140.7

Viva os estudantes

Roberto Jardim 4 de fevereiro de 2021

Em 1963, a compositora e folclorista chilena Violeta Parra escreveu uma das mais belas canções em homenagem à disposição dos estudantes para a luta social. Em Me Gustan los Estudiantes, imortalizada por Mercedes Sosa, a autora dizia por que gostava deles. “Son aves que no se asustan / De animal ni policía” ou “Y no le asustan las balas / Ni el ladrar de la jauría”, diziam os versos.

Seis anos depois, universitários que jogavam pela Académica Coimbra deram um exemplo desse engajamento descrito pela chilena. Eles colocaram na história do clube um episódio na luta pela democracia que poucos times do mundo têm o orgulho de ter, ao apoiar a crise estudantil.

Nas fases finais da Taça Portugal de 1968–1969, eles decidiram levantar el pecho, como diz a letra de Violeta, ante a ditadura que dominava o país desde 1926 e que só acabaria em 1974, com a Revolução dos Cravos.

Os jogadores da Académica entes da final contra o Benfica pela Taça de Portugal 1968-1969. Foto: Reprodução.

Universitários protestam

E tudo começou porque, em abril de 1969, alunos da Universidade de Coimbra resolveram se rebelar após a prisão do recém eleito presidente da associação acadêmica, Alberto Martins (que viria a ser ministro da Justiça, entre 2009 e 2011), durante um protesto. A reação foi forte.

Em um ato em frente à sede da polícia, para onde Martins havia sido levado, eles decretaram luto acadêmico — algo comum em Portugal, quando, na morte de um colega ou professor, os estudantes vestem capas pretas, com as golas viradas para cima. Eles pediam a libertação do líder estudantil, a democratização do ensino — na época, 40% da população era analfabeta — e a reintegração de professores e colegas, expulsos pela perseguição política, entre outras reivindicações.

A reação dos alunos ocorreu mesmo com as ameaças inerentes a um regime ditatorial. Como bem lembra o historiador Rodrigo Carrapatoso de Lima, seus atos poderiam render o fim de uma bolsa de estudos, uma confrontação familiar, prisão ou, até mesmo, o envio para a Guerra Colonial — Angola, Moçambique e Guiné-Bissau lutavam pela independência.

Em resposta aos protestos, o governo de Marcello Campos — primeiro-ministro que assumiu o poder em setembro de 1968, após António Salazar ser afastado por problemas de saúde — deixou de lado a promessa de redemocratização, reforçando a repressão.

Académica na cancha

Foi aí que a Briosa, um dos apelidos da Académica, entrou em campo. Literalmente.

Na primeira partida da semifinal da Taça Portugal, contra o Sporting, em 8 de junho, em Lisboa, a equipe formada essencialmente por universitários foi à cancha em luto acadêmico. Mesmo vestindo o segundo uniforme, todo branco, os jogadores usavam uma tarja preta nos braços.

Também saíram do vestiário em direção ao gramado a passos lentos, como se estivessem em marcha fúnebre.

– Tínhamos combinado de entrar em campo com um inédito equipamento branco, com uma braçadeira negra – contou ao jornal Público, em 2012, o atacante Manuel António.

Na época, mesmo sem explicações, ficou evidente, para todos, que o grupo mostrava solidariedade aos colegas de universidade. O ato foi, mais do que tudo, um gesto de pertencimento ao que acontecia em Coimbra.

Dias depois, no jogo de volta, o protesto seria reforçado, com os atletas entrando com adesivos sob o distintivo do time e os estudantes da cidade mandando o recado nas arquibancadas lotadas, com cartazes e cânticos.

Com as vitórias de 2 a 1 e 1 a 0 sobre o time da capital, a equipe universitária ganhou direito de disputar a final, contra o Benfica, semanas depois. O ato dos jogadores, porém, chamou a atenção das autoridades.

A decisão contra o Benfica

Como contra-ataque dos poderosos, Artur Jorge, craque do time, foi impedido de disputar a partida ao ser chamado para prestar serviço militar. Ao mesmo tempo, a Federação Portuguesa de Futebol decidiu proibir o luto no equipamento dos jogadores.

As reações, entretanto, não intimidariam atletas e torcedores.

No final de semana da decisão, 21 e 22 de junho, Lisboa foi inundada por grupos de jovens. Junto aos universitários de Coimbra, estudantes de diversas cidades do país viajaram à capital, solidários. O grande movimento levou o primeiro-ministro e todo seu gabinete a desistirem de ir ao jogo para entregar a taça ao campeão.

Naquele domingo, o Estádio Nacional recebeu cerca de 70 mil pessoas, com a imensa maioria apoiando a Académica. Mesmo com a proibição da FPF, os briosos entraram em campo com a capa universitária nos ombros, sobre o uniforme todo preto, a gola levantada e em marcha fúnebre. E para ajudar, foram seguidos pelos atletas do Benfica no ritmo da caminhada.

Em plena crise acadêmica de 1969, viam-se nas arquibancadas cartazes de contestação política. Foto: Reprodução.

Apesar da repressão e da censura, nas arquibancadas, faixas foram abertas pelos torcedores. Dizeres como “Académica está de luto”, “Universidade livre” e “Viva a liberdade” apoiavam os estudantes da cidade, como lembrou ao Público, também em 2012, Martins, que esteve na partida:

– No intervalo é que surgiram os cartazes, com as palavras de ordem. É impressionante, porque eles vão percorrer todo o estádio, passando pelas mãos dos adeptos do Benfica, que se associaram espontaneamente ao protesto. Foi o jogo mais emocionante da minha vida.

O 2 a 1 para o Benfica deu o título para o time da casa, é claro. A partida, porém, entrou para a história como um símbolo da força estudantil, tanto dentro como fora das quatro linhas, como reforça Lima em seu texto.

Por isso, é conhecida até hoje como o maior comício contra o regime ditatorial. Além de ter sido o primeiro passo na luta pela volta da democracia, que ocorreria cinco anos depois.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club. Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. Viva os estudantes. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 7, 2021.
Leia também: