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Quando as gigantes caminhavam sobre a terra. Ou, a humanidade das heroínas

Rafael Clemente 25 de agosto de 2021

“Quando os gigantes caminhavam sobre a terra” é um dos títulos que melhor explica a trajetória biográfica de indivíduos que se juntaram sob o manto coletivo de uma banda e que realizaram algo digno dos deuses da mitologia. O livro de Mick Wall (Larousse, 2009) narra a trajetória da banda britânica Led Zeppelin e tão impactante quanto o feito do grupo durante os anos de sua atividade é – ao menos para mim – o título dessa obra. Mas este não é um texto sobre música. Quero tratar aqui, me utilizando do recente “momento olímpico” pelo qual passamos e do título criativo de Wall, de pontuar, ainda que de forma rasteira, a heroicidade, ou seria a típica humanidade (?), de atletas de alto rendimento, tidas pelo senso comum como heroínas do impossível ou do humanamente complexo.

A formação de uma atleta de elite em uma modalidade esportiva, competidora num alto nível de rendimento, geralmente se inicia na infância. A admiração por alguma esportista mais experiente, descoberta por essa criança nas transmissões televisivas e hoje com a luxuosa e hiperativa ação da internet, tem um impacto significativo nos seus espectros psicológico e social, capaz de elevar a vontade à repetição de movimentos e logo à imitação. O simbólico do possível, através de movimentos atléticos “mágicos” – inalcançáveis ao racionalismo psíquico e enrijecimento corpóreo de muitos adultos que cercam a vivência da infante – é para a criança parte de seu universo da brincadeira, do lúdico. Seu homo ludens salta; percorre todo seu pequeno corpo. Parece estar alheio ao universo do real, ainda que engalfinhado em realidade. É mágico e concreto, divertido e simples. Construído numa ponte dialética entre o filosófico e o físico. Ainda que não entendam nada sobre a complexidade desses dois pontos, passeiam de maneira fluida, corpórea e mental por eles, a ponto de querer ser seus próprios espelhos mágicos, atletas. Claro que, nem todas e todos que se iniciam nas práticas repetitivas do “atleta espelho” desaguam na prática esportiva como profissão, há uma galáxia de vivências entre um ponto e outro.

Naomi Osaka
Naomi Osaka. Foto: Ben Solomon/Tennis Australia/Fotos Públicas

Múltiplas construções conjecturais – sociais e psíquicas – nas primeiras infâncias e na adolescência serão determinantes numa longa caminhada que requer dedicação contínua e precoce. Mas minha filha, de sete anos, tem se achado uma Rebeca Andrade, uma Simone Biles, uma Flávia Saraiva, Rayssa Leal, pelo simples fato de realizar uma “estrelinha”, dar dois passos no patinete ou se equilibrar com as duas mãos na cadeira da varanda. Para ela, o simples se revela como sendo o mesmo exercício de atletas das mais diversas regiões do planeta, que tratam de modo “fácil” o complexo manejo técnico de seus corpos. Em sua mente só há o lúdico da prática esportiva. Escapa-lhe o modelamento mental necessário, treinado tão exaustivamente quanto os músculos fortificados de seus corpos apolíneos e os exercícios nos quais são educados em modo espartano, para a leal repetição quando solicitado o pleno desempenho.

Uma atleta de alto rendimento é forjada a duras penas. Das renúncias de uma vida “normal” durante a infância – fase primordial da formação corpórea e psicológica -, aos longos períodos dedicados a treinamentos e competições na busca pela perfeição performática e o atingir da maturidade física, há um quebra cabeça multicolorido e de nem sempre perfeito encaixe sendo construído. A mesa sobre a qual cada peça vai compondo o mosaico para seu ápice é estruturada na lógica das sociedades do consumo, onde tudo e todas são objetos vendáveis e precificados, veneráveis pela astúcia corporal, devoráveis no círculo olímpico, apogeu dessa valorização.

Lócus de trabalho do esportista e de entretenimento do (tele) espectador se tornam simbióticos diante de um mercado de utilização e trocas abstratas[1]. É nele que performances corporais ganham em paridade de valor como objetos físicos, concretos. Pernas, braços e mentes são tão valiosos quanto pequenas pedras preciosas, beneficiadas após separação do mineral bruto. Uma queda, um refugo, uma inconcebível sinalização de humanidade, pode significar a perda de cifras importantes de patrocínios, “luvas”, salários; e até admiração pessoal. Por superarem as marcas do humanamente improvável em seus esportes, qualquer manifestação de cansaço ou algo que demonstre a proximidade com um humano comum torna-se sinônimo de fraqueza atlética, debilidade de um corpo-mente que deveriam ser inquebrantáveis. A crítica social do julgamento atlético torna-se voraz. Na era da internet 5G e das redes de exposição contínua, em que o tempo é cada vez mais presente e imediato, as reações tendem a não passar por qualquer filtro, nem mesmo a da psique individual do bom senso, cada vez menos utilizado e apreendido diante da necessidade da opinião rápida sobre qualquer tema. O racionalismo do bom senso é ultrapassado pelo senso comum a uma velocidade temporal como a luz ante o som.  O “produto atleta” é alvo e flecha de sua própria existência profissional e dos bons e “maus” resultados que obtém, raramente analisadas as circunstâncias determinantes para tal, bem como o momento humano no qual se está localizado. Para muitas pessoas, entidades, marcas, empresas e instituições, uma atleta competindo diante de uma calamidade pandêmica é tão somente um mega corpo e uma supra mente superando mais um obstáculo para alcançar o cume do Olimpo. É preciso entregar à plateia o show adquirido em bilheterias ou royalties de televisão.

Olimpíadas
Foto: Reprodução

“Tudo o que é sólido se desmancha no ar.” Como preconizou Marx. Para ele, mercadoria é tudo aquilo que satisfaz a necessidade do próprio corpo e da mente, “do estômago ou da fantasia”[2]. O capitalismo em seu advento transformou as relações humanas e consequentemente precificou a valoração de materiais e também de sentimentos e coisas que aparentemente não teriam valor de uso e troca. Na contemporaneidade, mas também no seu tempo presente, em que o liberalismo de outrora se reconfigura à lógica empresarial, os corpos atléticos não estão à margem desse modus operandi. Daí que, sendo mercadorias na indústria do entretenimento, corpos atléticos performáticos agregam a si o valor daquilo que sabem e conseguem realizar durante uma breve apresentação. Porém, do mesmo modo que acrescentam valoração a si, também perdem o valor financeiro, outrora agregado, caso frustrem os objetivos do sucesso pré-determinado. A maquinaria da qual fazem parte constrói o mito do atletismo individual superior, mas também molda as engrenagens de trituração de sua humanidade.

Sejam as Olimpíadas de 2020 um evento histórico para além de si, diferenciadas das muitas outras por conta da pandemia do novo Coronavírus, são também o primeiro megaevento contemporâneo em que o rebelar-se contra uma estrutura estruturante e estruturada ocorre, principalmente pelas vozes femininas. Notórios foram os casos de atletas que vieram a público demonstrar sua sóbria e ululante humanidade contra os anéis esportivos, usurpados de seus simbolismos originais – congraçamento entre continentes e a união dos povos sob o espírito do respeito mútuo – pelo poder dos “donos” do esporte financista e tornados círculos fechados a cercear dores físicas e mentais para extrair o máximo do sumo humano em cada corpo-espetáculo. As muitas mulheres que se engajaram na denúncia da opressão financeira e do domínio de suas personas por investidores, comitês nacionais e marcas multinacionais, a fim de cuidarem de si para que seus corpos e mentes não paguem o preço da exaustão física e midiática vêm a reboque de movimentos populares por direitos de classe, gênero, etnias, cor da pele, etc. ocorridos ao redor do mundo nesse século e refletidos nas esferas esportivas. Como exemplo, a “bolha” da liga profissional de basquete estadunidense (NBA) de 2019. Constatação imediata da dialética entre o filosófico e o físico, o atleta e o indivíduo social não apartado das condições conjecturais na qual se encontra. Ainda que possamos debater o nível de comprometimento social e de afetação dessas atitudes nas esferas diretas da institucionalidade política, elas mostram um movimento para além de si. Outrora influenciadas por suas antecessoras, quem hoje ocupa um posto relevante de atleta, expondo as misérias e complexidades psíquicas dessa profissão, levantando bandeiras políticas, econômicas e sociais, também influenciará uma geração de esportistas – do presente e do futuro – que possivelmente não passará alheia a essas causas.

A luta pela emancipação e poder de decisão em estruturas de poderes patriarcais, liberais e excludentes estabelecidas no passado tornam o seu feito no esporte um amálgama da vida simples dos meros mortais e suas lutas diárias. As gigantes caminham sobre a terra e sua heroicidade está na aguerrida luta de se mostrarem humanas.

Notas

[1] Esmiuçando a economia do Capital, Karl Marx a entende como sendo um lócus da abstração categórica. Tudo, nesse sistema, está no espaço do abstrato. Valoração, labor, o próprio simbolismo do valor moeda. Os marxianos, a posteriori, incluiriam aí, também, a própria cultura e sua valoração mercadológica. Aqui, acrescentaríamos o esporte como entretenimento.

[2] O Capital (2008, p.57)

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FERREIRA JUNIOR, Neilton. Carreira, transição e outros dilemas da “profissão” atleta. In: RUBIO, Katia (org.). Do pós ao neo olimpismo: esporte e movimento olímpico no século XXI. Tatuapé: Laços, 2019.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MARX, Karl, O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1, v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

PREUß, Holger. Cost and revenue overruns of the olympic games 2000–2018. Wiesbaden: Springer Gambler, 2019.

WALL, Mick. Led Zeppelin: quando os gigantes caminhavam sobre a terra. São Paulo: Larousse, 2008.

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Rafael Clemente

Especialista em História do Brasil, Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Ciências Sociais. Membro do Grupo de Pesquisa Observatório Fluminense  - coletivo de cientistas sociais que tem a Baixada Fluminense e o Rio de Janeiro como tema macro. Dedica-se aos temas de Sociologia do Esporte, do Corpo e Sociologia Urbana. Torcedor desde criancinha e tricolor de coração.

Como citar

CLEMENTE, Rafael. Quando as gigantes caminhavam sobre a terra. Ou, a humanidade das heroínas. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 45, 2021.
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