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Vasco da Gama: 125 anos de uma paisagem popular

Em 125 anos de existência, o Club de Regatas Vasco da Gama expressou sua existência no espaço urbano do Rio de Janeiro de diversas formas, onde o simbólico e o material permearam o imaginário de toda a população, constituindo-se ao longo do século XX em uma das maiores agremiações esportivas do Brasil.

Todo este percurso na cidade do Rio, inclusive na sua Região Metropolitana, pode ser interpretado geograficamente pelo conceito de paisagem, um dos cinco principais da ciência geográfica. A paisagem possibilita a interpretação dos aspectos materiais em dado espaço, porém não se limita ao visível, pois permite uma apreensão dos significados, valores e simbologias presentes.

Por ser um conceito polissêmico, a paisagem apresentou diversas interpretações conceituais que durante o século XX transpassaram a geografia. Com a valorização do atributo simbólico na paisagem por parte de geógrafos ingleses e norte-americanos nos anos 1970, houve uma convergência de fatores que favoreceram o desenvolvimento de uma nova geografia cultural (Corrêa, 2011).

A partir dessa corrente de pensamento geográfico, o conceito de paisagem cultural ganha notoriedade por proporcionar a interpretação de realidades distintas. Nessa linha de raciocínio, o geógrafo inglês Denis Cosgrove enxerga a paisagem como um “modo de ver” o mundo, relacionando sua análise com fatores políticos, sociais, culturais e econômicos. O autor aponta que qualquer atividade e crença humana disponibiliza uma leitura de sua realidade, pela realidade ser multidimensional (Corrêa, 2011).

Nessa perspectiva, o futebol, e o remo, produtos sociais dotados de espacialidades e simbologias, permitem uma apreensão da realidade a partir de sua perspectiva espaço-temporal. Analisar o Vasco da Gama a partir de sua presença na paisagem da região metropolitana do Rio de Janeiro durante sua linha do tempo, é compreender como um dos clubes mais populares do Brasil se inseriu no cotidiano carioca e brasileiro a partir de suas materialidades e simbologias, estabelecendo novos significados na paisagem.

É importante ressaltar que a intenção inicial do texto era construir, em tom de celebração pelos 125 anos do clube, uma breve trajetória da relação do CR. Vasco da Gama com a cidade do Rio de Janeiro a partir do conceito de paisagem, incluindo a análise de sedes sociais e de remo, como as do Calabouço e da Lagoa Rodrigo de Freitas. Porém a recente interdição do histórico Estádio de São Januário, imposta pelo judiciário carioca, nos fez mudar o rumo da escrita. Focaremos nas origens do clube, já aos pés do morro da Providência, e nas paisagens do futebol do Vasco da Gama, apontadas desde a década de 1920 como mal estruturadas e de difícil acesso.

Paisagens Vascaínas no Centro da Cidade

Ao falar do CR. Vasco da Gama, rapidamente giramos o nosso olhar geográfico para a Zona Norte do Rio de Janeiro, onde se localiza o Estádio de São Januário. Foi no bairro de São Cristóvão que o Vasco construiu (e segue construindo, como no exemplo da criação do bairro Vasco da Gama) sua identidade territorial atual. Porém, é importante lembrar que o Vasco da Gama nasce no Centro do Rio de Janeiro, onde mantém sua sede administrativa até a década de 1970, e ainda hoje conta com uma de suas sedes sociais, na chamada ponta do Calabouço.

Essa história começa ainda no século XIX, no bairro da Saúde, onde foi alugada a primeira sede do Clube, próxima ao Largo da Imperatriz, aos pés do morro da Providência. Lá foi instalada a primeira escolinha de remo do Rio de Janeiro, capitaneada pelos irmãos Freitas. Porém, essa era uma sede provisória. 

Voltando ao tema das paisagens, é possível inferir que o primeiro impacto significativo do clube na paisagem do Rio de Janeiro foi a partir da construção de sua primeira sede própria, conhecida como o “barracão da Ilha das Moças”. A Ilha das Moças era um terreno alagadiço, e já não caracterizava uma ilha devido ao aterramento oriundo do desmonte do morro do Senado, que a ligava ao continente. O terreno era considerado um verdadeiro lamaçal pelos sócios do clube. Devido a essa dificuldade, os próprios sócios constroem uma ponte de madeira para facilitar a chegada dos sócios à sede. Infelizmente, não temos conhecimento de registros fotográficos desta sede, nem ao menos da ponte construída.

