179.1

Whyte me ajudou a compreender o tipo de pesquisa que eu faço no futebol

Rodrigo Koch 1 de maio de 2024

Nas últimas décadas parece ter se tornado mais comum e frequente pesquisas etnográficas ou de cunho etnográfico, dando ares de um certo modismo entre os pesquisadores das áreas das Ciências Sociais e Humanas. Nunca considerei as investigações que fiz, e pretendo fazer, dignas de serem classificadas como estudos etnográficos. Ao meu entendimento, uma etnografia compreende uma inserção e envolvimento muito maior com as comunidades nas quais os pesquisadores percorrem seus caminhos investigativos, ou seja, fazendo – praticamente – parte dos contextos analisados, ou quase que – em determinado ponto do estudo – pesquisando a si mesmos ou no mínimo o grupo do qual estão fazendo parte.

Depois de já ter realizado meus estudos de mestrado, doutorado e pós-doutorado e por mais de uma década ter mergulhado no que chamo de fenômeno da Futebolização, acessei textos de William Foote Whyte e outros, e pude finalmente compreender o que de fato eu fiz, faço e ainda pretendo fazer: ‘Observação Participante’; que na minha avaliação e interpretação é uma metodologia preliminar ou preparatória a uma verdadeira etnografia. No entanto, os observadores participantes podem optar por nunca investirem e mergulharem em pesquisas etnográficas densas; o que penso seja meu caso. Os Estudos Culturais (com os quais mantenho afiliação) apresentam esta característica – por alguns considerada – um tanto superficial, procurando não tomar posições nas lutas e disputas que ocorrem nos campos culturais. Nós, investigadores dos Estudos Culturais, somos muito mais relatores e analistas dos fatos sociais, adotando posições afastadas de qualquer crítica, pessimismo ou otimismo – ainda que por vezes nossas escritas ou falas pareçam um tanto pessimistas. Embora a observação participante envolva a proximidade cotidiana com o grupo, o pesquisador não se torna um nativo. É neste ponto que considero que haja a grande diferença entre Observação Participante e Etnografia. Há, portanto, uma tensão constante entre proximidade e distância nesse tipo de experiência de pesquisa.

Simpatizo com Whyte, quando o mesmo adverte que a divisão comumente feita entre métodos qualitativos ou quantitativos na pesquisa acadêmica é meramente formal e, que um tipo de método não é mais importante que o outro, ou seja, ambos podem ajudar a responder diferentes perguntas, de diferentes modos. O importante é perceber qual tem o melhor rendimento em cada situação ou etapa, e para cada problema específico. Em meus trabalhos na última década e meia, costumo partir de um método quantitativo com grupos maiores para depois aprimorar e aprofundar os dados com métodos qualitativos em espécies de grupos focais. Contarei um pouco da história de William Foote Whyte e, farei um breve relato de minha trajetória no ano de pós-doutorado em solo europeu para que o leitor possa compreender melhor as metodologias de pesquisa empregadas.

William Foote Whyte. Fonte: Reprodução
William Foote Whyte. Fonte: Reprodução

William Foote Whyte foi um sociólogo estadunidense conhecido principalmente por seu estudo de cunho etnográfico em sociologia urbana. Pioneiro nos Estados Unidos em observação participante em contextos urbanos, ele morou por quatro anos em uma comunidade italiana em Boston. Whyte, de origem de classe média alta, mostrou desde cedo um interesse pela escrita, economia e reforma social. Recebeu seu diploma de bacharel em economia em 1936 e foi selecionado para a Universidade de Harvard, onde sua pesquisa marcante foi feita. Após sua pesquisa em Boston, ingressou no programa de doutorado em sociologia da Universidade de Chicago. Sociedade de esquina foi publicado pela University of Chicago Press em 1943. Ele passou um ano ensinando na Universidade de Oklahoma, mas desenvolveu poliomielite em 1943 e passou dois anos em fisioterapia. A reabilitação foi apenas parcialmente bem-sucedida; Whyte andou com uma bengala pelo resto de sua vida e usou duas muletas nos braços em seus últimos anos. Faleceu em julho de 2000, aos 86 anos.

