Nosso texto tem como objetivo apresentar e refletir sobre uma lógica de tutela e controle acerca do torcer no futebol brasileiro.

O futebol no Brasil passou a ser acompanhado por um número considerável de pessoas no fim dos anos 1910 e início de 1920. Com a vitória brasileira no sul-americano de 1919, uma nova forma de brasilidade se apresenta como possibilidade de distinção do povo brasileiro frente a outras nações. Juntamente, com o elevado interesse das pessoas de estarem presentes nos jogos e de fazer parte daquele momento de distinção da sociedade, surgem também as rivalidades e os tumultos (MALAIA, 2012).

Diante desse novo contexto, inaugura-se a preocupação do Estado em controlar e normatizar as competições esportivas e, consequentemente, o comportamento do público presente nos jogos. Em face disso, é sancionado em 9 de dezembro de 1920, o Decreto N° 14529 (MALAIA, 2012) que se parece com uma espécie de Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT) daquela época, que entre outras medidas dá plenos poderes ao chefe de polícia local, no que diz respeito, à organização e suspensão das atividades esportivas, nesse último caso quando notado uma perturbação à ordem pré-estabelecida e impõe com que os torcedores fiquem sentados no lugar demarcado pelos ingressos.

Esse decreto, do início do século XX, já indica uma tendência no modo como o poder público trata os torcedores. O Estado opta por dar às autoridades policiais plenos poderes, apostando no emprego da força física para enquadrar o público dentro do comportamento desejado, bem como responsabilizando-o por qualquer ato de violência ou “perturbação da ordem” que porventura ocorresse. Ainda nos dias de hoje, de acordo com Lopes (2013), as torcidas organizadas são vistas como as principais culpadas pela violência no futebol brasileiro, invisibilizando seu protagonismo positivo e desresponsabilizando outros atores, como a polícia, a mídia e os organizadores do evento.

Charanga Flamengo
Fonte: reprodução

As torcidas uniformizadas surgiram na década de 1940 (CANALE, 2012), e eram financiadas pelas diretorias dos clubes, que intencionavam fazer das mesmas um espaço de representação dos seus respectivos interesses.  Estas ficaram conhecidas pelo apoio incondicional e por serem moderadoras da ordem e da boa conduta nas arquibancadas. No geral tinham um chefe, torcedor – símbolo (PALHARES, et al. 2012) que era responsável por ditar o comportamento da grande massa que ali se encontrava. Um exemplo, é a Charanga do Flamengo, no qual o líder era o icônico Jaime de Carvalho, que moldava os comportamentos dos torcedores, por meio de um megafone, proibindo brigas, palavrões e protestos contra a diretoria do Flamengo (PIMENTA, 1997; MURAD, 2007). Outro ponto importante é que essas agremiações eram apoiadas pela mídia e pela imprensa da época (SANTOS, 2004) e até mesmo motivadas a realizarem festas cada vez mais criativas nas arquibancadas. Em um dado momento, o Jornal dos Sports até organizou a competição da torcida mais bonita do Rio de Janeiro, fato que ficou conhecido como carnavalização das torcidas (MURAD, 1996).

Três décadas após a hegemonia das torcidas uniformizadas nas arquibancadas brasileiras, em meados dos anos 1960 surgem grupos contestadores a essa forma de torcer, pacífica e de apoio incondicional às equipes. Esses grupos, são chamados de torcidas organizadas em São Paulo e de torcidas jovens no Rio de Janeiro (HOLLANDA & TEIXEIRA, 2016) e buscam um espaço político até então não reivindicado no Brasil (TOLEDO, 1996), ansiando por maior presença na política interna dos clubes, de modo a fiscalizar os mandos e desmandos, cobrar jogadores, técnicos e dirigentes quando julgassem necessário.

Vale lembrar, que o futebol e, logicamente, as manifestações torcedoras são fenômenos sociais e culturais complexos que acompanham as dinâmicas presentes na sociedade. As torcidas organizadas surgem no auge da Ditadura Militar e isto pode ajudar a explicar o sentimento contestador destas instituições. Por isso, a reunião em grupos em dias de jogos, as manifestações de protestos e descontentamentos contra posições políticas nos clubes e fora deles já eram atitudes que consideramos como marcos importantes. Mesmo que estas, a priori se resumissem, ao espaço futebolístico, serviram nos anos de 1970, como um espaço de ascensão das torcidas organizadas, no que diz respeito, ao domínio e hegemonia das festas nas arquibancadas. Essa década, em função da criação do Campeonato Brasileiro de Futebol em 1971, serviu para que as torcidas estabelecessem um calendário de caravanas para assistirem aos jogos fora de casa. As caravanas estimularam as torcidas organizadas a estabelecer alianças e amizades em outros Estados, pela necessidade de apoio logístico para as viagens. No mundo torcedor, quando se faz uma amizade com alguma torcida, quase que imediatamente, inimizades também são feitas. Sociabilidades (SIMMEL, 2006) estas, que mais tarde foram chamadas de Síndrome do Beduíno (SANTOS, 2004). 

No fim da década de 1980 e início dos anos de 1990, vimos um crescimento da violência em estádios e nos seus respectivos entornos. A violência das torcidas organizadas, acompanhou a violência urbana das grandes cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro. A morte de Cleofas Sóstenes Dantas (Cléo), fundador e ex-presidente da Mancha Verde do Palmeiras, em 1988, foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação, por se tratar de uma figura importante no cenário das torcidas organizadas. Os confrontos em jogos de basquete entre as torcidas jovens cariocas também eram bastante comuns. A Batalha do Pacaembu, em 1995, confronto entre membros da Mancha Verde do Palmeiras e da Torcida Independente do São Paulo, transmitido ao vivo para todo o País, acaba por ser um marco na escalada da violência e na criminalização das torcidas organizadas. Diante da visibilidade das cenas de violência houve um aumento da pressão para que o poder público viesse a tomar medidas que punissem aqueles torcedores, àquela altura considerados pela mídia como brigões e baderneiros (LOPES, 2013).

Inter
Fonte: wikipédia

Com as torcidas organizadas colocadas à margem, algumas até foram extintas, como a Mancha Verde do Palmeiras e a Torcida Independente do São Paulo, que tiveram o seu Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) excluídos após a Batalha do Pacaembu. Diante disso, e de um contexto internacional, advindo de conflitos ocorridos em estádios europeus, que resultaram no Relatório Taylor[1], durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso é formulado o Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT) e sancionado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Lei nº 10671/2003, que tinha como principal preocupação modular o comportamento do torcedor dentro das praças esportivas, estabelecendo deveres e direitos que os mesmos teriam ao acompanharem uma partida de futebol. Posteriormente, o EDT recebeu emendas pelo Projeto de Lei n° 12299/2010, que o tornou ainda mais criminalizador, atingindo e culpabilizando as torcidas organizadas pela violência no futebol brasileiro (LOPES & REIS, 2017). Destaca-se a adição dos artigos 39-A e 39-B que colocam as torcidas organizadas e os seus diretores como responsáveis por condutas violentas dentro e fora dos estádios em um raio de até 5 Km do estádio. Essa medida se estende também para dias de não jogos. Outras duas obrigatoriedades que foram colocadas para as torcidas organizadas, foram a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)[2], como mesmo relata Hollanda (2014) e o cadastramento das torcidas frente ao Ministério Público do Estado em que se encontram. Em suma, observamos que as leis direcionam as ações punitivas para os torcedores organizados, considerando os mesmos como os únicos responsáveis pela violência no futebol brasileiro, de modo a tutelar o comportamento destes grupos, os colocando à margem dos torcedores ditos comuns. 

Já em 2022, surge o Projeto de Lei n° 1825, conhecido também como Lei Geral do Esporte (LGE), aprovado no dia 09 de maio de 2023 no Senado Federal, com o intuito de regulamentar a prática esportiva no país, de forma a consolidar a atividade em um único texto. A referida Lei revoga antigas leis, como: o Bolsa Atleta, a Lei de Incentivo ao Esporte, a Lei Pelé e o Estatuto de Defesa do Torcedor. A LGE possui 178 páginas e 233 artigos, contando com um texto que demonstra a preocupação em fiscalizar o esporte do ponto de vista econômico, que entende o mesmo apenas como prática, desconsiderando características de consumo e contemplação.

O texto da LGE traz alguns avanços, como considerar como crimes atos de violência contra mulheres, aumentando as sanções de penas de reclusão e multas quando comparadas ao EDT e regulamentando como discriminação o racismo, a homofobia e a xenofobia. Mas, no que se refere às torcidas organizadas, o texto condena de forma mais severa as torcidas organizadas do que o EDT, mantendo a ideia central de responsabilizar e posicionar as referidas como protagonistas únicas da violência e demais mazelas do futebol brasileiro. Este último ponto é percebido quando a LGE dirige as sanções discriminatórias para atos racistas, homofóbicos e xenofóbicos apenas para as torcidas organizadas, desconsiderando os outros torcedores e dando a entender que apenas estes grupos são capazes de tais atos. 

Em síntese, corroboramos com os dizeres de Teixeira & Lopes, (2018) no que tange ao fato de que as torcidas organizadas não são convidadas para o debate acerca da violência no futebol, sendo colocadas em posições de silenciamento e marginalidade pelas autoridades, mídia e até mesmo pelos clubes que em sua maioria não querem vincular sua imagem a elas. Referendando os autores acima, nos parece um tanto quanto contraditório o fato do Estado financiar estudos e pesquisas de acadêmicos no tema da violência no futebol, mas, não levar em consideração os resultados desses estudos para a formulação de leis e políticas públicas. Também interpretamos como ineficaz o caminho percorrido pelo governo brasileiro no desenrolar deste assunto, pois foi assumido o modelo inglês de combate ao hooliganismo (Relatório Taylor) como o ideal e junto com este vieram as inúmeras sanções, criminalizações e outras violências que foram imputadas às manifestações torcedoras, especialmente, às torcidas organizadas, como a elevação no preço dos ingressos, a reforma dos estádios e o impedimento das festas nas arquibancadas. Por fim, consideramos a necessidade da promoção de políticas públicas que priorizem o diálogo e ações conjuntas com as torcidas organizadas, de forma a revelar o protagonismo positivo destes grupos, direcionando as atenções para as ações sociais, caravanas e festas nas arquibancadas que estes grupos realizam, aspectos estes até então desconhecidos por boa parcela da sociedade.

Notas

[1] Foram medidas impostas pelas autoridades inglesas, com a finalidade de diminuir/erradicar a violência no futebol inglês. Este abordava questões, como: melhorar a condição dos estádios; melhorar a recepção aos torcedores no que diz respeito à salubridade, conforto e segurança; eliminar os setores de pé (a política all-seated) e colocar assentos que não pudessem ser facilmente arrancados; elaborar um conselho permanente que investigasse a segurança no futebol e tivesse contato com os torcedores; eliminar os alambrados, já que produziam consequências adversas; formar polícias especializadas, com canais de comunicação e uma boa localização nos estádios; acabar com as prisões desnecessárias, que desviavam a atenção e o trabalho da polícia (ALABARCES, 2012).

[2] O Termo de Ajustamento de Conduta, obrigou em 2011, cerca de 36 lideranças de torcidas organizadas da época, a assinarem esse documento que os responsabiliza criminalmente por atos violentos da sua torcida, mesmo que estes não estejam presentes em tais momentos ou que estes aconteçam em dias que não estiver acontecendo jogos.

Referências

ALABARCES, P. (2012). Crónicas del aguante: fútbol, violencia y política. Buenos Aires: Capital intelectual.

CANALE, V.S. dos. Torcidas organizadas e seus jovens torcedores: Diversidades e normativas do torcer. 2012. 119 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

HOLLANDA, B.B.B.de. Torcidas, ultras e hooligans: paralelos da problemática torcedora no Brasil e na França. In: HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. e REIS, H. H. B. Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 153, 2014.

MALAIA, J.M.C. “Torcer, torcedores, torcedoras, torcida (bras.): 1910-1950”. In: TOLEDO, L.H.; MALAIA, J.; BUARQUE DE HOLANDA, B.; ANDRADE DE MELO, V. (orgs). A torcida brasileira. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2012.

MURAD, M. Dos pés à cabeça: elementos básicos de sociologia do futebol. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996.

MURAD, M. A violência ao futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

PALHARES, M. F. S; SCHWARTZ, G. M; TERUEL, A. P; SANTIAGO, D. R. P; TREVISAN, P. R. T. C. 2012. Lazer, agressividade e violência: considerações sobre o comportamento das torcidas organizadas. Motriz, Rio Claro, v.18 n.1, p.186-199, jan./mar. 2012.

PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol, violência e autoafirmação: aspectos da construção das novas relações sociais. Taubaté: Vogal, 1997.

LOPES, F. T. P.; Baldy dos Reis, Heloísa Helena. Ideologia, futebol e violência: uma análise do relatório “Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania”. Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 69, núm. 3, 2017, pp. 36-51 Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil.

LOPES, F.T.P. Dimensões Ideológicas do debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 27, p.597-612, out-dez. 2013.

SANTOS, T. C. Dos espetáculos de massa às torcidas organizadas: paixão, rito e magia no futebol. São Paulo: Annablume, 2004.

SIMMEL, G. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade. Tradutor Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fábio Henrique França Rezende

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer (GESPEL/UFMG). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas (GEFUT/UFMG).

Renato Saldanha

Professor da UFPE (CAV/UFPE), formando em Educação Física pela UFV, Doutor em Estudos do Lazer pela UFMG.Membro do GeFUT/UFMG (Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas) e coordenador do GEFFuT-PE (Grupo de Estudos sobre Festas, Futebol e Torcidas - Pernambuco)

Como citar

REZENDE, Fábio Henrique França; SALDANHA, Renato Machado; , . Tutela e controle no torcer no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 20, 2023.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães