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Sócrates e Manoel de Barros – ou sobre poemas e um jogador concebidos sem pecado

Fabio Zoboli, Perolina Souza 28 de junho de 2023

“- E as palavras, têm vida?

           – Palavras para eles têm carne, aflição, pentelhos — e a cor do êxtase”

(Manoel de Barros em “O guardador de águas”, 1989)

Manoel de Barros (1916-2014), um dos mais ilustres poetas brasileiros — também conhecido por ser “o poeta das coisas insignificantes”, lançou sua primeira obra em 1937, o livro Poemas concebidos sem pecado. Manoel surgiu, então, como um trovador das coisas simples, exaltando em seus versos a grandeza dos acontecimentos cotidianos. Em 1972, 35 anos depois, pelo Botafogo de Ribeirão Preto, era “concebido sem pecados” um dos maiores jogadores da história do futebol mundial: Sócrates Brasileiro (1954-2011), que forjou sua vida sob a virtude da luta. Quanto a nós, pecadores assumidos, recorremos a Manoel de Barros quando este afirma Não tenho mecanismos para santo”, no Livro das ignorãças (1993), para arriscar dizer que o maior pecado da vida de Sócrates foi ter jogado tão pouco tempo com a camisa do Flamengo.

Por ser amigo de Zico (fiéis parceiros de seleção), Sócrates chegou à Gávea no final de 1985 e saiu precocemente no início de 1987. “Sou um privilegiado. Primeiro, o Corinthians, agora, o Flamengo. Isso é tudo que um jogador pode ambicionar em sua carreira, disse Sócrates certa vez. Com as cores do rubro-negro, Sócrates jogou uma única vez ao lado de Zico. Foi na vitória do Fla sobre o Fluminense por “4×1”, quando Zico calou a torcida tricolor que o chamou de “bichado” por estar voltando de mais uma — dentre tantas — lesão no joelho. Nesse dia, Zico fez 3 deixando a torcida do clube das Laranjeiras descobrir que “Lugar sem comportamento é o coração” (Livro das ignorãças, 1993).

Sócrates atuou muito pouco pelo Flamengo, foram apenas 25 jogos, tendo marcado somente 3 gols. Ainda assim, foi tempo suficiente para conquistar um título com o time da Gávea, Sócrates fez parte da escrete que venceu o campeonato carioca de 1986. Porém, mesmo que Sócrates tivesse jogado apenas um único dia pelo Flamengo, continuaria merecendo uma crônica aqui no “Urubu de letra”, afinal, para escrever sobre ele “Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras” (Retratos de um artista quando coisa, 1998).

Flamengo Sócrates
Flamengo de 1986. Fonte: reprodução

Para trocar passes com um dos personagens mais líricos do futebol brasileiro, escolhemos um poeta que define a poesia como O mel das palavras” (Memórias inventadas – a segunda infância, 2006). O campo-grandense Manoel Wenceslau Leite Barros, esse distinto membro da seleção de poetas, nasceu em Cuiabá, em dezembro de 1916, e com sua esposa Stella Leite teve três filhos ao longo de sua vida, falecendo em Campo Grande, aos 97 anos, em 2014. Sua infância, que tanto está emoldurada em seus versos, foi vivida no Pantanal, onde seu pai, João Venceslau Barros, tinha uma propriedade. Ainda jovem foi morar na capital de seu estado natal para estudar em um Colégio Interno. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar a faculdade de Direito, e foi neste momento que filiou-se ao Partido Comunista. Não obstante o seu afastamento posterior da militância partidária, Manoel de Barros nunca se apartou dos preceitos comunistas, fazendo dessa ideologia um mote de vida, conforme anunciado em um dos seus primeiros versos, A fome não é invenção de comunistas, titio(Poemas concebidos sem pecados, 1937).

Com essa obra, Manoel de Barros inicia a publicação das suas poesias e de pensamentos que versavam, em grande parte, sobre elementos cotidianos e observações íntimas da natureza. Sua escrita possuía um tom quase sempre coloquial, no entanto, a vanguarda dos seus versos estava exatamente na admiração da vida corriqueira, na criação de neologismos sobre o trivial, de uma forma tão complexa, mas que Manoel fazia parecer simples. Segundo afirmação do próprio, sobre o nada ele tinha profundidades. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios (Memórias inventadas – A infância, 2006).

Já Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira[1] nasceu em Belém do Pará, e ainda menino se mudou para Ribeirão Preto (SP) com sua família. O nome Sócrates foi dado por seu pai, amante da filosofia e literatura, que deu ao filho o homônimo de um de seus filósofos favoritos. Sob o encanto das letras, seu pai achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a metafísica (Livro das ignorãças, 1993). Em 1964, após o golpe militar, Sócrates, com apenas 10 anos de idade, presenciou o gesto do seu pai ateando fogo nos seus amados livros. Essa cena marcaria a vida do menino, Eu sou muitas pessoas destroçadas” (Livro das ignorãças, 1993), que mais tarde faria das obras literárias, uma de suas paixões para alimentar sua sede por conhecimento e liberdade. Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras: — liberdade caça jeito (Matéria de poesia, 1970).

Em 1972, Sócrates ingressa nas categorias de base do Botafogo (SP) e, em paralelo, é iniciado na Faculdade de Medicina. Em 1977, vence o campeonato paulista pelo time da Pantera da Mogiana e se forma médico pela USP de Ribeirão Preto. Manoel de Barros, que tanto escreveu linhas sobre a infância, poderia ter dedicado esses versos para Sócrates: “O menino hoje é um homem douto que trata com física quântica. Mas tem nostalgia das latas. Tem saudades de puxar por um barbante sujo umas latas tristes” (Retratos de um artista quando coisa, 1998). Entre o saber médico e a nostalgia de brincar com a bola, Sócrates escolhe a paixão de menino, jogar futebol. Em 1978, nosso personagem se despede do Botafogo e vai jogar no Corinthians[2], onde se eternizou como um dos grandes ídolos da história do Timão. Além do Botafogo de Ribeirão Preto, Corinthians e Flamengo, também jogou na Fiorentina da Itália (1984-1985) e no Santos, seu time de infância (1988-1989). Porém, foi no Botafogo de Ribeirão Preto que Sócrates encerrou a sua carreira, vestindo outra vez as cores do time que o concebeu (1989).

Além da alcunha de “Doutor”, por ter se formado médico, Sócrates também foi apelidado de “Magrão”. Tal apodo foi dado por sua grande estatura e porte fino, “Não fui fabricado de pé” (Livro das ignorãças, 1993). Por ter os pés pequenos, desproporcionais à sua altura, Sócrates desenvolveu uma habilidade com os calcanhares, “Retrato de um poste mal fincado ele era” (Livro das ignorãnças, 1993). Mas ali na meia cancha com a bola nos pés era gênio e “Funcionava ao sabor dos ventos. Imitava uma instalação. Mas penso que seja um desobjeto artístico” (Retratos de um artista quando coisa, 1988). Sócrates jogava com técnica, o difícil em seus pés se fazia simples. Com seu corpo longilíneo compondo com a bola, fazia as tardes de futebol ficarem mais graciosas. “Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça” (Retratos de um artista quando coisa, 1998).

Para além da poesia — por Manoel de Barros escrita com lápis e papel, por Sócrates desenhada com a bola e o calcanhar – o que une esses dois lendários personagens é o “olhar para baixo”, pois ambos eram adeptos ao ideário que defendia igualdade e justiça social entre os homens, fato que os fazia atentos às minorias apequenadas. Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho. Ainda não entendi por que herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – antes que das coisas celestiais. Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas”. (Retrato do artista quando coisa, 1988).

Com 18 anos, em uma de suas andanças militantes, Manoel de Barros pixou uma estátua na capital carioca com a frase “Viva o comunismo”. No dia seguinte, a polícia bateu à porta da pensão onde se hospedava para prendê-lo. Porém, a dona do albergue falou tão bem da bondade do moço que os policiais se sensibilizaram e o deixaram livre. No entanto, levaram seus livros e arquivos, entre eles o rascunho de sua primeira obra não publicada Nossa Senhora de minha escuridão.

Assim como Manoel de Barros, o Doutor Sócrates também vivenciou dissabores sob a vigília do fascismo implantado no Brasil pela ditadura militar. No entanto, Sócrates, juntamente com outros jogadores (Casagrande, Wladimir e Zenon), no ano de 1983, criaram o que ficou conhecido como a “Democracia Corinthiana”. Tal movimento pregava o fim da ditadura militar no Brasil que perdurou após o golpe de 1964. Para combater o fascismo militar, empunharam a bandeira das “Diretas Já”, campanha que sugeria o voto direto e democrático para eleições presidenciais que não aconteciam desde o golpe. Além disso, por meio desse movimento político, a democracia foi instaurada dentro do Timão, momento no qual as decisões importantes do clube ligadas por exemplo à contratação, regimento interno, dentre outras, passaram a ser decididas em conjunto com os jogadores, técnico, roupeiro… Todos tinham o mesmo peso no voto.

Assim, o cidadão Sócrates, fazendo uso das palavras e de sua posição de jogador, demarcou sua luta pró-democracia, contribuindo significativamente para a construção de uma nova rota na história do Brasil. A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias (Menino do mato, 2010). Por sua luta e significância, dentro e fora das “quatro linhas”, Sócrates é digno de toda a licença poética de Manoel de Barros. No seu Livro das ignorãças, Manoel menciona que Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh. Deste modo, para dar cifras finais a este escrito, proclamamos em forma de paráfrase – Um jogador se apropriou de Deus: foi em Sócrates.

 

* Dedicamos esta crônica a dois camaradas defensores da democracia: Alexandre Fernandez Vaz, corintiano com alma de poeta; e Santiago Pich, por ter bebido vinho com Sócrates.

Notas

[1] Sócrates se casou 4 vezes. De seus casamentos foram gerados seis filhos, e um deles se chama Fidel Castro.

[2] Pelo Corinthians, Sócrates atuou em 298 jogos, marcou 172 gols e conquistou três títulos de campeão paulista (1979-1982-1983).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Perolina Souza Teles

É professora da rede pública de ensino do estado de Sergipe. Atualmente é doutoranda em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e membra do "Grupo de pesquisa Corpo e política/UFS".

Como citar

ZOBOLI, Fabio; SOUZA, Perolina. Sócrates e Manoel de Barros – ou sobre poemas e um jogador concebidos sem pecado. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 28, 2023.
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