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Sobre o papel dos pais e professores no futebol infantil

Gabriel Said 18 de março de 2024
Treino futebol
Criança faz treino físico em campo de futebol sem bola. Foto: matimix/Depositphotos.

Dia 1

Manhã de sábado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em um torneio amistoso entre escolinhas de futebol um garoto está se frustrando porque não está jogando bem. Entre um jogo e outro o garoto começa a chorar, tamanha era a sua insatisfação consigo mesmo. Nisso se aproxima o seu pai, que assistia ao jogo da arquibancada ao lado, se encosta na grade e começa a gritar com o filho mandando-o parar de chorar. Tem ali um princípio de tumulto até que o pai é afastado da grade. A próxima partida se inicia e o menino marca, enfim, um gol, ou melhor, um golaço. Ele na comemoração corre em direção à arquibancada, mostra o dedo do meio e grita “vai tomar no cu” para o pai. O tumulto agora não foi evitado e as coisas só se acalmaram depois de vários minutos, com o pai afastado da arquibancada, o filho fora do jogo e a escolinha quase expulsa do torneio.

Dia 2

Manhã ensolarada na zona sul do Rio de Janeiro, o mesmo garoto não está tendo um bom dia na aula. Ele é um dos melhores do time, mas no coletivo daquele dia estava errando tudo que tentava e quanto mais errava, mais tentava uma jogada difícil e menos soltava a bola, o que provocava mais erros. Estava preso neste ciclo. Do lado do campo, o pai de um outro menino – o amigo mais próximo deste que estava mal no dia – começa a reclamar e a falar mal do garoto. Quando o filho se aproximava entre um jogo e outro, o pai falava mal do amigo para o filho. Então o filho levava a reclamação para o jogo e o amigo se sentia pior, e tentava uma jogada mais difícil para se redimir, e errava… Até que o garoto não aguentou e estourou, saiu do campo, começou a chorar e a falar “eu sou um merda, não acerto nada”. Seu pai, do outro lado do campo, gritava “homem não chora, você parece uma menininha!”. O pai do amigo via a cena e comentava em tom irônico com o filho “ele erra tudo e agora fica triste, é só soltar a bola que para de errar”.


Qual o papel que um professor de escolinha deve ter na formação da criança? Como lidar com os pais? Como a masculinidade é reforçada? São várias questões que podem ser feitas a partir daí. Sem me aprofundar tanto em tantas questões que o caso relatado traz a pretensão aqui está mais para uma reflexão pessoal a partir deste caso que vi enquanto trabalhava e fazia minha pesquisa de campo para o mestrado em Antropologia. Um curto ensaio, como alguém que durante esse período viu outros tantos casos que poderiam ter sido escolhidos ao invés deste e se incomodou com cada um.

O comportamento dos pais ou responsáveis no futebol infantil é fundamental para as crianças. É normal ver adultos cobrando ou comentando dos jogos dos seus filhos ou filhas de outras pessoas como se estivessem falando de um jogo de profissionais pequenos-adultos, cobrando performance de crianças. Se as cobranças como são no futebol profissional já levam para sérios problemas de saúde mental, a reprodução disso na infância além de ter consequências mais graves, também afeta o desenvolvimento das crianças.

A cobrança pela performance prematura vai também ao professor, que muitos dos pais esperam ver tendo uma postura de cobrança, um tom de voz e que tenha vocabulário que veem em programas esportivos e redes sociais, cobrando assim intensidade, amplitude, disciplina tática, soltar rápido a bola, etc, para quem ainda está na infância e que deve receber outros estímulos para o melhor desenvolvimento, seja em sua motricidade humana ou socialmente.

Em alguns casos o professor, pensado como treinador pelos pais, que não corresponde às expectativas de alta performance pelos responsáveis deve aprender a performar como tal. Um professor de escolinha me contou:

“Às vezes quando estou falando com os moleques eu grito alguma coisa, mas eu falo para eles que vou gritar, é uma piada nossa. Eu faço isso porque lá fora do campo tem os pais e as mães deles e gostam de ver que eu grite. Eles não entendem o que eu grito, mas ficam satisfeitos que eu fiz isso porque acham importante que eu faça, então eu tenho que performar um pouco para eles.”

A valorização dos gritos e reprovar o choro associando-o pejorativamente a algo feminino não está apenas alimentando uma problemática cultura masculinizada no esporte e, consequentemente também nas crianças, mas também formando seres humanos neste ambiente em que crianças são tratadas como pequenos-adultos porque estão chutando uma bola. Por se tratar de chutar uma bola tem quem cobre intensidade, disciplina tática, precisão técnica, resistência e controle emocional que não se esperaria em outra situação.

Lembro de ouvir certa vez de um pai que durante a final da Liga dos Campeões da UEFA se o filho quisesse brincar de jogar bola, ele proibiria e ao invés disso colocaria a criança para assistir a final, porque seria a melhor coisa que ela poderia fazer envolvendo futebol, melhor até do que jogar! Uma outra memória que tenho é após o fatídico 7×1 em 2014; um pai jogava com o filho, que devia ter uns cinco anos, e sempre que o menino ficava com a bola por mais de dois segundos o pai mandava o filho soltar a bola: “passa a bola rápido, não é para driblar, foi assim que a gente perdeu a Copa!”. E assim o 7×1 virava 8×1… Há de chegar o dia em que crianças vão se reunir não mais para jogar uma pelada, mas para espalhar minicones pela quadra e tentar driblar por eles ou repetir algum treino que viram em alguma rede social, para o deleito de alguns pais.

Se me chamassem para jogar bola enquanto acontece uma final de Liga dos Campeões da UEFA, eu iria sem pensar duas vezes. A criança que jogava bola quase todas as semanas e quase todos os dias nas férias que eu um dia fui sabe que não tem nada melhor do que brincar de jogar bola. Pais e mães precisam ter isso em mente com seus filhos. A criança conseguiu fazer um drible novo? Conseguiu acertar muitos passes? Salvou um gol? Fez um gol? Aprendeu algo? Se divertiu? Na infância, é sobre isso. E o professor deve estar lá para ajudar as crianças a descobrirem e aprenderem, não para cobrar desempenho, porque devem formar antes de tudo, seres humanos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Sobre o papel dos pais e professores no futebol infantil. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 18, 2024.
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