176.9

Reflexões sobre a preservação da memória varzeana

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.


Se podemos entender o futebol como um fato social total (MAUSS, 2003), que excede o campo exclusivamente esportivo e permeia a vida cotidiana dos brasileiros, ou seja, “uma atividade dotada de uma notável multivocalidade – uma vocação complexa que permite entendê-lo e vivê-lo simultaneamente de muitos pontos de vista” (DAMATTA, 1994, p.12), também são múltiplas as formas de representação de memórias e histórias dos futebóis (DAMO, 2018), expressas por meio de objetos tangíveis e intangíveis que estão presentes tanto em locais de prática do esporte quanto em acervos particulares e de instituições diversas. 

várzea
Imaterialidade: Campo do Nacional durante a final da série B da Copa Kaiser de 2011. Fonte: Acervo Museu do Futebol

Uma dessas instituições, o Museu do Futebol, espaço dedicado à salvaguarda e à comunicação dos futebóis na cidade de São Paulo e no Brasil, desde 2008 tem procurado identificar e explorar tais formas e indicadores de memória presentes na contemporaneidade. O fato de o Museu não abrigar, pelo menos até o momento, uma coleção de artefatos tradicionais permitiu à instituição propor experimentações no campo da salvaguarda patrimonial e, assim, apostar em um modelo de gerenciamento de dados que indexa referências distintas — tais como documentos de arquivos, acervos de museus e de bibliotecas — de maneira mais horizontal, uma vez que o tratamento dos dados parte do interesse que eles apresentam para o tema futebol. Outra característica a ser considerada sobre o Museu do Futebol é o fato do mesmo estar sediado em um equipamento público, o tradicional Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como estádio do Pacaembu, que foi tombado pelo órgãos de patrimônio municipal (Conpresp, em 1991) e estadual (Condephaat, em 1998). 

Uma vez que a escolha inicial do Museu do Futebol foi a de não abrigar objetos e documentos originais, partindo de uma linguagem expositiva que privilegia recursos audiovisuais, instalações tipo site-specific e traquitanas interativas, a instituição, desde sua concepção, vislumbrou a criação de um centro de pesquisas e de documentação que referenciasse aquilo que se pode denominar por indicadores de memória do futebol brasileiro. Aqui entendido também como uma nova estratégia de salvaguarda patrimonial relacionada ao futebol, o Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB) é uma área do Museu do Futebol que oferece ao público biblioteca e midiateca especializadas, além de promover pesquisas e gerenciar o sistema de dados do Museu. 

O primeiro projeto do CRFB foi a realização de uma pesquisa de campo de cunho etnográfico que tinha como principal objetivo mapear as referências futebolísticas de um determinado território, divididas em: a) personalidades — personagens da história do esporte, tais como jogadores, atuantes ou não, árbitros, representantes de clubes e agremiações de torcedores, colecionadores etc.; b) eventos — campeonatos profissionais e amadores, festas, torneios; c) instituições — clubes, federações, torcidas, bares e também instituições de memória e pesquisa que possuíssem em seus acervos itens relacionados à temática; d) acervos materiais de diferentes denominações, como arquivísticos, bibliográficos, iconográficos, tridimensionais e audiovisuais.

Várzea
Acervos do projeto social Molecaje do bairro de Pirituba. Fonte: Acervo Museu do Futebol

O mapeamento realizado pelo CRFB visou levantar dados primários, suficientes para localizar e descrever a tríade “cenário, atores e regras” (MAGNANI et al, 2023), isto é, a descrição dos locais de prática do futebol, ou de guarda de indicadores de memória desse esporte; dos atores envolvidos nessas práticas; e das regras de comportamento e convivência naquele cenário. Os produtos da pesquisa de campo consistiram em relatos etnográficos, fotografias, vídeos e entrevistas em áudio ou vídeo. 

Era o início do relacionamento da instituição com esses diferentes atores do futebol. Contatos que em meio ao cotidiano institucional do Museu, em meio a diferentes demandas e temáticas abordadas nas rotinas, foram transformados em convites para programações culturais, gravações de depoimentos de história de vida, participação em eventos, empréstimos e digitalização de acervos e outras possibilidades de parcerias. 

Vale destacar que tais procedimentos posteriores à pesquisa não contemplavam toda gama de atores e instituições pesquisadas e referenciadas pelo CRFB na ocasião da sua implantação. Com a inauguração do CRFB em 2013 e o encerramento das bolsas de pesquisas dos 10 pesquisadores(as) contratados, o trabalho de pesquisa de campo e atendimento aos convites e oportunidades articuladas no meio do futebol amador (só para citar uma das extensões do futebol) passaram a ser absorvidos pela equipe fixa da instituição (um técnico pesquisador, um assistente e ocasionalmente, um ou dois estagiários). 

Como já mencionado anteriormente, desde a inauguração em 2008, o Museu do Futebol não aceita doações de acervos materiais e coleções físicas de colecionadores e agremiações esportivas. A instituição não tem equipe especializada para tal, tampouco tem acondicionamentos especiais e espaciais adequados para essa salvaguarda. As coleções materiais sobre futebol são complexas, volumosas e de categorização variada (tecidos, papéis, metais, madeira e uma infinidade de outros materiais). As mais de 150 visitas de campo da equipe de pesquisa a clubes e equipamentos, que produzem a imaterialidade e materialidades sobre os sentidos adquiridos pelo futebol amador na cidade de São Paulo, permitiram perceber que a salvaguarda desse fenômeno demandaria esforços coletivos, recursos financeiros e humanos que Museu não dispõe. 

Uma importante constatação foi a de que, ao invés do Museu do Futebol assumir tais desafios museológicos e tamanha responsabilidade preservacionista, era fundamental que as coleções permanecessem em seus locais de sentido, ou seja, nos espaços de origem e de interação dos atores locais. No entanto, a fragilidade e degradação material dessas coleções levantaram uma questão urgente: como  a instituição poderia contribuir com a salvaguarda, manutenção e, principalmente, a comunicação dessas memórias varzeanas?

Trechos da edição recente da cartilha ‘Preserve Seu Acervo’ do Museu do Futebol criada em 2013.

Diversas iniciativas foram aventadas a fim de solucionar algumas dessas demandas. Programações culturais, formações, exposições temporárias e exposições virtuais; reavaliação das representações dos futebóis presentes nos discursos curatoriais da exposição permanente; articulação e escuta em rede com interlocutores do campo; elaboração de editais e de ações de promoção desse futebol; projetos de gravação de histórias de vida; produtos e materiais de preservação de acervos materiais e digitais; e digitalização de acervos de coleções pessoais e institucionais.    

*****

No próximo texto, o décimo desta série, para dar continuidade à discussão sobre as formas e particularidades da representação de memórias e registros de narrativas do futebol varzeano da cidade de São Paulo, serão abordadas alguns acervos e coleções mantidos e preservados por clubes e equipamentos esportivos.

Referências

DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio: notas em torno do significado social do futebol. Revista USP. São Paulo, v .22, p. 10-17, 1994.

DAMO, Arlei Sander. Futebóis – da horizontalidade epistemológica à diversidade política. FuLiA / UFMG. Belo Horizonte, v. 3, n. 3, p. 37-66, 2018.

MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003.

MAGNANI, J. G. C.; SPAGGIARI, E.; HANGAI, M. ; CHIQUETTO, R. V. ; TAMBUCCI, Y. B. . Etnografias urbanas: quando o campo é a cidade. Petrópolis: Vozes, 2023. 309p .

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Como citar

BONFIM, Aira F.; SPAGGIARI, Enrico; SANTOS, Alberto Luiz dos. Reflexões sobre a preservação da memória varzeana. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 9, 2024.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães