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O Time do Amor

Bruno Pagano 13 de dezembro de 2023

Muito se dizia que o Vasco precisava de mais Vasco. Que faltava a essência vascaína dentro do Clube e entre os departamentos que cercavam o futebol – e mesmo o próprio departamento de futebol.

Uma nova linha foi traçada e o problema identificado: faltava experiência. Faltava Vontade. Mas faltava, sobretudo, amor. Amor ao Vasco.

O Vasco, o time da virada, precisava também ser o time do amor. Se unir entre seus pares e lembrar o que somos e porque somos. Lembrar o que significa ser Vasco.

A chegada de Lucio Barbosa, CEO assumidamente vascaíno, deu novos ares para as trocas diárias entre SAF e associativo. O mês de agosto, trazendo o aniversário do Clube e o centenário dos Camisas Negras, nos fez lembrar daqueles que lutaram para que o Vasco permanecesse forte cem anos depois. Nos fez lembrar que é na luta e nos momentos de dificuldade que o vascaíno se encontra.

Os já esperados ataques contra o protagonismo vascaíno na luta contra o racismo, o preconceito social e a xenofobia no esporte – um reacionarismo barato, revisionista e típico do conservadorismo brasileiro – não nos fragilizou. A ofensiva elitista contra São Januário e a comunidade da Barreira do Vasco não nos calou. Pelo contrário. O tiro saiu pela culatra, e diferentes setores da sociedade saíram em defesa da grande injustiça e do preconceito empenhados pelo Estado contra o Vasco e sua gente.

E isso tudo influencia muito, é claro. Já faz décadas que Nelson Rodrigues avisou que o maior cego é o que só vê a bola. Um bom ambiente muda tudo. Mas sem evolução técnica da equipe, é apenas um bom ambiente.

Na partida contra o Coritiba, na goleada por 5 a 1, ainda em 21/09, o Vasco entrou diferente. Entrou com a mesma proposta de jogo que teve nas últimas partidas, é verdade. E novamente com a magia da Camisa Negra ao nosso lado. Mas entrou diferente. Mostrando que poderia virar o jogo. Mas não se tratava apenas daquela partida.

O reencontro do torcedor vascaíno com seu estádio poderia ser resumido em uma única palavra: amor. São Januário é a materialização da luta e do amor vascaíno. Foi também com a virtude de um amor corajoso que o Vasco foi se reforçar e buscar uma nova personalidade em campo. Desde a chegada de Ramon Diaz, o Vasco pareceu jogar com um pouco mais de paixão pelo que faz. E levou essa vontade para todas as partidas restantes do campeonato. Com a faca no pescoço, o grupo comandado por Ramon mostrou que não desistiria de alcançar o objetivo, mesmo contra todas as estatísticas. Algo que havia se perdido com Barbieri.

Os reforços, certeiros, apontaram o caminho para a virada vascaína, que se confirmou na última rodada contra o Bragantino, novamente com a Camisa Negra. Entre erros, acertos e muitos obstáculos, o Vasco conseguiu. Sob o comando de Don Ramon, cobra da bola, as carências do elenco começaram a ser sanadas a partir do olhar experiente do treinador. Ele deu o indicativo em uma entrevista logo no início do trabalho, perguntado sobre a recusa de Vietto: “precisamos de jogadores que queiram estar aqui”. Era o início do “Ramonismo Cultural”, como brincam os cruzmaltinos.

Foi isso que o Vasco foi buscar. Trouxe a experiência de Medel, um homem que nunca, em um único dia de sua vida, jogou brincando. Simples e técnico, o chileno acertou a defesa vascaína exalando vontade e paixão. Em campo, foi acompanhado algumas vezes por Leo, um vascaíno que ainda não sabia que era vascaíno — é raro, mas acontece muito —, e que mostrou identificação instantânea com a Colina Histórica e sua gente. Os torcedores vascaínos, em contrapartida, abraçaram Leo como um velho amigo. Não era um encontro, era um reencontro. Daquelas coisas que ultrapassam o campo esportivo. Que ninguém se atreve a explicar.

Ao lado deles, o experiente Maicon também colocou seu coração na ponta da faca para mostrar seu valor. Desrespeitado desde a sua chegada, alguns jornalistas veicularam que a comissão técnica havia se assustado com o desempenho de Maicon nos treinos, divulgando que não contavam com o zagueiro para o restante da temporada. Surpreendendo a todos, Maicon cresceu muito na reta final e terminou o ano como titular da defesa vascaína. Nas redes sociais, o “God of Zaga”, como é chamado pela torcida, nunca escondeu um dos pilares da sua volta por cima: o amor.

Vasco
Partida entre Vasco e RB Bragantino, válida para a 38a rodada do Brasileiro 2023, realizada no estádio São Januário. Foto: thenews2.com/Depositphoto

E falando em desrespeito, o que dizer sobre Serginho?

Devemos é nos desculpar. Em sua chegada, Serginho foi constrangido em perguntas de jornalistas, menosprezando sua trajetória no futebol. É claro que a dúvida com um jogador desconhecido pelo público brasileiro existia. Mas a maneira como Serginho foi abordado naquela ocasião não condiz em nada com a identidade vascaína. No entanto, Serginho nunca se mostrou abalado. Fez o gol da vitória contra o Atlético-MG e garantiu 3 pontos ao Vasco. Caiu de produção e deixou de participar de alguns jogos, mas jamais abaixou a cabeça. Se calou, continuou trabalhando e mostrou sua estrela na partida decisiva contra o Bragantino, fazendo o gol da permanência vascaína na Série A. Chamado de “Serginho Macedônia” na arquibancada, o autor do último gol do Vasco no ano, o mais importante, se preparou para esse momento sem saber. Agora ele termina a temporada com um novo status. Mostrando a força de um rei, agora ele é Serginho, O Grande. Tal como Alexandre.

Para a ponta, a grata surpresa foi o retorno de Rossi, que nas redes sociais já cavava um retorno para São Januário há alguns anos. Ele deu 3 assistências e marcou 1 gol em apenas dois jogos, contra Fluminense e Coritiba. Terminou a temporada como o melhor assistente da equipe, com 4 passes pra gol. Nas últimas rodadas, se lesionou e caiu de produção. Mas continuou mostrando seu comprometimento com o objetivo da temporada.

Rossi diz que voltou para o lugar de onde nunca deveria ter saído, e nunca escondeu seu amor pelo Gigante. De tanto insistir, o Vasco caiu uma vez mais “no papinho” do Búfalo. E que bom que caiu. Seu desempenho, para além da dedicação em campo, apontou um dado curioso: Rossi viveu em 2023 seu melhor momento com a camisa vascaína em todas as suas passagens. No vestiário, sua contribuição ao bom ambiente construído também foi notável. Ao fim da última partida, fez questão de defender a instituição subindo na bola, devolvendo o deboche de Soteldo, rebaixado para a Série B com o Santos e toda a arrogância do locutor da Vila Belmiro, que caiu na armadilha de comemorar cedo demais.

Rossi foi outra grande manifestação da figura do jogador-torcedor. Tecnicamente falando, qualquer atleta pode ter sua performance questionada. Vontade e amor, no entanto, são valências que jamais podem ser cobradas de jogadores como Rossicley.

Outra grata surpresa foi El Tanque Pablo Vegetti. Absolutamente conhecedor dos atalhos do gol. O pirata, como é chamado pela torcida vascaína, leva esse apelido pela comemoração que faz em homenagem ao seu antigo clube, o Belgrano, onde atuou por muitos anos e construiu idolatria. Vegetti já havia mostrado que funciona bem quando acolhido. Agora, o novo artilheiro do amor nos mostrou também os gols que o fizeram artilheiro na Argentina. No Brasileirão, foram 10 em 21 jogos, com 1 assistência.

Também não podemos esquecer de Gabriel Pec, o ponta que todo time precisa. Impressionante como se adaptou e se tornou este jogador rápido e voluntarioso. Muito técnico na base, é talvez o jogador que demonstrou maior vontade de mudar o destino do Vasco no Brasileirão 2023. Correu em campo até a exaustão, nos fazendo duvidar de sua condição asmática. Pec, hoje, é o maior exemplo de uma base que forma, antes do atleta, o homem. Mais um belíssimo trabalho das divisões de base e, principalmente, do Colégio Vasco da Gama. Sua relação com o menino Gui furou todas as bolhas e superou diferentes barreiras clubistas. Pec, o amigo do Gui, é um “queridíssimo”. Não há melhor definição.

Por último, e não menos importante, o grande símbolo do futebol romântico vascaíno: Paulinho (de) Paula.

Até o nome vem carregado de romantismo. Paulinho construiu sua carreira no futebol árabe, após fazer base no Fluminense. Assumidamente vascaíno, surpreendeu ao trazer vários integrantes de sua família na apresentação. De início, alguns torcedores até chegaram a desdenhar da emoção de Paulo, que logo deu lugar ao ensejos carinhosos da torcida. Paulinho confidenciou que estava realizando o seu sonho e de toda a sua família. Antes mesmo de entrar em campo, já era um protegido das arquibancadas. Mas ninguém esperava o que viria a seguir.

A estreia contra o Corinthians, quando cometeu um pênalti bobo, não foi muito boa. Mas a personalidade para não se abater deu sobrevida a um jogador que se tornou um dos melhores volantes do Brasileirão desde sua estreia. Paulinho foi soberano em todas as primeiras partidas que fez pelo Clube, marcando e atacando por todo o jogo, até o seu limite. Dominante no setor de meio-campo, mostrou qualidade com lances plásticos e caiu nas graças da torcida. Jogando em seu time do coração, um jogador antes esquecido na liga saudita realizou seu sonho de criança em alto nível. Teve um golaço anulado contra o Palmeiras, mas o melhor ainda estava por vir.

Vasco
Ao teu lado até o fim. Foto: thenews2.com/Depositphoto.

Paulinho caiu de rendimento na reta final do campeonato, é verdade. Mas por um acaso, com a triste lesão de Marlon Gomes contra o Bragantino, entrou na partida e mudou o jogo. Depois de ótimas apresentações, golaço anulado e queda de rendimento, tudo indicava que o primeiro tento de Paulo com a camisa vascaína ficaria para 2024. Mas quis o destino que ele deixasse sua marca na partida mais importante de 2023, a última.

Paulinho é o atleta vascaíno que mais lembra o futebol romântico. A figura do jogador-torcedor. Uma utopia futebolística. Amor e performance, um estimulando o outro. Lembra um tempo em que jogadores jogavam menos pelos bichos, e mais pelo amor à camisa. Não à toa, naqueles tempos, se dizia ser atleta “amador” (que é, ao pé da letra, aquele que ama).

Na remontada vascaína — ou seria melhor Ramontada? — , Paulinho Paula mostrou-se o maior símbolo de um Vasco que se perdeu pra se encontrar. Um time que joga por respeito ao escudo e que sofre com seus torcedores. Um time que tudo aguenta, que tudo suporta. Um time que mirou uma virada acreditando no amor. Que através de seu comandante, uniu forças e se abraçou no manifesto “NO VA A BAJAR” como um compromisso de vida. E, contrariando estatísticas, foi lá e fez.

Os números divulgados pelos estudiosos da probabilidade chegaram a apontar mais de 90% de chance de rebaixamento para o Vasco. Aos matemáticos, respondemos com o coração: fiquem com os números. Nós, vascaínos, ficaremos sempre com a magia das coisas que não podem ser medidas. Ficaremos com o amor.

Mas será que um dia vão entender?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bruno Pagano

Historiador (UFRJ), pesquisador da História do Futebol e consultor de conteúdo. Autor do livro Russinho: o inigualável êxtase do gol.

Como citar

PAGANO, Bruno. O Time do Amor. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 13, 2023.
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