Posteriormente às primeiras sedes (Cais da Imperatriz e Ilha das Moças), o Vasco da Gama se instala no ano de 1899 na travessa do Maia, número 15. O clube apresentava franco crescimento e, por conseguinte, concretiza o aluguel de mais dois prédios adjacentes, interligando-os em 1904. No mesmo ano os edifícios do Largo do Passeio, onde se encontravam as sedes dos clubes Vasco da Gama, Boqueirão do Passeio, Natação de Regatas e Internacional são demolidos para abertura das avenidas Central e Beira Mar, causando grandes prejuízos materiais e societários para os mesmos. Rocha narra o sentimento dos vascaínos nesse momento de incertezas sobre o futuro do clube.

A travessa do Maia em verdade estava desaparecendo. Majestosa Avenida surgiria em seu lugar para a beleza e higiene da cidade. Nada obstante toda essa pressão do progresso Urbano da Capital, o clube expandia-se. Nos velhos barracões, sob a invencível ameaça de desapropriação fervia o sangue Vascaíno ansioso de galgar mais categoria e projeção do concerto dos clubes desportivos do país. (ROCHA, 1975, p. 82)

Em setembro de 1905 o clube se instala na rua Luiz de Vasconcelos, número 14, local oferecido temporariamente pela prefeitura. Mas é em 1906 que o Vasco, enfim, se muda para a histórica sede de Santa Luzia! 

O local, que seria alugado para servir de armazém de mercadorias, se tornou a sede do Clube. É importante relembrar que, àquela época, a Igreja de Santa Luzia estava próxima ao mar, justificando a instalação de um Clube de Regatas em suas proximidades. Seu atual distanciamento é devido ao aterramento da área, proveniente do desmonte do morro do Castelo. A Praia de Santa Luzia era, inclusive, local conhecido para banho de mar (Mattos, 2019 p. 25)

Ademais da demolição das sedes, os conflitos entre clubes e as obras urbanas ganham novos capítulos. De Barros et al. (2019) revela uma retificação da linha de costa entre a entrada da Baía de Guanabara e a praia de Botafogo, diminuindo a faixa de areia das praias. Para além do controle físico do litoral, a prefeitura intensifica a fiscalização sobre os usos das praias centrais, muito utilizadas pela população mais pobre da cidade, que não se via beneficiada pelas obras de melhoria urbana voltadas para a atualmente chamada Zona Sul carioca. São estabelecidos horários para uso das praias, e até mesmo as roupas dos banhistas são motivo de polêmica (Barickman, 2016).

Ou seja, no contexto da época, as mudanças na paisagem desafiavam os clubes da região central, entre eles o Vasco da Gama. A nova paisagem a ser construída, de grandes avenidas e novas vias de circulação de produtos, arrasava o modelo de cidade anterior, de ruas estreitas e sociabilidades mais cercanas. O uso das praias também estava sendo modificado, asfixiando os espaços de lazer e da prática esportiva da população, em nome do progresso. Os clubes como locais de sociabilidades esportivas (Pujadas e Santacana, 2003), são bastante afetados pelas mudanças na paisagem carioca.

Paisagens do futebol: Centro – Zona Norte, um caminho sem retorno

A década de 1920 reservaria um agitado momento na trajetória do Vasco da Gama. Após iniciar sua caminhada no futebol, esporte cada vez mais popular no cotidiano do Rio de Janeiro, o clube conquistou o título da segunda divisão carioca, em 1922, credenciando a equipe para disputar a divisão principal no ano seguinte.

Em 1923, com um elenco formado por negros, pobres e operários, a equipe cruzmaltina conquistou o título de campeão carioca no seu ano de estreia na divisão de elite. A equipe, que ficou conhecida como os “Camisas Negras”, marcou a história do futebol carioca e brasileiro, ao quebrar a hegemonia dos clubes da aristocracia carioca de então.