Capa do livro em Sociedade de Esquina. Fonte: Reprodução
Capa do livro em Sociedade de Esquina. Fonte: Reprodução

Alguns aspectos metodológicos da Observação Participante

A Observação Participante é um tipo de coleta de dados tipicamente usado em pesquisa qualitativa e na etnografia. Este tipo de metodologia é empregado em muitas disciplinas, particularmente na antropologia, sociologia, estudos comunicativos, geografia humana e psicologia social. Seu objetivo é ganhar uma intimidade familiar e próxima com um certo grupo de indivíduos (como religiosos, ocupacionais, subgrupos culturais ou uma comunidade particular) e suas práticas através de um envolvimento intenso com as pessoas em seu espaço cultural, usualmente sob certo período de tempo.

A Observação Participante refere-se, portanto, a uma estratégia de pesquisa na qual o observador e os observados encontram-se em uma relação de interação que ocorre no ambiente dos observados. Suas etapas consistem em estabelecer relações, em campo fazer o que os locais fazem, recolher observações e dados e, por fim, analisar os dados através da análise temática e/ou narrativa. Vale desatacar que há tipos variados de Observação Participante: Não-participativa, Participação Passiva, Participação Moderada, Participação Ativa e Participação Completa. Penso que realizei algumas participações passivas (o pesquisador fica apenas no papel de espectador, mas limitado as possibilidades em estabelecer um relatório e aprofundar no campo de estudo) muitas moderadas (o pesquisador mantém uma balança entre estar “dentro” e “fora” nos papéis de estudo, mas isso requer uma boa habilidade de se destacar o suficiente para se permanecer objetivo) e poucas ativas (o pesquisador se torna um membro do grupo ao abraçar completamente as habilidades e costumes da população para atingir uma compreensão completa, portanto, este método permite o pesquisador ficar mais envolvido com a população, mas existe um risco de “virar um nativo” enquanto o pesquisador se esforça para uma compreensão profunda da população estudada).

Convoco também para este debate meu eterno guru: Zygmunt Bauman. Ao avaliar as bases da compreensão – através da escola alemã – em Hermenêutica e Ciência Social (BAUMAN 2022), o sociólogo polonês afirma que “[…] a etnometodologia é uma atividade basicamente empírica” (p. 265), e que “[…] a pesquisa etnometodológica não é ‘dos’ fenômenos, mas ‘através’ dos fenômenos” (p.266). Logo que esbocei o que imaginava ser o conceito de Futebolização fui alertado pelas orientadoras tanto de mestrado como de doutorado que se trava de um fenômeno e não de um conceito, apesar de alguns componentes da banca examinadora considerarem que a Futebolização poderia ser sim um conceito. Depois de mais de uma década operando e estudando contextos futebolizados, estou convencido que a mesma é, de fato, um fenômeno. “Superar a incompreensão é saber como, em princípio, controlar um fenômeno” (BAUMAN 2022, p.288)

Apesar de não ter formação em História e/ou Sociologia, em minha trajetória de investigador e pesquisador nos campos esportivo e educacional, percebo que já realizei diversos trabalhos com viés etnográfico tendo como principal ferramenta a observação participante, ou a historiografia. “Historiadores e etnógrafos são duas categorias profissionais que se defrontam com a tarefa da comunicação entre formas de vida separadas pelo tempo ou pela distância. […], elas se esforçam em produzir uma traduzibilidade que ainda não foi realizada ‘na prática’, no processo difuso dos relacionamentos, […]. Historiadores e etnógrafos talvez sejam as únicas pessoas que, em razão da natureza do seu trabalho, têm de alcançar a compreensão ‘sozinhos’, e por meio de um esforço puramente intelectual […]” (BAUMAN 2022, p.306) “Quanto maior a distância entre a forma de vida do etnógrafo (ou historiador) e a forma de vida investigada, mais as características gerais da vida humana podem ser necessárias para a compreensão, e mais elas são reveladas no decorrer dessa compreensão” (BAUMAN 2022, p.310)

Minha experiência em Observação Participante

Em agosto de 2021, ainda durante o período pandêmico, deixei o Brasil com a família rumo à Valência, na Espanha, onde desenvolveria minha pesquisa de pós-doutorado por um ano. A ideia era aplicar a tese da Futebolização – concebida no território do Rio Grande do Sul por aproximadamente uma década – em outro ponto do planeta. Mesmo sabendo de antemão de algumas dificuldades que poderia encontrar e, tendo buscado todo o tipo de informação pertinente à Comunidade Valenciana, eu literalmente não tinha noção das situações que iria enfrentar ao tentar me inserir num contexto europeu. Do ponto de vista acadêmico, sempre fui muito bem tratado e acolhido na Universitat de València, pois tive excelentes supervisores de pós-doutorado, os simpáticos e hospitaleiros professores Francesc Jesus Hernandez, e Benno Herzog. A coleta de dados e pesquisa em si, também ocorreram de forma tranquila depois que apreendi certos costumes e hábitos de vida valencianos … Inclusive, por sugestão dos meus colegas da Universitat de València, acabei ampliando o espectro do estudo por outras regiões da Europa, o que me ajudou a dar mais solidez e embasamento à tese da Futebolização. Todos estes caminhos investigativos, bem como seus resultados, podem ser conferidos na série de textos que publiquei aqui no Ludopédio e, na obra Cultura, Identidade e Futebolização: na Europa Contemporânea (2022). Mas nem tudo é tranquilo e fácil para um estrangeiro no Velho Continente; portanto, vou me ater agora a questão da importância de uma convivência cotidiana com o grupo estudado e, relatar como foram algumas situações do dia a dia de viver em Valência.

Cheguei em Valência ainda durante a pandemia da Covid-19, e assim sendo, havia uma série de restrições sanitárias que deveriam ser cumpridas. Regras para os locais (espanhóis) e regras para os de fora (estrangeiros, divididos em: membros da Comunidade Europeia e não membros). Havia uma série de formulários eletrônicos a serem preenchidos em cada escala da viagem. Naquele momento ainda não estava de posse da ‘tarjeta de extranjero’ e, portanto, fui tratado como mais um na fila de entrada no país. Apesar de estar com autorização do visto de estudos, ainda faltavam inúmeros trâmites burocráticos junto à Polícia para de fato ter a liberdade de circulação como um residente europeu. Passada a etapa de chegada (já tendo feito a imigração na Europa via Suíça e França, já que a Espanha estava fechada para voos do Brasil), os primeiros dias seriam de adaptação e uma intensa procura por um apartamento para viver com a família os próximos meses. O calor em Valência nos meses do verão europeu é sufocante e exaustivo. Os horários valencianos confundem qualquer recém-chegado. Há o costume da ‘siesta’, ou seja, dormir cerca de uma hora após o almoço; mas ocorre que o almoço dos valencianos é habitualmente às 14h. Então os horários de funcionamento das imobiliárias – que eu inicialmente desconhecia – era das 9h às 14h basicamente, com algumas retornando após às 17h e fazendo um pequeno expediente de atendimento até as 19h. Outro fato: nenhuma imobiliária de Valência te leva para conhecer um apartamento imediatamente. Fazem um questionário contigo previamente, uma análise subjetiva se o imóvel que deseja serve para você e, então agendam a tal visita para dois ou três dias depois. Eu saía do AirBnB, que havia locado por dez dias, diariamente por volta das 10h em busca de algum lugar e, percorria algumas quadras no calor escaldante de Valência por horas em vão. Retornava para almoçar e, depois quando imaginava reiniciar a busca estava tudo fechado por cerca de três horas. Não havia muito o que fazer, além de tentar avistar anúncios de aluguel em sacadas ou cair no lento sistema das imobiliárias. Paralelamente, minha esposa (Amanda), começou a procurar alternativas nas redes sociais e, via contato do Facebook encontrou primeiramente bicicletas – que nos facilitaram muito os deslocamentos (Valência não é uma cidade para pedestres, mas sim uma cidade excelente para ciclistas) – e posteriormente uma opção de apartamento; um pouco distante ao visualizarmos pelo mapa, mas que com o avançar dos dias seria a melhor das opções – e quase única – que encontramos. Fomos então parar em Xirivella, uma pequena cidade povoada por cerca de 30 mil pessoas em sua maioria idosos e, que fica colada à Valência, compondo com outros municípios próximos a região metropolitana local. Aqui vale uma citação de Whyte, que reforça o que vivenciei: “[…] os primeiros passos para conhecer uma comunidade são os mais difíceis. Com você [um amigo], eu posso ver coisas que, de outra forma, não veria durante anos” (WHYTE apud CASTRO 2014, p.156, [acréscimo meu]). Tive ajuda em grande medida dos professores da Universitat de València, com dicas e auxílios diretos, pois sem eles estes primeiros passos poderiam ter feito eu desistir da aventura de viver um ano em território valenciano para os estudos de pós-doutorado.

Comunitat Valencià
As bicicletas que nos conduziram por toda a Comunitat Valencià. Fonte: Autor

Daí em diante tivemos outros percalços nas rotinas da Comunidade Valenciana. Primeiramente apreendemos que em Valência o sol nasce após às 7h20 da manhã, então qualquer coisa que ocorra antes desse horário é considerada fato da madrugada. A vida por lá começa às 9h. As crianças entram na escola por volta das 9h30 e nessas instituições ficam até o horário do meio da tarde. Os valencianos param o que estiveram fazendo às 11h para ‘el almuerzo’ (um lanche matutino sagrado e reforçado, por vezes acompanhado de bebida alcoólica) e, após esta pausa retomam as atividades até às 14h, quando voltam às suas residências para ‘la comida’. Até às 17h é considerada hora de descanso. Depois voltam para mais algumas atividades laborais, que diferem conforme o ramo de atuação e profissão. Alguns estabelecimentos encerram o expediente às 19h (momento de ‘la merenda’, que também pode ser antes), outros optam pelas 20h e, poucos – como os supermercados – vão até às 21h. Muitas informações em Valência são desencontradas, então há dificuldades – por exemplo – para um estrangeiro em fazer a documentação definitiva de residente, encontrar escola para seus filhos, abrir conta bancária, e acessar serviços básicos entre outros aspectos. Conforme ocorreu com Whyte em sua experiência nos Estados Unidos, percebia que em Xirivella “[…] minha aceitação no distrito, dependia das relações pessoais que desenvolvia, muito mais do que qualquer explicação que pudesse dar” (WHYTE apud CASTRO 2014, p.163).

Para Whyte, o esporte foi fundamental como um ritual de passagem na comunidade na qual se inseriu e pesquisou. Para ele, ter participado de uma partida de beisebol na comunidade local foi um dos pontos fundamentais para adquirir uma certa condição de pertencimento ao grupo. Portanto, para mim, esta seria também uma ferramenta para que eu pudesse compreender melhor os mecanismos de funcionamento daquela localidade. Quanto a isso, tudo bem, pois meu locus de pesquisa era o futebol. Minha filha mais velha (Martina, então com cinco anos) não se adaptou à escola, que – por questões de manutenção da tradição – promove grande parte de seus ensinamentos no idioma valenciano (uma espécie de dialeto do catalão, que parece misturar um pouco de palavras ou sons franceses também). Por conta disso, adotamos uma metodologia de ‘home school’, para a qual inserimos uma enormidade de passeios históricos-educativos (fomos descobrindo que Valência tem muitas opções gratuitas neste sentido e que a cidade é composta de uma variedade étnica que encanta) e atividades desportivas, desenvolvidas no Complexo Poliesportiu Ramón Sáez. Ela, e a pequena (Cecília), após esta experiência, saíram de Valência com uma fantástica bagagem cultural, além de terem aprendido a andar de bicicleta e nadar e, adquirido um vasto repertório nas práticas corporais. Voltando ao ponto anterior, como eu pretendia pesquisar o fenômeno da Futebolização na Comunidade Valenciana, nada melhor do que começar a acompanhar estes movimentos na metrópole e, também na cidade onde estava me inserindo. Foram alguns meses de observação participante que me proporcionaram compreender a forte relação que os valencianos têm com o esporte num todo e, em especial, com o futebol. Parte deste trabalho pode ser conferido em Jardim do Turia: uma celebração à diversidade esportiva valenciana em imagens; e O ‘fútbol callejero’ transgride e sobrevive em Xirivella. Este último texto relata parte do que via meninos – e também meninas – fazerem diariamente nas praças de Xirivella para burlar os obstáculos locais com objetivo de praticar simples ‘peladas futebolísticas’.

