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Paradoxos do F.C. St. Pauli

João Manuel Casquinha Malaia Santos 30 de setembro de 2019

O F.C. St. Pauli defende pautas de um espectro politico mais à esquerda. No entanto, vende milhares de camisas, tem um dos marketings mais agressivos da Bundesliga e tem contratos milionários, como o que assinou com a gigante Under Armour. O segundo artigo da série sobre o F.C. St. Pauli procura refletir sobre os paradoxos entre os ideais que o clube defende e o mundo do futebol profissional.

Fiz uma pergunta ao presidente do F.C. St. Pauli, Göttlich, ao final de nossa conversa. Perguntei onde ele gostaria de chegar com o futebol do clube. A resposta: “Quero ganhar a Champions League. Como torcedor, tenho direito de ter esse sonho. Quanto mais competitivo, mais aparecemos. Quanto mais aparecemos, mais nossos ideais podem ser espalhados. Imaginem o que seria isso levantando a taça da Champions League”. No mundo dos negócios contemporâneos do futebol, quanto teria que se aprofundar nestas contradições o F.C. St. Pauli para realizar o sonho de Oke?

Torcida do St. Pauli. Foto: Twitter @FanladenStPauli

De certa forma, os paradoxos do F.C. St. Pauli tendem a ser pensados para confortar torcedores que procuram alternativas ao que é chamado de “futebol moderno”, ou a mercantilização total das competições do futebol profissional. Sou da opinião de que o futebol pode ser uma força transformadora da sociedade. Assim como qualquer fenômeno, o futebol tem entranhado em seu tecido tudo o que há de bom e, principalmente, o que há de ruim na sociedade. Assim como temos um futebol que pode ser considerado o símbolo próprio do capitalismo (por exemplo, os campeonatos profissionais), temos também iniciativas do futebol que dialogam com elementos da resistência a esse modelo (por exemplo, os diversos campeonatos alternativos, como a Copa América Alternativa). Como adoro futebol, encaro este fenômeno como possibilidade de lutar por um mundo melhor.

 

Branding F.C. St. Pauli

É mais ou menos por aí que o F.C. St. Pauli decidiu funcionar. Decidiu adentrar o mundo do futebol profissional para, da melhor e mais eficiente maneira possível, combater alguns dos mais perversos males oriundos do sistema atual de funcionamento da sociedade. Petra Daniel e Christos Kassimeris, em um artigo publicado na revista Soccer and Society, com o título The Politics and Culture of FC St. Pauli: from leftism, through anti-establishment, to commercialization (2013), abordam a questão do “branding F.C. St. Pauli”, ou seja, que valores e propósitos serão destacados para dar ao clube o aspecto de uma marca. Os autores afirmam que “a identidade anti-establishment do clube parece ter um paralelo com a gentrificação e comercialização do próprio clube, ou ao menos de seu símbolo, o Jolly Roger”.

Bandeira do pirata irlandês Edward England, uma das primeiras documentadas com a caveira e os ossos cruzados (século XVIII).

Jolly Roger é o nome dados às bandeiras piratas. E há um pirata que tem um significado especial para a cidade portuária de Hamburgo: Klaus Störtebeker. Ele teria sido traído pela Liga Hanseática e decapitado em Hamburgo, em 1401. Passou a ser celebrado desde então como símbolo dos comerciantes da comunidade que enfrentavam os poderosos mercadores da Liga.

O uso do símbolo pelo clube remonta a história de um punk veterano, morador do bairro, Mabuse. Ele teria sacado uma bandeira com o símbolo do pirata (a caveira com os ossos cruzados) dessas presente em um bar e levado para o estádio nos anos 1980. De acordo com Petra Daniel e Christos Kassimeris, há todo um grupo de pessoas e organizações por trás da caveira com os ossos cruzados. O desenho foi desenvolvido por Steph Brown, da empresa Texman, e patenteada para usos de marketing pela Merchandize GmbH. O estilista Herr von Eden produziu uma linha de moda do F.C. St. Pauli e a distribuição ficou a cargo da empresa de marketing Upsolut. O trabalho da Upsolut colocou o FC St. Pauli entre os quatro mais bem sucedidos clubes da Alemanha para o mercado de venda de produtos do clube. Seus produtos estão à venda nas Fanshops do estádio e da Reeperbahn, além de estar à venda também em diversas lojas no aeroporto de Hamburgo e pela internet, na FanShop, com preços bem salgados por sinal.

