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“Um jeito de jogar todo errado”: as vicissitudes dos futebóis de rua

Enrico Spaggiari 26 de março de 2018

Investigar a pluralidade de práticas futebolísticas ativadas no dia-a-dia pressupõe compreender não só a construção intrínseca destas práticas, mas também suas relações com a cidade e as apropriações que os praticantes do jogo de bola fazem do espaço urbano, principalmente nos usos que fazem da rua.

Em alguns bairros periféricos de São Paulo – mas nem todos, tendo em vista a crescente consolidação das diferentes periferias paulistanas – ainda é possível notar, constantemente, a presença das crianças nas ruas, sozinhas ou em grupo, brincando ou mesmo trabalhando. A “pista”, termo utilizado pelos garotos e garotas da Cidade Líder, bairro da Zona Leste de São Paulo, para se referirem às ruas do bairro e da cidade, quase sempre estava ocupada às tardes ao longo da semana. Seus praticantes enfrentam vários adversários: os oponentes no jogo; os carros, adversários no uso da rua; os vizinhos, contrários ao barulho que vem da rua; as mães, inimigas do tempo gasto nesse espaço.

Certo dia, durante o período de trabalho de campo para a pesquisa de mestrado (Spaggiari, 2009), observei três garotos que esperavam ansiosamente a chegada da bola, que ficara presa no quintal de uma casa. Quando a bola chegou, apareceu também o goleiro, que rapidamente se colocou em frente a um portão de garagem. Usavam paredes ou portões de casa como gols para jogar “três dentro e três fora”; alocavam quatro tijolos no asfalto como pequenas traves para jogar “linha”; e distribuíam-se no espaço para jogar “bobinho”. Recriava-se, portanto, regras, técnicas e fundamentos, enquanto outros conceitos futebolísticos eram readaptados: escanteio, lateral, tiro de meta, pênalti e infrações.

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Futebol de rua. Foto: Lucas Ninno.

As regras eram definidas por todo o grupo, o que as tornavam flexíveis de acordo com os participantes, bem como em relação aos ambientes de jogo. Quando uma partida era desigual, parava-se o jogo, as equipes eram escolhidas novamente e iniciava-se uma nova disputa. O resultado do jogo estava sempre em discussão, pois as contagens das equipes destoavam. Adicionavam-se certas normas, algumas mais importantes que as outras: o goleiro só podia pegar a bola com a mão dentro da área; só valia gol rasteiro; não contava gol feito em tabela com carro estacionado; goleiro podia jogar na linha; trocava-se de goleiro quantas vezes quisessem e quando desejassem; a bola era do adversário se caísse na casa dos vizinhos ou em cima do telhado; e quem chutasse a bola para longe é quem pegava.

São muitas as diferenças entre as práticas espetacularizadas e a prática de rua, tal como pensou Wacquant (2002), quando diferenciou as práticas do boxe profissional e da briga de rua: o primeiro, segundo o autor, requer um conjunto de dispositivos incorporados através do treinamento; já a luta de rua não exigiria tal comprometimento. Contudo, era possível perceber naquela prática futebolística de rua a competição, seriedade, brincadeira, aspectos lúdicos e às vezes até dinheiro envolvido.

Essa prática de rua se assemelha à “pelada”, identificada por Damo (2007) na matriz bricolada. Para alguns interlocutores da Cidade Líder, pelada e futebol de rua são quase iguais. Para outros, porém, futebol de rua é diferente da pelada. Para explicitar as diferenças, o cronista Luis Fernando Veríssimo enumera quais seriam as regras do futebol de rua (veja o curta abaixo):

Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora (Veríssimo, 2006, 49).

Tal definição era partilhada por Vitor, morador do bairro e ex-aluno da escolinha de futebol do CDC Cidade Líder:

Vitor: Futebol de rua, rua é rua. Rua não dá para jogar direito porque é muito apertadinha. É muito estreita a rua. Mas o futebol de pelada é melhor porque tem espaço, aí você já começa a fazer o que você quer fazer com a bola, então é legal futebol de pelada.

E: Futebol de várzea é diferente de futebol de pelada?

V: Futebol de várzea já é diferente porque é, tipo, um compromisso. Pelada, você não tem muito compromisso e a várzea você já tem, porque você está ali cheio de futebol competitivo. Para vencer já é mais responsabilidade. Desde pequeno eu jogava futebol e gostava de jogar futebol, eu sempre quis ser jogador de futebol. Eu me lembro que entrei na escola com sete anos, aí eu chegava em casa e já ia jogar. Minha mãe tinha que me chamar no campinho porque eu não ia fazer lição de casa, ficava até escurecer.

Aprende-se muita coisa jogando futebol na rua, mas o que se aprende não é o principal. Essa era uma ideia compartilhada pelos diferentes atores envolvidos com a escolinha de futebol do CDC Cidade Líder. Criticavam a espontaneidade e as desobrigações atreladas ao futebol de rua e à pelada, culpando-os por manias e ‘vícios’ – “um jeito de jogar todo errado”, afirmou um dos treinadores locais – ostentados pelos garotos nos treinos e jogos dentro da escolinha.

Vale destacar, contudo, a importância das outras práticas acionadas na rua. Pude observar a prática de inúmeros jogos e brincadeiras nas ruas da Cidade Líder: esconde-esconde, bola de gude, pipa, pega- pega. Não era comum, mas vi, em alguns momentos, jogos de taco nas ruas do bairro. Alguns garotos confirmaram que as constantes corridas no jogo do taco ajudam a jogar futebol.

Contudo, o universo da rua não é exclusivamente das brincadeiras das crianças. Em junho de 2007 observei a soltura de balões em uma rua do bairro por um grupo de baloeiros, por volta de sete homens adultos, que me explicaram, um pouco relutantes, o processo de construção dos balões, visto que se trata de uma prática ilegal. Motivo pelo qual privilegiaram destacar as dificuldades atuais da atividade, que levaram à necessidade de formação de agrupamentos de baloeiros.

Contra tudo e todos, a rua permanece, portanto, como um espaço tradicional não só da prática futebolística, mas das práticas lúdicas (corporais, esportivas, festivas) no cenário urbano paulistano, há muitas décadas.

Bibliografia

DAMO, Arlei S. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 2007. 359 p.

SPAGGIARI, E. Tem que ter categoria: construção do saber futebolístico. Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas São Paulo. 2009.

VERISSIMO, L. F. “Futebol de rua”. In: COELHO, E (Org.). Donos da bola. Rio de Janeiro: Língua Geral, p. 49-51. 2006.

WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. 294 p.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. “Um jeito de jogar todo errado”: as vicissitudes dos futebóis de rua. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 26, 2018.
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