162.5

“Por que o professor está falando de futebol?” – A geopolítica das quatro linhas nas aulas de Geografia

Thaimon Socoloski 6 de dezembro de 2022

Utilizar o futebol como ferramenta didática em sala de aula possibilita a elaboração de aspectos práticos e metodológicos de abordagem capazes de atender à propósitos de diversos conteúdos, em diferentes disciplinas. Na geografia, o referido esporte será aqui utilizado com o objetivo de exemplificar a rivalidade entre seleções e as dinâmicas econômicas, políticas e socioculturais no mundo, associando os conflitos e tensões geopolíticas ao referido esporte.

O presente texto é um relato de atividades já aplicadas com alunos e alunas do ensino fundamental, tanto da rede pública quanto privada, bem como uma proposta de atividade que pode ser executada com a temática, e que foi apresentada durante o II Seminário Online do Ludopédio – Futebol na sala de aula e para além das quatro linhas, entre os dias 16 e 17 de setembro de 2022. Como objetivo principal, busca-se relacionar os conteúdos sobre geopolítica e as rivalidades no futebol mundial, tendo como exemplos de discussão confrontos que extrapolam as quatro linhas, como consequência de fatores externos ao esporte, mas que são tangíveis quando há enfrentamentos em campo. O objetivo deste relato não é elaborar novos dados sobre os confrontos, mas sim, a partir da revisão bibliográfica sobre o assunto, discutir e abordar maneiras de se usar o futebol como material em sala de aula.

O futebol será utilizado como ferramenta de ensino na disciplina de geografia, referente a alguns conteúdos trabalhados no 9º ano do ensino fundamental, sendo eles: a) analisar fatos e situações para compreender a integração mundial (econômica, política e cultural), comparando as diferentes interpretações sobre globalização e mundialização; e b) descrever as transformações territoriais, considerando o movimento de fronteiras, tensões, conflitos e múltiplas regionalidades na Europa, Ásia e Oceania. Salienta-se que a utilização desta ferramenta não se restringe a apenas estes conteúdos, pois a mesma apresenta um variado leque de possibilidades de ser executada.

Como neste presente ano teremos a 22º edição da Copa do Mundo de Futebol Masculino, realizada entre os meses de novembro e dezembro no Catar (sendo esta a primeira disputada no Oriente Médio), a metodologia de aplicação se realiza a partir da relação entre as disputas entre países, nas suas diferentes esferas, e como elas adentram em campo, se manifestam nos meios políticos, nas arquibancadas e nas ruas. Por ser o maior evento esportivo do ano, chama a atenção dos alunos e alunas que se identificam com o esporte, tornando-o assim mais atrativo de ser trabalhado. Para além, pode-se abordar com os alunos e alunas assuntos sobre os mundos do trabalho, relacionando as “polêmicas” que envolvem o país sede do torneio, que vão desde questões sociais, até questões trabalhistas e migratórias ligadas às construções dos estádios.

Para Carvalho (2012), a utilização do futebol como instrumento político e da política como forma de expressão do futebol comprova, com riqueza de argumentos, que não se trata de um esporte à margem da sociedade. Ainda, segundo o autor, “é impossível desvincular o futebol de cada sociedade constituída, dos grupos humanos locais, do sistema político, da língua ou do clima” (CARVALHO, 2012, p. 18). Observa-se que ao longo da história, diversos foram os governos – autoritários ou democráticos – que tentaram usar o futebol como forma de buscar transferir o sucesso no esporte para a popularidade governamental, prática esta que ainda se faz presente nos dias atuais.

Indo ao encontro de tais análises, para Silva & Chaveiro (2006), o futebol reúne multidões, mobiliza capitais, participa da geopolítica atual, expressa as contradições viscerais do sujeito contemporâneo, evidencia a violência, a corporeidade, as condições psíquicas e desenvolve afetos, dissidências, junções, alegrias e tristezas.

Diversos são os materiais que podem ser utilizados como fonte de pesquisa para professores e professoras abordarem diferentes temáticas em sala de aula a partir do futebol. Textos acadêmicos, matérias jornalísticas, história oral, livros didáticos, dentre outras, apresentam um vasto levantamento sobre a temática, principalmente no que tange a geopolítica. Aqui, dá-se principal destaque para o levantamento de confrontos realizado por Igor Breno Barbosa de Sousa, Gabriel Costa da Costa e José Sampaio de Mattos Junior, intitulado “A geografia das quatro linhas: o Futebol e a Geopolítica nas rivalidades das seleções nacionais”, publicado no ano de 2021, e que apresenta uma grande variedade de confrontos que podem ser trabalhados em sala de aula como exemplificação.

Desta forma, abordarei alguns exemplos de conflitos e a sua relação com o futebol e os conteúdos didáticos na disciplina de geografia. A tensão entre Ucrânia e Rússia pelo território da Crimeia, desde 2014, bem como o posterior avanço russo pelo território ucraniano no presente ano de 2022, teve um episódio que gerou atrito geopolítico na Eurocopa de 2021, nos bastidores das quatro linhas: a seleção de futebol ucraniana mostrava no centro do uniforme o contorno do mapa do país incluindo a Crimeia, região anexada pela Rússia, além de uma frase constantemente associada ao nazismo. Desta forma, observa-se a utilização do futebol como meio de afirmação nacional e territorial. No que tange a Copa do Mundo do Catar, a seleção ucraniana não se classificou, e a seleção russa foi excluída da disputa já durante a repescagem das Eliminatórias Europeias. Como conteúdo didático que pode ser relacionado com este caso específico dentro da geografia, está vinculado à modernização do leste europeu, bem como sobre fatores relacionados à Rússia, como transição, economia, potencialidade regional e a própria questão das disputas no território da Criméia.

Ucrânia 2021
Fonte: divulgação

Outro confronto que ganha destaque é entre Argentina e Inglaterra, que apesar da distância geográfica entre ambas, é carregado de fatores que extrapolam o futebol. A Guerra das Malvinas, ocorrida entre abril e junho de 1982 pela soberania sobre estes arquipélagos austrais, reivindicados em 1833 e dominados a partir de então pelo Reino Unido, foi um “barril de pólvora” para os confrontos em campo. O maior, e inesquecível para os argentinos, foi na Copa do Mundo de 1986, sediada no México, onde com dois gols de Diego Maradona, a seleção argentina superou a seleção inglesa nas quartas de final, sagrando-se posteriormente campeã mundial pela segunda vez. Tal confronto já havia tido contornos de tensão entre as seleções na Copa do Mundo de 1966, desta vez com triunfo dos ingleses, um ano após a Organização das Nações Unidas (ONU) ter aceitado uma reclamação formal da Argentina acerca de suas pretensões soberanas sobre as ilhas. Quanto aos conteúdos que podem ser trabalhados a partir deste exemplo, na geografia, estão vinculados às temáticas sobre os níveis de desenvolvimento do Reino Unido.

Outros confrontos que podem ser trabalhados em sala, relacionando futebol e geopolítica: a) México x Estados Unidos – confrontos territoriais; b) Guatemala x Belize – onde os guatemaltecos reivindicam a porção beliceña como parte de seu território soberano; c) os confrontos e rivalidades que envolvem a seleção chilena, que são marcados por disputas territoriais, desde a Guerra do Pacífico (1879 – 1883) com o Peru e a Bolívia, no norte do Chile, até o conflito do extremo sul dos territórios chileno e argentino; d) confronto entre Índia e Paquistão, duelo este que se estende para além da disputa pelo controle do território da Caxemira, pois é refletido no futebol, no críquete, no hóquei, no tênis; e) os motivos da seleção de Israel não jogar as competições da Ásia, tendo em vista que se trata de um país asiático; dentre outros exemplos que podem ser trabalhados (SOUSA; COSTA; MATTOS JUNIOR, 2021).