Bandeira estilizada e marca registrada pelo St. Pauli, desde 2002.

Não tenham dúvidas que nestas ações há toda uma estratégia de gestão ancorada nos mais intensos métodos de marketing. A ideia é estimular o consumo por meio do incentivo ao uso de produtos do clube, cujo símbolo se associa à subversão, possibilitando que este consumidor faça parte de uma comunidade imaginada de oposição à sociedade capitalista. Desta maneira, os diretores e torcedores do clube procuram aumentar o apoio em locais que ultrapassam o bairro de St. Pauli. Estratégia que vem tendo amplo sucesso, diga-se de passagem.

Petra Daniel e Christos Kassimeris apontam que esta foi uma necessidade do St. Pauli. Em 2002, o clube enfrentou uma quase bancarrota, no mesmo ano em que a caveira se tornou símbolo do clube. Foi o ano também que Corny Pittman assumiu a presidência do clube. Assumidamente homossexual, Littmann é empresário da área do entretenimento, ator e proprietário do Schmidt Theater, um teatro no bairro de St. Pauli. A crise financeira levou à democratização das estruturas internas do clube. Uma das reformulações partiu dos 50 empregados de tempo inteiro e mais 150 que trabalhavam meio período. Estes trabalhadores do clube criaram um concelho de trabalhadores legalmente protegido (Betribstrat). 

Jaqueta Levi’s vendida no site do clube: 129,95 euros. Foto: Reprodução.

Mas tornava-se urgente conseguir novas fontes de receita. Muitas dessas ações são apoiadas nos ideias da Fanladen. Partiu desse grupo a iniciativa da adoção da caveira, mas também da criação de grupos de trabalho que, por exemplo, conseguiram tirar dos camarotes do clube uma “strip-house” que colocava mulheres dançando e que tiravam uma peça de roupa a cada gol do F.C. St. Pauli. Em caso de vitória do clube, ficavam nuas.

Se o clube parece estar sempre entre a cruz e a espada quanto às contradições da comercialização da sua marca frente aos ideais que defende, segue tendo a base de torcedores como uma fonte importante de receita e de gestão. Em 2011, por exemplo, o clube emitiu 5 mil títulos (com 6% de juros de retorno) para conseguir capital para enfrentar a divisão de elite na temporada 2011-2012. Todos os títulos foram vendidos, levantando seis milhões de euros.

O contrato com a Under Armour

A última grande polêmica neste sentido aconteceu recentemente, envolvendo o contrato assinado com a gigante norte-americana de material esportivo Under Armour, que passaria a fornecer o uniforme de jogo do clube. A Under Armour não tem seu foco no futebol. Na Europa, patrocina apenas quatro clubes: Southampton (Inglaterra), Queens`s Park Rangers e Airdrieonians (Escócia), além do Locomotiv Moscow (Russia). O foco da empresa é o patrocínio de atletas dos mais variados esportes e até mesmo de estrelas da moda e do cinema, como Gisele Bündchen e Dwayne Johson. O curioso, é que da extensa lista de seleções, clubes ou associações esportivas, atletas e celebridades patrocinados pela empresa, apenas dois são alemães: o FC St. Pauli e o zagueiro do Bayer Leverkusen, Jonathan Tah.

Produto vendido no setor de caça do site da Under Armour. Foto: Reprodução.

De acordo o CEO e fundador da empresa, Kevin Plank, a identidade do F.C. St. Pauli “se encaixa perfeitamente na nossa marca”, pois a Under Armour também cultiva a imagem de uma espécie de azarão, tentando bater os gigantes Adidas e Nike. A declaração foi dada em 2015, no lançamento de uma filial da empresa em Munique.

O problema é que a Under Armour é uma marca famosa por produzir material para caça e isso gerou inúmeras reclamações por parte de torcedores do clube. Kevin Plank recebeu pessoalmente nos Estados Unidos o presidente do clube, alguns membros da direção e quatro torcedores ultras para discutir ações da empresa quanto ao clube.

A decisão de fechar contrato com a Under Armour foi do presidente Oke Göttlich. Ele deu uma entrevista para o podcast MillernTon, afirmando que apesar de ser uma decisão tomada pela nova diretoria, a mesma foi explicada aos diversos órgãos do clube. Na conversa que tive com Oke, o mesmo afirmou que não existe nenhuma empresa de material esportivo disposta a pagar o que um clube profissional precisa minimamente para ser competitivo e que seja 100% ética. A questão é que o contrato era bom em termos econômicos para o clube, mas também para sua maior exposição no mundo e também em um plano de alinhamento dos produtos com os ideais defendidos pelo clube.

Uniforme 3 da temporada 2019-2020. Foto: Reprodução.

Este tipo de ação aparece expresso de maneira clara nos uniformes de jogo da equipe. O uniforme ganhou detalhes da bandeira LGBTQ+ na temporada 2018-2019. E para a temporada 2019-2020 os detalhes ganharam uma projeção ainda maior na terceira camisa. Aliás, nesta temporada a Under Armour mostrou que quer mesmo apostar na cultura dos torcedores do clube.

No site da empresa, há a explicação da inspiração do segundo uniforme. Afirma que a cultura do clube é sem paralelo e molda a paisagem urbana de Hamburgo, metafórica e fisicamente. Eles se referem aos inúmeros adesivos (stickers) colados por toda a cidade, especialmente em St. Pauli e no estádio do clube. O designer dos novos uniformes do F.C. St. Pauli teria visitado o bairro e o estádio. Fez os uniformes trazendo este “espírito cultural” para as camisas. O segundo uniforme seria formado por esses adesivos que expressariam o amor pelo clube, a “atitude St. Pauli”. Os mesmos adesivos que estão nos vestiários, na entrada dos túneis, nas paredes das arquibancadas e na loja do clube estão representados nas camisas.

Detalhe dos “stickers” no uniforme 2. Foto: Reprodução.

No entanto, nem tudo são flores. Atitudes do CEO e fundador da Under Armour, Kevin Plank, já colocou o F.C. St. Pauli em situações das quais o clube não teve como não se posicionar. Em fevereiro de 2017, o presidente do clube enviou uma carta ao escritório da empresa na Europa, mostrando-se contrário à visita de Plank ao presidente Donald Trump. O clube postou uma nota em seu site oficial (que tem opção em alemão ou em inglês). A nota, assinada pelo presidente do clube Oke Göttlich, mostrou seu desagravo ao fato de o presidente da Under Armour apoiar abertamente a política de Trump, pedindo para que Plank reconsiderasse suas declarações de apoio ao presidente dos EUA, uma vez que sua empresa é formada por empregados imigrantes ou de famílias imigrantes que trazem muitos benefícios à Under Armour e ao próprio Plank. Afirmou que apoiar slogans de Trump como “proteja nossa casa” também se aplicaria ao F.C. St. Pauli e aos seus valores.

O ambiente que influencia a atuação política: um exemplo

Dentro deste espectro do futebol profissional, o St. Pauli se define nos seus estatutos como antifascista, antirracista e anti-homofóbico. E dentro desta perspectiva toma diversas atitudes por parte dos envolvidos com o clube: dirigentes, torcedores e até mesmo jogadores. E, em relação aos jogadores, um deles se destacou na história do clube e na sua atuação política, tanto no clube, mas principalmente depois de sua passagem pelo F.C. St. Pauli.

Em conversa com Sandra Schwedler, a presidenta do conselho do clube contou que uma das questões mais complicadas é conseguir a adesão dos jogadores de maneira mais efetiva às causas do St. Pauli. Sandra disse que, com certeza, a maior parte dos jogadores apoiam as causas defendidas pela diretoria e pelos torcedores. O ambiente os influencia, mas afirma que o normal é os jogadores não se envolverem de maneira mais ativa.

Naki com a bandeira do Curdistão. Foto: Twitter @DenizDersimNaki

Há histórias de jogadores que se envolveram mais ativamente na simbologia política do clube. Um exemplo, talvez um dos mais emblemáticos, é Deniz Naki, jogador alemão de origem curda. Naki tinha 20 anos, em 2009, quando assinou com o St. Pauli, vindo do Bayer Leverkusen. Naquele ano, Naki protagonizou uma cena que ficou eternizada para a torcida do St. Pauli em um jogo contra o Hansa Rostok. Este jogo é conhecido na Alemanha e no mundo como o “Political Derby”, uma vez que o Rostok reúne diversos grupos de torcedores neonazistas.

O jogo foi na casa do Rostok e estava 0 a 0 até o minuto 79. O St. Pauli fez 1 a 0, com Lehmann e três minutos depois, Naki decretou a vitória do St. Pauli. O jogador correu em direção à torcida adversária e passou o dedo polegar pela garganta. Ao final do jogo, foi junto dos demais jogadores junto da torcida do F.C. St. Pauli. Colocou uma bandeira preta da caveira pirata no chão, foi até a torcida, pegou uma bandeira do clube de Hamburgo e cravou no gramado do Hansa Rostok.

Naki seguiu sua carreira e sua vida tomou um rumo que misturou política e futebol. Em 2013, passou a jogar no futebol turco, defendendo publicamente os curdos da Turquia e se envolvendo na política interna daquele país de maneira intensa, principalmente contra o presidente Erdogan. Em 2015, passou a jogar pelo Amed SK, da segunda divisão turca, um clube que fica na cidade de Diyarbakir, no sudeste turco, região de maioria curda. O time é considerado como um símbolo da identidade curda na Turquia, sofrendo várias represálias pela Federação Turca de Futebol. Ao final de 2017, Naki já afirmava temer por sua vida. Em janeiro de 2018, teve seu carro alvejado em uma estrada na Alemanha, segundo ele, por motivos políticos, uma vez que discursava abertamente a favor dos curdos e contra a política militarista turca contra os curdos, conduzida por Erdogan. 

Em frente à sede da ONU, em Zurique, Naki fala por ocasião da greve de fome, com outros curdos. Foto: Twitter @DenizDersimNaki

Foi banido do futebol pela federação turca por três anos por propaganda separatista e por suspeitas de ligação com o partido ilegal PKK (Partido dos Trabalhadores Curdos). Em abril de 2017, foi condenado a 18 meses de prisão na Turquia por “propaganda terrorista”. Em março de 2018, realizou junto de outros curdos, uma greve de fome em frente à sede da ONU, como forma de pressionar a entidade a tomar medidas contra Erdogan, após a invasão de Afrin, região de maioria curda no norte da Síria, por tropas turcas, causando a morte de mais de 1.500 curdos. 

Quando passou pelo F.C. St. Pauli, Naki tinha apenas 20 anos. Nem sabia o que o futuro lhe reservava: tentativa de assassinato, banimento do futebol turco, prisão decretada, greve de fome. Tudo por motivos políticos, por sua defesa do povo curdo. Com certeza, sua passagem de três anos pelo F.C. St. Pauli trouxe a ele um ambiente propício à reflexão política. Isso pode ter influenciado em sua formação e em sua disposição para se posicionar.

Se o F.C. St. Pauli enfrenta contradições, assim como nós enfrentamos cotidianamente em nossas vidas, não se pode negar que traz um ambiente diverso ao universo do futebol. Dentro do futebol profissional, é difícil sobreviver tentando ser diferente. O F.C. St. Pauli segue tentando. E, de certa maneira, conseguindo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Paradoxos do F.C. St. Pauli. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 32, 2019.
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