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Pacaembu, futebol e rock’n’roll

Luciane de Castro 9 de setembro de 2017

Há um espaço no bairro onde morei por alguns anos, que me remete aos melhores momentos da minha vida: o campo de futebol. Naquele campo com dimensões disformes, marcas desiguais e misto de terra e grama, passei muitas manhãs de domingo acompanhando os jogos dos quadros 1 e 2 do time do bairro.

Foram poucos anos, mas suficientes para minha memória afetiva buscá-lo invariavelmente quando penso em futebol. O que faço diariamente.

Consegui revisitar o campo, na cidade de São José dos Campos, há mais ou menos seis anos. Tudo mudou por lá. O campo é cercado, totalmente gramado e com vestiário mais decente. Entretanto, ali ainda se pratica futebol e ele permanece, apesar de cercado, aberto para que a bola role com ou sem compromisso.

A memória afetiva não é privilégio meu e ela não diz respeito apenas à lugares, mas também à cheiros, gostos, pessoas, experiências. Quando penso no campo de futebol do bairro onde morei, me vem à mente as pessoas com quem convivi naquele espaço, o cheiro da terra molhada aos poucos pela chuva que caía ou o pôr do sol na Serra da Mantiqueira que apontava em determinado pedaço do campo.

Meu único privilégio é saber que ele ainda está lá e que posso, eventualmente, botar meus pés no campo e reviver um período bastante feliz da minha vida.

discorri por aqui sobre o desprezo pela manutenção da memória e esta observação é ratificada quando o Estádio Paulo Machado de Carvalho é colocado à disposição de empreendimentos privados com claras pretensões mercantilistas.

07-06-2014- Brasil - Sao Paulo - Campo de futebol do Estadio do Pacaembu em Sao Paulo. Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Publicas
Vista interna do Estádio do Pacaembu. Foto: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas.

Se o Pacaembu carrega uma profunda ligação com os clubes da capital e com o Santos, de modo mais específico, ele também foi palco de shows memoráveis, tão importantes quanto a própria história do rock’n’roll.

Minhas lembranças mais latentes neste aspecto datam de 1995 e 1996: Rolling Stones com a turnê Voodoo Lounge e AC/DC com a turnê Ballbreaker, respectivamente. O Paca recebeu o Monsters Of Rock, recebeu Robert Plant e Jimmy Page, Paul McCartney, Iron Maiden, Red Hot Chilli Peppers entre tantas outras bandas e cantores.

stonestour1995

O show da turnê Voodoo Lounge, dos Stones, é especialmente relembrado por uma geração inteira de amantes do rock’n’roll. Aquele dia em que uma tempestade cobriu o Pacaembu, cancelou o show da Rita Lee, cortou pelo meio o show do Barão Vermelho e nos “brindou” com Spin Doctors, está na memória afetiva de 8 entre 10 amigos que participaram daquela sandice.

Entre os que suportaram a chuva, desafiou ~de certo modo~ os raios e encarou a serpente cuspidora de fogo, eu, meus compadres e minha irmã. A chuva, a bem da verdade, nos ajudou a chegar mais perto do palco, e, logo, mais perto dos passeios desencanados do Sr. Vida Longa E Não Entendo Como Keith Richards.

Foi massa dançar Tumbling Dice alí, no gargarejo. Como esquecer o que o Paca me proporcionou neste show? Impossível!

E aí veio 1996, meses depois de ter trazido Laura a esse planeta e com ele a primeira oportunidade de ver AC/DC. Em 1985, com 14 anos, não pude entrar na vibe das amigas mais velhas e pegar carona até o Rio. Mas 96 veio para acalentar o coração de fã.

Noves fora abstraí a abertura com Angra, a abertura de Ballbreaker produziu em mim o mesmo efeito que o show da turnê The End do Sabbath: boquiaberta e nada mais. Contemplação e uma chacoalhada ou outra de cabeça, que era pra não perder os solos de Angus Young e a simpatia de Brian Johnson.

Os anos passaram, as filhas vieram e a necessidade de conceder mais atenção à família também. Voltar ao Pacaembu, apenas em algumas raras ocasiões, incluindo finais do Paulista Feminino.

Não pude ver Canhoteiro nem Leônidas da Silva. Não pude ver o Santos de Pelé, não pude ver um tanto de história que o nosso Paca ajudou a desenrolar, mas eu sabemos o tamanho de sua importância para a memória afetiva de são paulinos, corinthianos, palmeirenses, santistas.

O Paca recebeu jogos de Copa Roca, Copa do Mundo, Sul Americano, Libertadores da América. Recebeu um mundo de jogos e caminha para uma configuração típica de quem só pensa dentro do quadrado do consumo: shopping e hotel. Aquele típico rolêzinho playba.

Para tanto, a AGIR – Arquibancada Ampla, Geral e Irrestrita, se posicionou contra a entrega do Pacaembu à iniciativa privada, o que o prefeito “gestor”, tem feito com os espaços públicos da cidade.

O futebol, assim como o rock’n’roll não pode parar. Se os shows não são mais possíveis ~o que é compreensível~ que a bola siga rolando. E para isso lutaremos.

Leia o texto de Flavio de Campos – O seu, o meu, o nosso Pacaembu!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Pacaembu, futebol e rock’n’roll. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 9, 2017.
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