162.17

São Leonel

Sérgio Seabra 17 de dezembro de 2022

Por que torço para a Argentina, se não bastasse a inclinação natural de ser um sul-americano?

De um lado, Messi, do outro, a história. A França poderá tornar-se a seleção hegemônica deste século, ao vencer duas vezes seguidas pela primeira vez desde o Brasil de 1962, há 60 anos. Para este eventual bicampeonato, os franceses contam até mesmo com seu Amarildo, Giroud, que se tornou o maior goleador de seu país ao substituir Benzema, o melhor jogador da temporada. Não fossem os colecionados afastamentos durante a Copa, seria a favorita. Vencendo, torna-se a primeira tricampeã desde a entrega da Jules Rimet e, por hora, rouba também uma cor.

Pela ausência da esquadra italiana nas duas últimas Copas, Le Bleus is the new Azzura. Não é pouca coisa. Pense na celeste, nas amarelinhas, na laranja mecânica, en la Roja, com perdão dos amigos chilenos.

Por muitos aspectos, a França será o futuro do presente. Não será demais lembrar que sua vitória dentro de casa em 1998 impediu o Brasil de contabilizar novo tricampeonato.

Será mero acaso o fato de que Messi e Mbappé sejam parceiros no clube francês PSG, de propriedade da Qatar Sports Investment, ou será tão somente a força inequívoca do capitalismo mundial ditando o fim da história da carochinha de que futebol se ganha em campo, dentro das quatro linhas, só para citar um notório conspiracionista? 

Messi
Messi durante Jogo da Selecao Brasileira contra a Argentina pela decima primeira rodada das eliminatorias sul-americanas para a Copa da Russia de 2018 no Mineirão em Belo Horizonte. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Ao futuro do presente, jogado no país que é o dono majoritário do PSG, poderia sobrepor-se o futuro do pretérito: a Argentina, que venceria também o seu tricampeonato. Todo ele construído na disputa da Copa atual, sem possibilidade de ter um dono fixo, como o fluxo de capitais em sociedade aberta mascara a encarcerada concentração de renda. A vitória Argentina não representaria o fortalecimento de seu campeonato nacional como o centro financeiro de circulação de mercadorias humanas.

Ao contrário, total paradoxo, honraria o último dos humanos, demasiado humano, que foi agraciado pela mão do seu próprio deus em um tempo em que milagres eram permitidos e não contestados pelos burocratas da tecnologia audiovisual – porque tudo que é demais, é exagero!

Tal homenagem seria prestada pelo discípulo sabidamente mais disciplinado na própria trajetória, e também o que mais renegou, por desnecessidade emocional, os prazeres viciantes que consumiram o anjo caído que foi Maradona.

Seria el Diez o Deus sem os gols que fez contra a Inglaterra e sem a Copa do Mundo conquistada em 86? Seria imortal, como é, o Rei Pelé se não tivesse vencido como venceu a Copa de 70 (depois de duas copas em que saiu contundido ou quebrado)? Perguntem a Zico, Platini e Cruyff. Perde a Copa, se Messi não vencer? Perde. Ainda mais: o maior derrotado seria o futebol que nos habita o imaginário. 

Torço para que vença a Argentina. Sobretudo, mesmo que não seja necessário, torço para que Messi faça um milagre. E vire Santo, como um intermediário de Deus para o Rei, concedendo a este último uma ainda longa e próspera vida saudável cá na terra, para que possa, aos 100 anos, celebrar ter sido o atleta do século, passado.

E se for possível pedir demais (é sempre necessário pedir demais), que o milagre de Messi seja o de manter possível a vitória de uma pequena nação sul-americana, abrindo as portas para as africanas que viriam — com toda a certeza de um ateu recém convertido. Amém.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sérgio Seabra

Jornalista por formação, analista de dados diletante e especialista em Gestão Cultural pelo Itau Cultural/Universidade de Girona, é assistente técnico na Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo.

Como citar

SEABRA, Sérgio. São Leonel. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 17, 2022.
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