O título vascaíno, porém, gerou rusgas que foram difíceis de serem contornadas entre o Vasco da Gama e os clubes de maior influência da cidade até então. Com uma discussão latente sobre a prática do futebol, que envolvia o amadorismo e o profissionalismo, o Vasco era acusado de remunerar seus atletas. O curioso é que outras equipes adotavam tais práticas de maneira mais discreta, mas a condenação da atitude partiu do momento que negros, operários e pobres começavam a formar o plantel vascaíno (Venancio, 2014). 

 A conquista vascaína abalou a estrutura futebolística da cidade, fazendo com que América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense, alegando descontentamento com a gestão da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), fundassem, em março de 1924, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA).

Com as equipes de maior prestígio do cenário da cidade e com critérios que dificultavam a inserção de novos membros, a AMEA criou barreiras para a inscrição de jogadores mais humildes, recusando 12 dos atletas vascaínos. O fato fez o Vasco se levantar contra a Associação, ao ponto de emitir uma nota, que ficou conhecida como a “Resposta Histórica”, onde o clube saiu em defesa de seus atletas, enfatizando seu caráter popular.

Após idas e vindas entre Vasco e AMEA, o clube se viu novamente colocado em situação delicada, quando a Associação que agora organizava o principal campeonato da cidade, exigiu a posse de uma praça esportiva para a realização das partidas. O Vasco, que alugava estádios para os jogos com seu mando de campo, se viu obrigado a construir o seu próprio.

O recente prestígio vascaíno no contexto futebolístico, além do sucesso no remo, fez com que grande números de pessoas fossem adeptas da equipe. Com a presença de um quantitativo expressivo em seus jogos, o Vasco era um fenômeno de público, carregando consigo uma enorme massa de torcedores que acompanhavam fielmente a equipe.

Com a nova prerrogativa da AMEA, o clube vascaíno, através de um empréstimo e um esforço do seu quadro de associados, adquiriu um terreno em São Cristóvão, onde seria construído o seu estádio. A ida do clube para a zona norte da cidade, é tratada por Mascarenhas (2017) como um exemplo da movimentação do cenário esportivo, onde a cidade se expandia, alicerçado à popularização do futebol.

A paisagem da cidade, assim, também seria modificada a partir dessa dinâmica de expansão do esporte. Com a escolha por São Cristóvão, uma antiga área de chácaras, e na década de 1920, uma região de atividade têxtil/industrial, uma enorme forma geográfica passaria a ganhar destaque nessa área. São Januário, o estádio vascaíno, seria inaugurado, em abril de 1927, como o maior estádio da América Latina, sendo retratado pelos jornais da época como uma grande obra da engenharia.

São Cristóvão possuía grandes terrenos oriundos da época imperial, sendo substituídos, ao passar dos anos, por casas e vilas que abrigaram tanto a classe média, como, principalmente, a classe operária. Como pode ser visto na imagem a seguir, a paisagem da década de 1920 apresenta o estádio vascaíno dividindo espaço com formas que remetem às atividades industriais/têxtis, características da localidade que se mantiveram com a chegada da praça esportiva.

Entre uma lógica têxtil. Fonte: O Malho (1929).
Entre uma lógica têxtil. Fonte: O Malho (1929).

Os diversos galpões que podem ser vistos na imagem acima reforçam a lógica que Corrêa (1994) nos diz sobre o desenvolvimento de um núcleo urbano em torno de uma atividade econômica, que neste caso, seria o da fabricação têxtil, se complexificando cada vez mais nas primeiras décadas do século XX.

Todas essas marcas humanas que podem ser observadas, caracterizam a paisagem, fazendo da morfologia um importante meio de interpretação, desde as formas de ocupação, até a produção de determinada cultura (Sauer, 1998 [1925]). A partir disso, cabe ressaltar que o estádio não é erguido em um local inabitado ou sem história. Introduzido em um bairro que possuía sua própria dinâmica, São Januário, primeiramente, não rompeu com tal “lógica têxtil”, e sim potencializou dinâmicas de sociabilidade.

Ao longo do século XX, São Januário possui forte protagonismo no imaginário social carioca. Sendo o maior estádio da capital federal até 1950, o estádio não se tornou apenas a casa do Vasco da Gama, mas também um símbolo de uma forte aproximação com as camadas populares. Desde Getúlio Vargas, passando por comício do Partido Comunista, desfiles de escolas de samba, grandes shows e, claro, jogos de futebol, a praça esportiva vascaína era o equipamento da cidade escolhido para eventos que buscassem conformidade com o povo.

Parte desse povo, por sua vez, começa a ocupar gradativamente um espaço ao lado do estádio durante a década de 1930. Com o intuito de que moradias populares fossem construídas, o então presidente Vargas doou à Igreja Católica o terreno que foi ganhando corpo, preenchendo a paisagem que até então via neste sítio um vazio demográfico, como pode ser visto na figura 2. Tais habitações foram se multiplicando até chegarem a uma colina, uma barreira física que impedia seu crescimento (Schmidt, 2017). Estava nascendo a Barreira do Vasco, um nome que unia o impedimento de crescimento em determinado sentido a partir da sua geografia e o clube vizinho, que durante as décadas seguintes seria o grande ator na dinâmica entre bairro, estádio e favela.

vasco da Gama
A futura Barreira do Vasco. Fonte: Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama (década de 1920).

O batismo da favela com o nome do clube já indicava a forte espacialidade que o Vasco constituía em seus primeiros anos de estádio.  A paisagem dessa parte de São Cristóvão, de 1927 até os dias atuais, passaria a ter São Januário como a forma mais opulenta, morfologicamente falando, além de carregar forte apelo simbólico, não apenas para os vascaínos.

A paisagem popular do clube que virou bairro e favela

O estádio de futebol com toda a sua magnitude, normalmente carrega consigo um impacto visual na apreensão de uma paisagem. A partir disso, São Januário, desde a sua inauguração, apresenta uma representativa centralidade simbólica na paisagem de São Cristóvão e da própria Barreira do Vasco.

Ao tratar o conceito, Berque (2012) aponta que “a paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz, porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação” (p. 239). Sendo assim, a paisagem de São Januário, pode e deve ser descrita, como aponta Berque (2012) em referência a paisagem-marca, apresentando também uma experiência única, a partir de sua estética e questões relacionadas ao simbólico, por também ser paisagem-matriz.

O concreto e o sensível, assim, permitem uma síntese para uma análise mais rica e integradora da paisagem. É a partir desta perspectiva que podemos entender a importância do estádio vascaíno na constituição do novo bairro que iria surgir no final do século XX, mais precisamente em 1998, ano do centenário do clube cruzmaltino. Estava nascendo o bairro Vasco da Gama.

A paisagem-marca traz São Januário como forte presença concreta, mas também traz consigo sua simbologia, sua matriz de significados para moradores, torcedores e afins. É devido a importância do clube, a partir de seu estádio, que o bairro é criado com o equipamento esportivo localizado em seu centro. Se outras equipes cariocas possuíam seus nomes relacionados a bairros existentes, o Vasco originava um bairro a partir de sua nomenclatura (Ferreira, 2004).

Mas como dito anteriormente, não foi só para o novo bairro que o clube emprestou sua alcunha. A favela Barreira do Vasco, trouxe consigo ao longo de quase cem anos, essa forte simbologia por conta do seu posicionamento geográfico, vizinha ao estádio, além do seu nome de batismo.

Com paisagens que se complementam, sendo difícil separar o estádio da favela e vice-versa, Vasco e Barreira caminharam lado a lado durante esse quase um século de existência. Todavia, essa proximidade nem sempre foi bem vista durante o século pretérito.

Vasco
FIGURA 3 – Barreira do/e Vasco. Fonte: página “Vasco da Gama – Fotos Históricas” / Facebook

A localização da praça esportiva era vista de forma pejorativa por muitas pessoas e principalmente pelos rivais do clube. Entre as décadas de 1960 e 1970, existia uma forte discussão em torno da utilização de São Januário por parte do cruzmaltino. Um fator que faria o clube utilizar mais o estádio estaria atrelado à uma urbanização da favela, pois a mesma seria um fator negativo para a realização de partidas.

Nessa seara de visões distorcidas sobre a vizinha, até mesmo o desaparecimento da Barreira foi tratado como possibilidade visando a melhor condição para realização dos jogos. Todavia, o Vasco da Gama, em 1973, doa uma parte do seu terreno para que o governo do estado prolongasse uma das vias de acesso, onde qualquer possível ideia de remoção fosse descartada.1

Esse é apenas um dos exemplos que podem ser revisitados para percebermos uma rotineira visão depreciativa que o estádio de São Januário e a favela da Barreira do Vasco sofreram e ainda sofrem nessas décadas. Sessenta anos após doar parte de seu terreno para superar qualquer discussão que envolvesse uma possível remoção, o clube vascaíno se vê impedido pela justiça do Rio de Janeiro de atuar com público em seu estádio.

Alegando que São Januário não possui condições de receber jogos por ser cercado pela favela Barreira do Vasco, o clube viu seu estádio ser impedido de receber público por decisão da justiça, numa manobra, no mínimo, polêmica, tendo em vista o contexto que a cidade carioca possui em relação às favelas. Num levantamento realizado pelo aplicativo Fogo Cruzado, os arredores do estádio possuíam o mesmo número de ocorrências que o Maracanã (Seta, 2023), estádio mais emblemático da cidade, que não teve em nenhum momento sua operação contestada pela justiça.

Clube e favela, que se confundem, não só na paisagem, mas em toda a dinâmica econômica e simbólica que os atravessam, se vêem limitados por determinação judicial. O Vasco sofre prejuízos econômicos e esportivos por não poder atuar em seu estádio com a sua torcida, enquanto a favela tem 18 mil habitantes afetados direta ou indiretamente com a não realização dos jogos, causando impactos no trabalho e na renda dessas pessoas, como aponta o relatório do Observatório do Trabalho Carioca, vinculado a Secretaria de Trabalho e Renda da Prefeitura do Rio.2

Nascido no centro, a equipe de imigrantes portugueses se popularizou de tal forma, que foi abraçada por negros, operários e pobres, de maneira geral. Se alocando mais ao norte da cidade, viu uma favela e um bairro carregarem seu nome, tamanha popularidade. Hoje, a Barreira do Vasco não é vista apenas como uma mera vizinha, no lado de fora do estádio que já foi o maior da cidade, mas também dentro do “grandioso stadium” acima dos assentos mais importantes (figura 4).

Vasco da Gama
Barreira do Vasco – casa do legítimo clube do povo. Fonte: próprio autor (2022).

O CT Moacyr Barbosa: O Vasco e a favela se reencontram na Zona Oeste

A relação do Vasco com a Barreira é de fato extremamente significante, ao pensarmos todo o percurso histórico de quase cem anos. Todavia, não é só na zona norte da cidade que o clube vascaíno se aproxima geograficamente de uma favela. Com seu recente centro de treinamento, o CT Moacyr Barbosa, o Vasco se tornou vizinho da Cidade de Deus, uma das favelas mais conhecidas do Rio de Janeiro.

Em maio de 2019, a prefeitura da cidade, através do prefeito Marcelo Crivella, assinou a cessão de um terreno de 73 mil metros quadrados para a construção do CT vascaíno. Após a cessão, o Vasco iniciou uma campanha de crowdfounding, contando com grande participação da torcida,

concluindo a primeira etapa das obras em outubro de 2020.

Desde então, o clube passou a ter a grande maioria dos treinos da equipe profissional sendo realizados no Moacyr Barbosa, sendo mais uma paisagem da cidade carioca simbolizada pelo cruzmaltino (figura 5).

Vasco da Gama
Vasco e Cidade de Deus. Fonte: Netvasco (2021).

Além de ocupar mais um espaço da cidade fisicamente, o Vasco também se aproxima da favela vizinha no caráter simbólico. Em 2020, o clube doou cestas básicas para moradores, já em abril de 2023, os jogadores do elenco entregaram chocolates para crianças da favela, em ação filmada e retratada na tv oficial do clube. Ações parecidas já se tornaram tradicionais na Barreira do Vasco, onde clube e torcida realizam diversas campanhas durante os anos devido ao histórico já citado.

Com uma relação que ainda engatinha, podemos esperar um Vasco que busque uma aproximação com sua nova e já famosa vizinha, estreitando laços e reafirmando um caráter popular que o próprio clube narra. Sendo assim, ter uma favela ao seu lado não é uma novidade para o cruzmaltino e nem um fator negativo, pois se a Barreira do Vasco é a “casa do legítimo clube do povo”, como é estampado em São Januário, a Cidade de Deus pode ser vista como a “casa de treinamentos? do clube do povo”.

Notas

1 Secretaria projeta alargar S. Januário. O Jornal. Rio de Janeiro, 5, jan. 1973.

Referências

BARICKMAN, B.. Medindo Maiôs e Correndo atrás de homens sem camisa: A polícia e as praias cariocas, 1920-1950. Recorde: Revista de História do Esporte [Online], Volume 9 Número 1, Junho/2016. 

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Geografia cultural: uma antologia. Vol 1. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.

CORRÊA, Roberto Lobato. Origem e tendências da rede urbana brasileira. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 56, n. 1-4, p. 293-299, jan/dez. 1994. 

CORRÊA, Roberto Lobato. Denis Cosgrove – a paisagem e as imagens. Espaço e cultura, nº 29, p. 7-21. 2011.

DE BARROS, F.; SAUZEAU, T.; GUERRA, J. Historical evolution of seafront occupation in France (Bay of Biscay) and Brazil (Rio de Janeiro) face to coastal erosion vulnerability and risks (19th – 21th centuries). Confins (online), n.39 – Revista franco-brasileira de Geografia, 2019 

FERREIRA, F.C. O bairro Vasco da Gama: um novo bairro, uma nova identidade?. Niterói: Dissertação (Mestrado) Programa de Pós – Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, 2004. 

MASCARENHAS, Gilmar. São Januário, essa força estranha. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 20, 2017.

MATTOS, Lucas Nascimento de. Do Centro a São Cristóvão: como o Club de Regatas Vasco da Gama ajuda a explicar a evolução urbana do Rio de Janeiro (1898 -1927). 2019. 62 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Geografia) ─ Instituto de Geociências, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019

MATTOS, Lucas Nascimento de. Um jogo de ocupação de espaços: O Club de Regatas Vasco da Gama no caminho da urbanização carioca e o papel do futebol na (re)produção do espaço urbano (1915-1942). 2022. 133 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.

PUJADAS, X.; SANTACANA, C. El club deportivo como marco de sociabilidad en España. Una visión histórica (1830-1975). Hispania, v. 63, n. 214, p. 505–521, 2003.

SAUER, Carl. Otwing. A Morfologia da paisagem. University of California Publications in Geography, n. 2 (2) 1925. In: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny. (orgs.) Paisagem, Tempo e Cultura, Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.

SCHMIDT, Felipe. A colina que virou Barreira: o Vasco e sua relação com a comunidade. Globo Esporte, 2017. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/a-colina-que-virou-barreira-o-vasco-e-sua-relacao-com-a-comunidade.ghtml>. Acesso em: 20, ago. 2023.

SETA, Vitor. Interdição de São Januário: arredores da Colina tiveram mesmo número de tiroteios que os do Maracanã em 2023. O Globo, 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/vasco/noticia/2023/08/17/interdicao-de-sao-januario-arredores-da-colina-tiveram-mesmo-numero-de-tiroteios-que-os-do-maracana-em-2023.ghtml>. Acesso em: 30, ago. 2023.

VENANCIO, Pedro. Nasce o gigante da colina. Rio de Janeiro. Maquinária. 128 p. 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Rafael Freitas Bezerra

Licenciado em Geografia pelo Instituto Federal Fluminense (IFF) e Mestrando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos: Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas, que abarca pesquisadores de diversas universidades, onde são realizadas reuniões e produções que discutem a relação geografia e futebol.

Lucas Nascimento de Mattos

Vascaíno, Geógrafo, mestrando do POSGEO-UFF, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanas (NEURB/UFF)

Como citar

BEZERRA, Rafael Freitas; MATTOS, Lucas Nascimento de. Vasco da Gama: 125 anos de uma paisagem popular. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 25, 2023.
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