Alguns conflitos geopolíticos entrarão em campo já na fase de grupos da Copa do Mundo de 2022. Dentre eles, podemos citar dois exemplos que podem ser trabalhados em sala de aula nas aulas de geografia: Estados Unidos x Irã, pelo grupo B, onde desde a revolução islâmica de 1979, marcada pela crise americana de reféns, as relações entre os dois países é caracterizada por confrontos diplomáticos e militares; e Sérvia x Suíça, pelo grupo G, onde a rivalidade não é estritamente geopolítica, mas os próprios jogadores de futebol se encarregaram de trazer seu pesado fardo histórico para o campo de jogo, marcado principalmente por grandes correntes migratórias forçadas por guerras, bem como por conflitos atuais na região do Kosovo (INFOBAE, 2022).

Algumas considerações sobre a prática em sala de aula

Para além da exemplificação de confrontos que podem ser utilizados em sala de aula, surgem alguns pontos principais que merecem (e geram) discussões sobre a aplicação do futebol como ferramenta de ensino, como maneiras de o/a professor/a relacionar os conteúdos sobre futebol com outras temáticas da geografia, como religião, cultura, migrações populacionais, etc. As possibilidades, mesmo sendo vastas no que tange o assunto, não fazem do futebol por si só uma linguagem abrangente para o ensino de geografia, pois é a partir do papel do professor, como mediador da relação entre aluno e o conteúdo, que o fará se apropriar do conhecimento para si.

Outro ponto que merece destaque na discussão é sobre como tornar esta ferramenta de ensino atrativa para alunos e alunas que não gostam de futebol, ou que não veem no referido esporte um assunto atrativo e didático. Como experiência em sala de aula na aplicação desta ferramenta, nota-se que a vinculação com outros temas o torna mais dinâmico e eficaz, relacionando com outras temáticas de uma maneira mais ampla.

Muitos outros confrontos podem ser citados e trabalhados relacionando as temáticas, em diferentes esferas. Por fim, os resultados pretendidos são que os alunos e alunas compreendam que o futebol é um reflexo da sociedade, não somente na sua prática esportiva, mas como um importante construtor de identidade, territorialidade e afirmação nacional. Assim, salienta-se que o presente relato tem como objetivo apresentar alternativas práticas de trabalho sobre o futebol nas aulas de geografia.

 

Referências

CARVALHO, J. E. 150 anos de futebol – Geopolítica. São Paulo, 2012. SESI-SP. 88 p.

INFOBAE. A Copa do Mundo Geopolítica: os jogos entre seleções que carregam rivalidades extra-esportivas históricashttps://www.infobae.com/br/2022/04/10/a-copa-do-mundo-geopolitica-os-jogos-entre-selecoes-que-carregam-rivalidades-extra-esportivas-historicas/. Acesso em: 19 de outubro de 2022.

SILVA, A. B; CHAVEIRO, E. F. Futebol, Espaço e Cultura no mundo contemporâneo. II Colóquio Nacional do Núcleo de Estudo em Espaços e Representações, 2006.

SOUSA, I. B; COSTA, G; MATTOS JUNIOR, J. S. A geografia das quatro linhas: o Futebol e a Geopolítica nas rivalidades das seleções nacionais. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v.7, n.9, p. 92367-92390 sep. 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Thaimon Socoloski

Gremista, geógrafo, professor e Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria.

Como citar

SOCOLOSKI, Thaimon. “Por que o professor está falando de futebol?” – A geopolítica das quatro linhas nas aulas de Geografia. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 5, 2022.
Leia também:
  • 174.6

    Espaço, tempo e sociedade no futebol de São Paulo: tradição, modernidade e inovação como produtos da globalização

    João Paulo Rosalin, Leandro Di Genova Barberio
  • 173.15

    “La pelota por las canchas y las calles”: a relação territorial do futebol com o bairros da cidade de Buenos Aires (ARG)

    Leandro Di Genova Barberio, João Paulo Rosalin
  • 158.13

    O futebol e a cidade antes do (re)nascimento dos estádios

    Fernando da Costa Ferreira