As “famosas” em tarjetas de extranjero. Fonte: Autor

Ainda houve outras questões que mereceriam mais alguns parágrafos, mas vou tentar resumidamente contar algumas situações … Como já mencionei rapidamente, fazer a documentação definitiva exigiu paciência e quase que uma busca arqueológica pelo local ao qual deveria me dirigir. As informações disponibilizadas pelo Consulado Espanhol, em sites oficiais do governo local e, nas repartições públicas da imigração nos levaram a endereços desencontrados e me obrigaram a retornar ao Brasil para buscar parte dos documentos que faltavam quando deixamos o Rio Grande do Sul. De volta à Espanha e, de posse de todos os documentos, ainda passei mais de um mês em busca de agendamento na Polícia para encaminhar definitivamente a ‘tarjeta de extranjero’. Quando colocamos a mão nesta identidade europeia provisória e com data de validade muitas coisas mudaram – especialmente na forma de tratamento –, mas ainda seguíamos sendo latinos em território europeu. Em Valência, diferente do Rio Grande do Sul, o gás não é usado para cozinhar (fogão e forno são elétricos), mas é essencial para esquentar a água do chuveiro. No entanto, diferente daqui – onde basta chamar a troca/reposição do gás por telefone – por lá para acessar este serviço é necessária toda uma burocracia, que envolve ser proprietário do imóvel ou ter uma autorização do proprietário para isto. Portanto, cada vez que faltava o gás – durante o banho de alguém – eu colocava o botijão na cadeirinha de criança e pedalava algumas quadras para comprar um novo gás. Mas, lembram dos horários valencianos? Pois é, a revenda funcionava nestes horários e não abria aos sábados à tarde e domingos, então tomamos uma dezena de banhos frios durante o período que vivemos em Valência. No banco, para abrir uma conta para as transferências fui ridicularizado em algumas oportunidades e, na primeira vez em que tentei sacar dinheiro recebi como resposta do caixa que o horário de saque (8h às 11h) havia finalizado quatro minutos antes. Sim, o horário bancário era totalmente avesso ao horário valenciano e, o pior, aquele primeiro saque que tentei fazer foi em uma sexta-feira. Resultado: passamos um fim de semana sem dinheiro vivo no bolso e, dependentes apenas do cartão de crédito. Posteriormente minha esposa descobriu e acessou serviços internacionais de transferências de valores em dinheiro muito mais vantajosos e práticos. A conta bancária aberta em Valência, deixou de ser necessária.

Por fim, vale contar a experiência de tomarmos a terceira dose da vacina contra a Covid-19, em Xirivella. Naquele momento já estávamos ambientados e com muitos direitos iguais aos cidadãos espanhóis, portanto, não houve distinção entre nós e os moradores de Xirivella na fila de espera para a vacinação. Seguimos as orientações locais e fomos vacinados no posto de saúde juntamente com as pessoas da mesma faixa etária nossa. A espera foi, em certa medida, curta e demorou apenas três semanas. Vibramos no dia da vacinação, pois ganhamos juntamente com a terceira dose um documento que era uma espécie de passaporte sanitário europeu e que nos dava mais liberdade de circulação. Sempre defendemos a vacinação e, enxergávamos os contrários com estranhamento. No entanto, esta terceira dose da vacina (tomamos duas doses de AstraZeneca no Brasil, e uma da Moderna na Espanha) não foi compatível com o organismo da minha esposa, causando uma série de efeitos colaterais – que a levaram aos hospitais por três vezes no mês seguinte. Ela teve uma espécie de microinfarto em uma das ocasiões quando pedalava e, desde então convive com sequelas que já tiveram efeitos mais intensos no início e, ainda hoje reagem por vezes de forma mais branda. Minha esposa está na parcela daquelas pessoas para as quais a vacina evitou a contaminação da Covid, mas ao mesmo tempo causou outros problemas de saúde. No futuro, penso que saberemos o que de fato ocorreu. Por enquanto, todos os exames realizados tanto na Espanha como no Brasil não apontaram dados conclusivos. Nestas idas e vindas aos hospitais e médicos, ela – por vezes – foi questionada se não estava tendo simples reações sugestivas provocadas pelo pensamento dela… Mesmo com toda documentação vigente, e seguro de saúde, ela seguia sendo uma estrangeira.

