No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

agressão futebol
Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Foto: Reprodução/RBS TV

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram.

Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências

GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Um homem possível. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 18, 2023.
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