de janeiro de 1972.

[4] Cf. Coluna: “Na grande área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 2 e 5 de julho de 1972.

[5] Cf. “Garotos-propaganda do futebol brasileiro”, Jornal do Brasil, 6 de junho de 1972.

[6] “Seleção joga bem mas estreia com empate de 0 a 0 contra os Tchecos”, Jornal do Brasil, 29 de junho 1972. Segundo o jornal, Médici chegara à conclusão de que o Brasil não ganhou por “pura falta de sorte”.

[7] Cf. Coluna: “Na grande área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 29 de junho de 1972.

[8] Segundo Piazza, “seus colegas” também não aceitavam “um regime linha dura no Cruzeiro”. Cf. “Piazza diz a Yustrich que time não o aceita”, Jornal do Brasil, 22 de março de 1972. Tostão. “Tostão: lembranças, opiniões, reflexões sobre futebol”, São Paulo, DBA, 1997.

[9] Florenzano, José Paulo. Afonsinho & Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo, Musa Editora, 1998.

[10] Cf. Coluna: “Na grande área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 6 de julho de 1972.

[11] “Jogo duro e cavado”, João Saldanha, O Globo, 10 de julho de 1972.

[12] Coluna: “Meu Personagem da Semana”, Nélson Rodrigues, O Globo, 10 de julho de 1972.

[13] Cf. “Médici, um torcedor de noventa minutos”, Jornal do Brasil, 10 de julho de 1972.

[14] Cf. O Globo, 10 de julho de 1972. A foto publicada no caderno de esportes traz a seguinte legenda: “Eusébio, com a camisa 10 de Tostão, subiu à Tribuna de Honra para cumprimentar o Presidente Médici”.

[15] Ferreira, Eusébio da Silva. Meu nome é Eusébio. Narrativa recolhida por Fernando F. Garcia. Publicações Europa-América, Portugal, 1966.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A camisa 10 na festa da ditadura. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 28, 2024.
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