Fonte: Autor

Em boa medida, muitas das experiências e dificuldades pelas quais Whyte passou quando tentou se inserir em uma comunidade italiana de Boston, passamos também ao vivermos por este período em Valência. Acredito que tenhamos vivenciado uma certa experiência de ‘outsiders’, conforme as descrições de Howard Becker e/ou Norbert Elias, onde “[…] o desvio, em sua perspectiva, é resultado da interação social entre grupos que buscam impor determinadas regras e aqueles que são por elas rotulados como ‘desviantes’” (CASTRO 2014, p.89). Portanto, nos contextos em que estivemos inseridos poderíamos fazer a pergunta: Regras de quem e para quem? Percebo que muitas questões que envolvem estrangeiros em qualquer país estão cercadas por poderes políticos e econômicos. “As pessoas estão sempre, de fato, impondo suas regras a outras, aplicando-as mais ou menos contra a vontade e sem o consentimento desses outros” (BECKER apud CASTRO 2014, p.97) No que tange à metodologia de pesquisa da Observação Participante, ainda valem outras duas citações/orientações de Whyte: “[…] é preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, e também que perguntas fazer. […] Se te aceitam, basta que você fique por perto, e saberá as respostas a longo prazo, sem nem mesmo ter que fazer as perguntas” (WHYTE). E não esqueça que, “Se o pesquisador estiver tentando entrar em mais de um grupo, seu trabalho de campo torna-se mais complicado. Pode haver momentos em que os grupos entrem em conflito um com o outro, e esperam que ele tome posição” (WHYTE). Sobre esta última citação, percebi muito bem este certo desconforto quando acessei os dois clubes de futebol de Xirivella e, também depois quando coletei dados em clubes vizinhos e coirmãos sediados no Jardim do Turia. Há uma expectativa dos entrevistados que haja uma preferência ou valorização de um em detrimento do outro. São situações de uma investigação que adota a Observação Participante como metodologia de estudo.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Hermenêutica e ciência social: abordagens da compreensão. Tradução por Fernando Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

CASTRO, Celso. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, Rodrigo. O ‘fútbol callejero’ transgride e sobrevive em XirivellaLudopédio, São Paulo, v. 150, n. 14, 2021.

KOCH, Rodrigo. Jardim do Turia: uma celebração à diversidade esportiva valenciana em imagens. LECTURAS EDUCACIÓN FÍSICA Y DEPORTES, v. 27, p. 189-205, 2022.

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização: na Europa Contemporânea. Saarbrücken/Alemanha: Novas Edições Acadêmicas, 2022.

Wikipédia. Observação Participante. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Observa%C3%A7%C3%A3o_participante Consultado em: fevereiro de 2024.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Rodrigo Koch

Pós-Doutor (Sociologia) pelo Institut Universitari de Creativitat i Innovacions Educatives de la Universitat de València, Doutor em Educação (Culturas Juvenis) pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre em Educação (Estudos Culturais) pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), pós-graduado em Administração e Marketing Esportivo pela Universidade Gama Filho (UGF), e graduado em Educação Física pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Vencedor (1º lugar na classificação geral) do Prêmio Brasil de Teses e Dissertações sobre Futebol e Direitos do Torcedor - Edição 2018-2019. Pesquisador Associado do Centro Latino Americano de Estudos em Cultura - CLAEC. Professor adjunto D da Uergs - Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, lotado na unidade Hortênsias-São Francisco de Paula.

Como citar

KOCH, Rodrigo. Whyte me ajudou a compreender o tipo de pesquisa que eu faço no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 1, 2024.
Leia também:
  • 180.8

    Si midiéramos la eficiencia en la Liga, el campeón hubiera sido el Girona, con Madrid y Barça a la zaga

    Julio del Corral Cuervo
  • 179.12

    A cobrança de pênaltis no futebol é mais ciência do que uma loteria

    Javier Galvez Gonzalez, José Manuel Cenizo Benjumea
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike