51.6

Telê x Cruyff

Victor de Leonardo Figols 18 de setembro de 2013

A década de 1990 foi marcada pela internacionalização de dois clubes, um europeu e um sul-americano, após conquistarem seus respectivos campeonatos continentais. Depois de 1992, o FC Barcelona passou a ser visto de maneira diferente no futebol europeu e mundial, graças ao trabalho do técnico holandês Johan Cruyff. O mesmo pode ser dito sobre o São Paulo FC, que sob o comando de Telê Santana, conquistou a América do sul e o mundo duas vezes de forma consecutiva.

Em 1988, Cruyff assumiu o FC Barcelona com pretensões de mudar a imagem que o clube possuía fora da Espanha. Até 1992, o Barça de Cruyff dominou o Campeonato Espanhol, e dominaria por mais dois anos. O Dream team, como passou a ser chamando aquele time, conquistou quatro vezes o Campeonato Espanhol, de forma consecutiva, de 1990 a 1994, e três vezes a Supercopa da Espanha. Mas o título mais significativo da passagem de Cruyff pelo FC Barcelona foi a conquista da Liga dos Campeões da Europa. Foi o primeiro título de grande expressão continental que Barça havia conquistado até então.

O futebol apresentado pelos jogadores comandados por Cruyff era parecido com o estilo de jogo da Laranja Mecânica, de 1974. Formado em um 3-4-3, o FC Barcelona associava a troca de passes com muita movimentação. Com esse futebol e contando com jogadores de qualidade técnica, a ofensividade passou a ser a marca daquele time. O búlgaro Hristo Stoichkov era quem comandava o ataque daquele time.

Ilustração: Felipe de Leonardo – felipedeleonardo.com.

Do outro lado do Atlântico, nesse mesmo período, Telê Santana assumia o São Paulo FC. Com apenas um ano no comando de Telê, o Tricolor Paulista venceu o Campeonato Brasileiro, em 1991. No ano seguinte, o São Paulo conquistou pela primeira vez na Copa Libertadores da América, e conquistaria mais uma vez no ano seguinte, em 1993.

O estilo de jogo do Tricolor, sob o comando de Telê, possuía características semelhantes ao do FC Barcelona. Armado no sistema 4-3-3, o São Paulo FC prezava a posse de bola e pela troca de passes, sempre com objetividade. Todavia, a marca daquele time era a marcação pressão, principalmente na saída de bola adversária, e pela vontade dos jogadores, que acreditavam em todas as jogadas. Para comandar as ações em campo, Telê contava com um maestro no meio de campo, Raí.

O jogo

Por ter ganhado a Liga dos Campeões da Europa de 1992 o FC Barcelona tinha o direito de disputar a Copa Intercontinental, o adversário seria o São Paulo FC, que havia conquistado a Copa Libertadores da América daquele mesmo ano.

O São Paulo já havia enfrentado o Barcelona em 1992, pelo torneio amistoso Troféu Teresa Herrera, o Tricolor aplicou uma goleada de 4×1 sobre o Barça, e ainda levou o título da competição. Entretanto, a ocasião era outra, a Copa Intercontinental era um título oficial, e importante, uma vez que dava ao campeão o status de Campeão Mundial.

Em jogo único disputado em Tóquio, no Japão, entraram em campo o melhor time da Europa contra o melhor time da América do Sul. O FC Barcelona, com o seu sistema consolidado, o 3-4-3, contava Stoichkov no ataque. Do outro lado, o São Paulo FC no 4-3-3, com Raí no meio de campo.

No início do jogo, o Barça controlou as ações, tocando bola de pé em pé até chegar ao ataque adversário, enquanto isso o Tricolor, nervoso em campo, tentava marcar os jogadores do Barça. Quando o São Paula retomava a bola, fazia a bola rodar até chegar ao ataque. Os dois times estavam jogando de maneira parecida, eram times compactos, que não davam espaços ao adversário, valorizando a posse de bola e marcando muito.

O São Paulo, apesar de marcar mais, tentava chegar ao gol adversário com contra-ataques rápidos, com a bola sempre passando pelos pés de Raí. Sem a bola o Tricolor via o Barcelona envolver a marcação. A troca constate de passes do Barça já era esperado pelos jogadores do São Paulo.

Aos 12 minutos do primeiro tempo, uma falha na marcação deu espaço para o jovem Guardiola achar o búlgaro entre os dois zagueiros do São Paulo. Stoichkov dominou a bola, olhou para o gol e chutou. Foi um chute da meia lua da grande área, a bola entrou no ângulo do goleiro Zetti. 1×0 para o FC Barcelona.

Jogadores do Barcelona de 1992. Da esquerda para a direita: Guillermo Amor, Albert Ferrer, Josep Mussons (vice-presidente do FC Barcelona) e Josep Guardiola. Foto: Jordiferrer – Wikipedia.

Sem a bola, o São Paulo jogava recuado, apenas com Muller no ataque e com Raí para puxar o contra-ataque. Com a bola nos pés, o tricolor tentava trocar passes rápidos para chegar ao ataque. Assim, o São Paulo conseguiu equilibrar a partida, graças a Raí que chamava a responsabilidade do jogo para si. De longe, ele era o melhor do São Paulo, do outro lado, Guardiola vinha fazendo uma boa partida, principalmente na marcação de Raí, que era obrigado abrir pelo lado direito do campo em busca de espaço para armar as jogadas de ataque.

Depois do gol do Barça, o SP começou a tocar mais a bola e chegar mais vezes ao ataque, o goleiro Zetti mal participava do jogo, o Barça não conseguia atacar com a mesma eficiência. E o Tricolor, ao contrário, tentava atacar mais, e chegava com perigo ao gol de Zubizareta, cada vez com mais perigo.

Em um desses ataques perigosos do São Paulo, Muller recebeu um lançamento pelo lado esquerdo do campo, entrou na área, driblou o marcado e tocou a bola para o meio da pequena área do Barça. Raí se antecipou ao zagueiro que o marcava e com a barriga empurrou a bola para o gol. Aos 27 minutos o São Paulo marcou o gol de empate, 1×1.

Depois do gol do Tricolor, o Barça se perdeu em campo, e o Tricolor passou a ser melhor. Os passes do Barcelona não eram mais tão precisos, os jogadores mal conseguiam chegar ao ataque, e quando chegava não representava muito perigo. O São Paulo, mais confiante e ajustado, partiu para o ataque, chegando diversas vezes com perigo no gol de Zubizareta, que teve muito trabalho até os 35 minutos do primeiro tempo.

Os dez minutos finais foi marcado pelo equilíbrio, em um ataque do São Paulo, o zagueiro tirou a bola encima da linha. Minutos depois, foi a vez do zagueiro do Tricolor evitar o segundo gol azul-grená. Ao final do primeiro tempo o equilíbrio ficou apenas no placar. O São Paulo mostrou um futebol de muita vontade, objetividade, e principalmente, muita marcação. O placar do primeiro tempo poderia ter acabado diferente se não fosse o goleiro Zubizareta.

No segundo tempo, o jogo ficou mais aberto, com as duas equipes tentando definir o placar. O São Paulo, melhor em campo, acertou a saída de bola do campo de defesa, deixando o contra-ataque mais rápido. Isso fazia com que os jogadores do Tricolor pegassem a zaga do Barça desprotegida. As tentativas de gol do São Paulo só paravam no goleiro Zubizareta, que vinha salvando o Barcelona até então.

A única maneira que o Barcelona viu de parar o São Paulo, principalmente nos contra-ataques, foi com faltas. A troca de passes do Barça em busca de espaço, a marcação e o contra-ataque rápido do São Paulo, foram a tônica do jogo, até o minuto 34.

Em um desses contra-ataques, um jogador do São Paulo sofreu uma falta na frente da grande área. Raí, que era o cobrador oficial, ajeitou a bola, rolou para seu companheiro que pisou para Raí chutar. A bola entrou no ângulo, no mesmo ângulo que Stoichicov havia colocado a bola no primeiro tempo. O São Paulo virou o jogo, 2×1.

Raí, o gol da virada. Ilustração: Cleber de Paula Machado.

O segundo gol desmontou o Barcelona, o time da Catalunha perdeu a cabeça, e passou a fazer mais faltas. O São Paulo, com a vantagem no placar e melhor fisicamente, começou a dominar os minutos finais do jogo. De pé em pé, o Tricolor tocava a bola no campo adversário, cansando ainda mais o Barcelona, deixando ainda mais nervoso o time catalão. E o São Paulo esperava o apito final.

Com os 90 minutos devidamente cumpridos, o juiz apitou pela última vez. O São Paulo havia superado o Barcelona, havia se consagrado Campeão do Mundo. Aquele jogo possuía dois personagens, Raí que foi o melhor em campo, e Telê que montou o time para enfrentar e derrotar o Dream team.

* * *

O ano de 1992 foi o ano do FC Barcelona na Europa, Cruyff montou o “Time dos Sonhos”. O Barça ganhou pela primeira vez a Liga dos Campeões da Europa. Para além disso, o 3-4-3 do holandês mostrou para o mundo um futebol coletivo, ofensivo e objetivo.

Em 1992, a América tinha um dono e o mundo também. O São Paulo de Telê dominou a Copa Libertadores da América e a Copa Intercontinental por dois anos. O Tricolor dos primeiros anos da década de 1990 mostrou para o mundo um futebol coletivo, ofensivo e objetivo, mais do que isso, mostrou um futebol de muita marcação e vontade.

É inegável que Telê Santana e Johan Cruyff foram técnicos brilhantes, comandando seus respectivos clubes, com eles, São Paulo e Barcelona chegaram a um patamar que nunca haviam alcançado até então. Na década de 1990, Telê e Cruyff fizeram do São Paulo e do Barcelona, respectivamente, clubes multi-campeões. Todavia, em 1992 o São Paulo de Telê foi tática, técnica e fisicamente superior que o Barcelona de Cruyff.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Telê x Cruyff. Ludopédio, São Paulo, v. 51, n. 6, 2013.
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