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Sobre o Sauditão ou como a hipermercantilização altera a geopolítica de poder no futebol: sportswashing, softpower e outros palavrões

É inegável o quanto o futebol impacta a diplomacia entre nações ou entre diferentes grupos étnicos. Aqui, analisaremos o declínio hegemônico europeu e a crescente influência do Oriente Médio no futebol e como a Arábia Saudita tem usado esse esporte para se promover perante sua população e perante o ocidente.

O esporte sempre teve um papel crucial na formação e progresso da sociedade, notadamente o futebol, como modalidade mais popular globalmente. A sua relevância social é ainda mais evidente, uma vez que gera o sentimento de pertencimento nos mais diversificados grupos ao redor do mundo. Durante noventa minutos vieses políticos, culturais e religiosos se tornam triviais quando unidos pela paixão do seu time do coração. O futebol permite a compreensão da organização social, os costumes de uma comunidade, e as interações sociais, posto que o esporte carrega consigo particularidades da região em que está inserido.

Devido sua relevância e a influência que exerce sobre as pessoas, a sociedade e as instituições, o futebol é usado por Estados e conglomerados econômicos de forma deliberada com o fito de manipular e mascarar a insatisfação popular, bem como a imagem do proprietário, de modo a aumentar a aceitação social. Dessa forma, o que antes era visto como um esporte que promove a integração sociocultural e incentiva o intercâmbio entre diversos países, trazendo promessas de esperança para a população ou usado como uma moeda de troca para fins particulares. 

Essa prática é conhecida por sportswashing – a utilização do esporte como meio de promoção pessoal com o objetivo de melhorar a imagem e influência de um regime, país, grupo econômico ou indivíduo. Esse termo vem do inglês por meio da junção das palavras sport (esporte) e washing (lavagem) que significa “lavagem esportiva”. Prática essa que existe há muito tempo, como a “Política do Pão e Circo”, no governo da Roma Antiga, os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 (usando os jogos como propaganda nazista no governo de Adolf Hitler); e a Copa do Mundo sediada na Argentina em 1978, que visou esconder os horrores da ditadura enquanto sediaram o evento (dentre tantos outros possíveis exemplos).

Essa expressão ganhou uma grande visibilidade após alguns países concentrarem esforços em investimentos no futebol europeu como instrumento de softpower1, melhorando assim a imagem da sua nação perante a comunidade internacional. Alguns exemplos são: a compra do clube inglês Manchester City pelo grupo econômico Abu Dhabi United Group, que é propriedade do Sheik Mansour Bin Zayed Al Nahyan; a escolha da cidade de Baku, localizada no Azerbaijão, para sediar os jogos europeus; a aquisição do time inglês Chelsea pelo magnata russo Roman Abramovich; a aquisição do Newcastle United por um fundo de investimento controlado pelo governo da Arábia Saudita; a Copa do Mundo de 2022 que ocorreu no Catar.

Compreendendo a relevância sociocultural e econômica do futebol em seu país e fora dele, o Governo da Arábia Saudita tem utilizado esse esporte para aprimorar a sua imagem perante o ocidente, desconstruindo a visão autoritária e repressora do país. O Governo Saudita desenvolveu o Projeto de Investimento e Privatização de Clubes Esportivos, com o objetivo de transformar a Saudi Pro League (SPL) em uma das dez principais ligas do mundo, o que facilitará a possível candidatura para sediar a Copa do Mundo de 2030, contando com a presença de Cristiano Ronaldo como embaixador de tal empreitada. Dessa forma, o Governo Saudita incorporou os quatro principais clubes sauditas – Al-Ahli, Al-Ittihad, Al-Hilal e Al-Nassr – através do principal fundo saudita, o Public Investment Fund (PIF), que é o sócio majoritário do time da Inglaterra Newcastle.

Cristiano Ronaldo
Fonte: Divulgação/Al Nassr FC

A contratação da grande estrela do futebol mundial, Cristiano Ronaldo, abriu um mar de oportunidades para diversas outras estrelas do futebol para a SPL. Nomes como o de Karim Benzema e Kanté foram recentemente anunciados como reforços do clube Al-Ittihad. Para efeito de comparação, antes da Arábia Saudita, Cristiano Ronaldo recebia cerca de R$200 milhões de reais por temporada, incluindo direitos de imagem e outros acordos comerciais; na Arábia Saudita ele passará a receber cerca de quase R$1 bilhão de reais por temporada. Antes da chegada do craque português, a transmissão da SPL era feita somente no Oriente Médio e no Norte da África; após a chegada do jogador, a Liga Saudita estabeleceu um acordo com a IMG, agência norte americana, que foi responsável por repassar os direitos de transmissão para mais de 36 emissoras espalhadas ao redor do mundo, chegando em até 15 países diferentes, como Portugal, França, Alemanha, Itália e outros que poderão transmitir alguns jogos dos demais times da SPL e todos os jogos do Al-Nassr. Mais recentemente o jogador brasileiro Neymar foi cooptado pela Liga Saudita, com valores de transferências astronômicos. Neymar Jr. foi anunciado como novo atleta do clube Saudita Al Hilal, tendo o 3º maior salário do futebol mundial (ele perde apenas para Cristiano Ronaldo e Karim Benzema, ou seja, os três maiores salários de jogadores do mundo são pagos pela Liga Saudita). O contrato do brasileiro com o time árabe tem duração de 2 anos. Nesse período, o atacante receberá € 320 milhões – ou € 160 milhões por ano (ou como gostam de ilustrar os mais eufóricos, cerca de 1 milhão de reais por dia). Nesse caso, nos parece que tanto a Arábia Saudita como o jogador brasileiro se exploram mutuamente, no sentido de melhorarem a sua imagem.

Com um maior interesse do público e abrangência mundial, a Liga poderá realizar novos acordos de transmissão valiosos e patrocínio nas próximas temporadas. Ilustra este cenário a improvável parceria com a maior estrela do futebol mundial, Lionel Messi (atleta da Liga Norte-Americana), como embaixador do turismo do governo Saudita. O contrato mostra que Messi pode receber até 22,5 milhões de euros, cerca de R$ 118 milhões, ao longo de três anos por pouco trabalho de fato: algumas aparições comerciais, algumas publicações nas redes sociais e férias com tudo pago para o país com sua família. Dele, é esperado que compartilhe imagens dessas viagens – acompanhadas de uma hashtag aprovada pela Arábia Saudita – com seus milhões de seguidores. Mas o documento também contém uma condição importante para as autoridades sauditas: Messi não deve dizer nada que possa “manchar” a Arábia Saudita – um país que tem enfrentado críticas generalizadas por seu histórico de direitos humanos – evidenciando ainda mais o uso do esporte como ferramenta de manipulação.

O autor Irlan Simões (2020) infere que a aquisição de clubes de futebol não está ligada à promoção do esporte em si, mas sim ao que essa aquisição proporciona nos outros aspectos para o comprador. Simões ainda sustenta que os proprietários de futebol podem ser divididos em quatro grandes grupos de acordo com seus interesses, sendo eles: geopolítica; política eleitoral; mercado de capitais e os Alheios.

 A Arábia Saudita representa o mais expoente exemplo de mudança na geopolítica de poder no futebol, uma vez que ela utiliza o seu fundo de investimento soberano como a principal estratégia para atrair os jogadores, através dos salários exorbitantes, com o explícito objetivo de expandir suas influências nos países centrais.

Notas

1 Soft power (em português, poder brando, poder de convencimento ou poder suave) é uma expressão usada na teoria das relações internacionais para descrever a habilidade de um corpo político — um Estado, por exemplo — para influenciar indiretamente o comportamento ou interesses de outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos.

Referências

– SANTOS, Irlan. et al. Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol. 1. ed. Rio de Janeiro: Corner, 2020.

https://exame.com/esporte/contrato-de-messi-para-promover-arabia-saudita-passa-de-r-100-milhoes/

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Ana Luiza Quaresma Santana Calazans

Acadêmica de Administração na Universidade Estadual de Montes Claro e cruzeirense.

Luiz Roberto Veloso

Atleticano e graduando do curso de Administração pela Universidade Estadual de Montes Claros.

Como citar

CALAZANS, Ana Luiza Quaresma Santana; SILVA, Luiz Roberto Veloso da. Sobre o Sauditão ou como a hipermercantilização altera a geopolítica de poder no futebol: sportswashing, softpower e outros palavrões. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 21, 2023.
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