“Um jeito de jogar todo errado”: as vicissitudes dos futebóis de rua
Investigar a pluralidade de práticas futebolísticas ativadas no dia-a-dia pressupõe compreender não só a construção intrínseca destas práticas, mas também suas relações com a cidade e as apropriações que os praticantes do jogo de bola fazem do espaço urbano, principalmente nos usos que fazem da rua.
Em alguns bairros periféricos de São Paulo – mas nem todos, tendo em vista a crescente consolidação das diferentes periferias paulistanas – ainda é possível notar, constantemente, a presença das crianças nas ruas, sozinhas ou em grupo, brincando ou mesmo trabalhando. A “pista”, termo utilizado pelos garotos e garotas da Cidade Líder, bairro da Zona Leste de São Paulo, para se referirem às ruas do bairro e da cidade, quase sempre estava ocupada às tardes ao longo da semana. Seus praticantes enfrentam vários adversários: os oponentes no jogo; os carros, adversários no uso da rua; os vizinhos, contrários ao barulho que vem da rua; as mães, inimigas do tempo gasto nesse espaço.
Certo dia, durante o período de trabalho de campo para a pesquisa de mestrado (Spaggiari, 2009), observei três garotos que esperavam ansiosamente a chegada da bola, que ficara presa no quintal de uma casa. Quando a bola chegou, apareceu também o goleiro, que rapidamente se colocou em frente a um portão de garagem. Usavam paredes ou portões de casa como gols para jogar “três dentro e três fora”; alocavam quatro tijolos no asfalto como pequenas traves para jogar “linha”; e distribuíam-se no espaço para jogar “bobinho”. Recriava-se, portanto, regras, técnicas e fundamentos, enquanto outros conceitos futebolísticos eram readaptados: escanteio, lateral, tiro de meta, pênalti e infrações.
As regras eram definidas por todo o grupo, o que as tornavam flexíveis de acordo com os participantes, bem como em relação aos ambientes de jogo. Quando uma partida era desigual, parava-se o jogo, as equipes eram escolhidas novamente e iniciava-se uma nova disputa. O resultado do jogo estava sempre em discussão, pois as contagens das equipes destoavam. Adicionavam-se certas normas, algumas mais importantes que as outras: o goleiro só podia pegar a bola com a mão dentro da área; só valia gol rasteiro; não contava gol feito em tabela com carro estacionado; goleiro podia jogar na linha; trocava-se de goleiro quantas vezes quisessem e quando desejassem; a bola era do adversário se caísse na casa dos vizinhos ou em cima do telhado; e quem chutasse a bola para longe é quem pegava.
São muitas as diferenças entre as práticas espetacularizadas e a prática de rua, tal como pensou Wacquant (2002), quando diferenciou as práticas do boxe profissional e da briga de rua: o primeiro, segundo o autor, requer um conjunto de dispositivos incorporados através do treinamento; já a luta de rua não exigiria tal comprometimento. Contudo, era possível perceber naquela prática futebolística de rua a competição, seriedade, brincadeira, aspectos lúdicos e às vezes até dinheiro envolvido.
Essa prática de rua se assemelha à “pelada”, identificada por Damo (2007) na matriz bricolada. Para alguns interlocutores da Cidade Líder, pelada e futebol de rua são quase iguais. Para outros, porém, futebol de rua é diferente da pelada. Para explicitar as diferenças, o cronista Luis Fernando Veríssimo enumera quais seriam as regras do futebol de rua (veja o curta abaixo):
Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora (Veríssimo, 2006, 49).
Tal definição era partilhada por Vitor, morador do bairro e ex-aluno da escolinha de futebol do CDC Cidade Líder:
Vitor: Futebol de rua, rua é rua. Rua não dá para jogar direito porque é muito apertadinha. É muito estreita a rua. Mas o futebol de pelada é melhor porque tem espaço, aí você já começa a fazer o que você quer fazer com a bola, então é legal futebol de pelada.
E: Futebol de várzea é diferente de futebol de pelada?
V: Futebol de várzea já é diferente porque é, tipo, um compromisso. Pelada, você não tem muito compromisso e a várzea você já tem, porque você está ali cheio de futebol competitivo. Para vencer já é mais responsabilidade. Desde pequeno eu jogava futebol e gostava de jogar futebol, eu sempre quis ser jogador de futebol. Eu me lembro que entrei na escola com sete anos, aí eu chegava em casa e já ia jogar. Minha mãe tinha que me chamar no campinho porque eu não ia fazer lição de casa, ficava até escurecer.
Aprende-se muita coisa jogando futebol na rua, mas o que se aprende não é o principal. Essa era uma ideia compartilhada pelos diferentes atores envolvidos com a escolinha de futebol do CDC Cidade Líder. Criticavam a espontaneidade e as desobrigações atreladas ao futebol de rua e à pelada, culpando-os por manias e ‘vícios’ – “um jeito de jogar todo errado”, afirmou um dos treinadores locais – ostentados pelos garotos nos treinos e jogos dentro da escolinha.
Vale destacar, contudo, a importância das outras práticas acionadas na rua. Pude observar a prática de inúmeros jogos e brincadeiras nas ruas da Cidade Líder: esconde-esconde, bola de gude, pipa, pega- pega. Não era comum, mas vi, em alguns momentos, jogos de taco nas ruas do bairro. Alguns garotos confirmaram que as constantes corridas no jogo do taco ajudam a jogar futebol.
Contudo, o universo da rua não é exclusivamente das brincadeiras das crianças. Em junho de 2007 observei a soltura de balões em uma rua do bairro por um grupo de baloeiros, por volta de sete homens adultos, que me explicaram, um pouco relutantes, o processo de construção dos balões, visto que se trata de uma prática ilegal. Motivo pelo qual privilegiaram destacar as dificuldades atuais da atividade, que levaram à necessidade de formação de agrupamentos de baloeiros.
Contra tudo e todos, a rua permanece, portanto, como um espaço tradicional não só da prática futebolística, mas das práticas lúdicas (corporais, esportivas, festivas) no cenário urbano paulistano, há muitas décadas.
Bibliografia
WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. 294 p.