37.6

You’ll Never Walk Alone

Marcos Alvito 19 de abril de 2013

A rainha de chuteiras 37

Desta Vez, Liverpool era Vermelha

Em Liverpool, a rivalidade entre evertonians (torcedores do Everton FC) e  liverpudlians (torcedores do Liverpool FC) é enorme. Basta dizer que quando as duas caras metades torcem para times diferentes há o chamado “casamento misto”. Para não haver briga, marido e mulher combinam: o primeiro filho vai ser Liverpool, o segundo Everton e por aí vai. 

Mas naquela tarde, andando pelas  ruas de Liverpool, algumas horas antes do jogo contra o Arsenal, tinha a impressão de que o Liverpool era o único time da cidade. Aliás, tinha a impressão de que o Liverpool era o único time do planeta, pois as lindas camisas vermelhas que estavam por toda a parte eram envergadas com orgulho por franceses, poloneses, turcos, espanhóis, japoneses, alemães… Há associações de torcedores do Liverpool espalhadas por todo o mundo, com direito a um certo número de ingressos para os seus membros. Outros dão o seu jeito, como os espanhóis Juan e Alfredo, torcedores do Real Madrid desde pequenos e que afirmam ter o  Liverpool como seu “segundo time”. No caso deles, conseguiram os ingressos com um amigo que fora profissional do Celta de Vigo e conhece o treinador de goleiros do Liverpool. 

Uma Cidade Aberta ao Mundo

O ponto de encontro dessa torcida multinacional era a Williamson Square, uma praça no centro da cidade onde fica uma das lojas do clube. De sacolinha de compras na mão, bebendo cerveja naquele raro dia de sol, já ensaiavam as primeiras canções: “Ja-vier Mas-che-rano, Ja-vier Mas-che-rano”. Meia-dúzia de policiais espalhados pelos cantos da praça ficavam de olho na turma. Essa legião estrangeira lota os hotéis em dias de jogo do Liverpool. A recepcionista de um hotel do centro me mostra na tela do computador os dias em que há jogo do Liverpool: não há uma só vaga, as reservas foram feitas com meses de antecedência.

Esse caráter internacional combina muito bem com Liverpool, uma cidade voltada para o mar. Uma pequena aldeia de pescadores que se transformou em um dos mais movimentados portos da Terra graças ao seu papel de ponte com o Novo Mundo. Por lá entravam tabaco, açúcar, milho, madeira e o algodão, matéria-prima fundamental para as indústrias têxteis durante a Revolução Industrial. Liverpool também lucrou com o comércio de escravos por várias décadas, antes dele ser abolido na Inglaterra em 1807. Lá chegavam também imigrantes de diversas partes da Europa que buscavam “fazer a América”, pois Liverpool era a sede de inúmeras companhias de navegação especializadas nesse trajeto. A partir de Liverpool era exportado o carvão extraído nas minas do Norte da Inglaterra, bem como inúmeros produtos industrializados. 

You ll never walk alone
You ll never walk alone. Foto: Marcos Alvito

Liverpool Começa no Porto

No início do século XIX, 40% do comércio mundial passava pelas docas do porto de Liverpool, que chegaram a ter dez quilômetros de extensão ao longo do Rio Mersey. A população crescia a ritmo alucinante, sobretudo durante a década de 1840, quando centenas de milhares de irlandeses desembarcam em Liverpool fugindo da “Grande Fome”. Liverpool era uma cidade de contrastes acentuados: a opulência proporcionada pelo comércio lado a lado com bairros onde vivia uma população com a mais baixa expectativa de vida da Inglaterra em meados do século XIX. O trabalho nas docas era pesado, perigoso e instável: os trabalhadores eram escolhidos a cada manhã dentre os milhares apareciam em busca de um ganha-pão. Foi nessas duras condições que se forjou o temperamento dos “scousers”: espírito de luta, solidariedade, resistência, tenacidade e rudeza, mesclados com ácido bom-humor e um claro desprezo pelas autoridades, sobretudo o governo central.

Os Blues e Reds de Liverpool

No fim do século XIX, as principais diversões da classe trabalhadora de Liverpool eram a cerveja e o futebol. A história do Liverpool Football Club juntou esses dois elementos. O principal clube da cidade era o Everton FC,  fundado em 1878 a partir de um time da igreja de Saint Domingo. Dez anos depois, em 1888, o Everton seria um dos doze clubes que fundaram a Football League, que organizou o primeiro campeonato de futebol profissional da Inglaterra e do mundo, com jogos de ida-e-volta e pontos corridos, um esquema que existe até hoje, cento e vinte anos depois.

O campeonato foi um sucesso e em 1892 já havia duas divisões e um total de 28 clubes. Durante os quatro primeiros anos de existência da Football League, o Everton jogou em Anfield Road, em um campo alugado ao poderoso fabricante de cerveja John Houlding. Quando Houlding aumenta o aluguel anual do campo para a exorbitante quantia (para a época) de duzentas e cinquenta libras, os diretores do Everton, indignados, decidem abandonar Anfield Road e construir um outro estádio, a uma milha de distância. Se arrependimento matasse… 

Nasce um dos Grandes da Europa

Acontece que Houlding, um homem que chegaria a ser prefeito de Liverpool, agora tinha um estádio de futebol vazio e ocioso no qual ele investira um bom dinheiro. Solução? Criar um time de futebol. Houlding contratou uma série de habilidosos profissionais escoceses e montou um ótimo time da noite para o dia. Assim nasceu o Liverpool FC, que viria a tornar-se o maior rival do Everton e muito mais do que isso, um dos clubes mais famosos do planeta em pleno século XXI.

Três horas antes do jogo começar, desembarco do ônibus em Anfield Road. A movimentação já é intensa. Cambistas, turistas da bola, policiais, ambulantes oferecendo cachecóis, pins, cachorro-quente gigante, posters. A loja do clube estava lotadíssima e vendia até pipoca em uma embalagem de plástico com o símbolo do Liverpool. Ao lado da loja, uma estátua ao nível do chão de Bill Shankly com a legenda “Ele fez Liverpool feliz”.

Sob a vigilância da polícia
Sob a vigilância da polícia. Foto: Marcos Alvito
Casas fechadas nos arredores do estádio
Casas fechadas nos arredores do estádio. Foto: Marcos Alvito

O Primeiro Ídolo

Quando Shankly iniciou seu trabalho como manager do Liverpool em 1959, o clube estava em uma de suas piores fases: há cinco temporadas que não conseguia sair da 2a. divisão. Nas palavras do próprio Shankly, “o lugar era uma ruína, o time não era muito bom e o campo estava caindo aos pedaços”. Reformulando totalmente o elenco, convencendo os diretores a investirem na infra-estrutura e adotando inovações táticas, Shankly logo promoveu o time à primeira divisão e conquistou dois títulos em 1964 e 66, bem como a FA Cup, pela primeira vez na história do clube, em 1965. 

Nascido na Escócia em uma família da classe trabalhadora, Shankly simpatizava com o socialismo e era simplesmente adorado pela torcida do Liverpool por suas declarações bombásticas e bem-humoradas. Logo que chegou ao clube foi dizendo que seu objetivo era criar “um time invencível, de tal forma que terá que vir um time de Marte para ganhar da gente”. Consciente do antagonismo entre os Reds do Liverpool e os Blues do Everton, espicaçava os rivais sempre que podia, afirmando certa vez que havia dois grandes times em Liverpool, o Liverpool e os reservas do Liverpool.

Shankly dá Identidade ao Clube

Apaixonado pela bola, Shankly cunhou a famosa frase: “Algumas pessoas dizem que o futebol é uma questão de vida ou morte, mas é muito mais importante do que isso.” Shankly era impiedoso com os adversários: “Nós ganhamos de cinco a zero e eles tiveram sorte de conseguir zero…” e não abandonava o ar de vencedor mesmo quando a vitória não vinha: “O melhor time empatou”. Era um líder excepcional. Certa vez, quando o Ipswich veio enfrentar o Liverpool em Anfield, pediu aos jogadores que tirassem as camisas e fossem para o chuveiro tomar banho. Diante do espanto geral, disse que ia jogar as camisas no gramado e que elas seriam suficientes para derrotar o Ipswich…  Não gostava de estrelas e era bastante duro com os jogadores que não demonstravam suficiente vontade. 

In My Life, I Love You More

O renascimento do Liverpool às mãos de Shankly vinha em à mesma época em que a cidade atravessava um momento de grande efervescência cultural, sobretudo em termos musicais, com o pipocar de uma série de bandas bem sucedidas, cujo som havia sido favorecido pelo caráter cosmopolita da cidade-porto, muito influenciada pela Irlanda e pelos Estados Unidos. Nenhuma delas, entretanto, se compararia aos Beatles, cujos primeiros sucessos eram tocados a todo volume em Anfield a embalar os primeiros títulos da era Shankly. Foi nesta época também que os torcedores mais jovens começaram a se concentrar no Kop, uma terrace atrás do gol onde se espremiam até 28 mil pessoas em pé.

Aquele lugar iria tornar-se um palco importante para expressões da cultura jovem: não só o rock’n’roll mas todo um estilo jovem, com roupas e cortes de cabelo próprios. O Kop virara um vulcão humano, cheio de vida e humor. Mas não era um lugar fácil de frequentar. Havia muita camaradagem e solidariedade no Kop, mas a barra também era pesada: batedores de carteira, torcedores que vinham armados de facas para atacar os visitantes, um mar humano onde era preciso usar os cotovelos e cuja superlotação somada à excitação, em certos momentos produzia pernas ou costelas quebradas. De qualquer forma, o Kop era o coração da torcida do Liverpool, ali se inventavam cantos para cada um dos jogadores, ali milhares de pessoas gritavam em coro: “Ataque, ataque, ataque”.

Um Clube que Anseia por mais Milagres

A lua-de-mel entre Shankly e os torcedores do Liverpool durou 15 anos até o manager resolver aposentar-se repentinamente em 1974. As décadas de 70 e 80 foram o período de maior sucesso para o clube, que foi campeão da primeira divisão onze vezes entre 1973 (ainda com Shankly) e 1990, sem falar em vários títulos de competições européias. O Liverpool era o time a ser batido, odiado pelos adversários para a alegria da sua torcida. Mas de 1990 em diante, o Liverpool nunca mais ganhou um título da primeira divisão, um jejum abominável para uma torcida apaixonada e acostumada a vitórias.

Ultimamente, esta situação tem sido atenuada pelo sucesso do Liverpool na mais importante competição inter-clubes do mundo, a bilionária Champions League.  Em 2005, em uma final inesquecível assistida em todo o planeta, os Reds estavam perdendo para o Milan de Kaká por 3×0 ao fim do primeiro tempo. Em uma reação espetacular, na etapa final o Liverpool consegue marcar três gols em apenas seis minutos, empatando a partida e vencendo na disputa de pênaltis. O jogo ficou conhecido como “O milagre de Istambul”.

O hino não-oficial do Liverpool
O hino não-oficial do Liverpool. Foto: Marcos Alvito

Rivais Difíceis e Tempos Difíceis

Três anos mais tarde, a situação continuava a mesma. Na temporada 2008-9 o Liverpool decepcionara mais uma vez: sem nenhuma possibilidade de alcançar o Manchester United estava em quarto lugar no campeonato inglês, com o rival Everton na sua cola, ameaçando roubar-lhe o direito de disputar a Champions League do ano seguinte.  Diante da sua torcida, fora eliminado da FA Cup pelo Barnsley, um fraco time da segunda divisão. Em abril só lhe restava a Champions League. O sorteio dos confrontos entre os oito clubes que disputariam as quartas-de-final daquele ano coloca pela frente o Arsenal de Arsene Wenger, uma equipe rápida, habilidosa, praticando um futebol moderno e bonito.

Para piorar, o Arsenal também era uma “fera ferida”, pois uma série de contusões e resultados inesperados haviam afastado o time da primeira posição no campeonato inglês. Ou seja: a Champions League também era praticamente a única chance realista de título para o time do norte de Londres. Tecnicamente falando, o futebol praticado pelo Arsenal naquela temporada estava muitos níveis acima de do Liverpool, que vinha sobrevivendo graças ao talento de dois jogadores: o ídolo e herói local Steven Gerrard e o fora-de-série Fernando Torres, um fenomenal centroavante que o Liverpool contratara ao Atlético de Madri por mais de 20 milhões de libras.  No primeiro jogo, disputado na casa do Arsenal, a superioridade do jovem time montado por Wenger ficara patente. Mesmo assim, o Liverpool lutara incansavelmente os noventa minutos e conseguira sair do Emirates Stadium com um empate e um precioso gol marcado fora.

Mais uma Chance

Naquela terça-feira à noite, portanto, era matar ou morrer para ambas as equipes. Era um dos jogos mais esperados da temporada. Os cambistas estavam pedindo cem libras por um ingresso, quase três vezes o valor normal de trinta e quatro libras. E nem era para o Kop, ainda o coração do estádio mesmo depois da colocação de assentos em 1990. Por sorte, naquela noite eu tinha um ingresso exatamente para o Kop. Fora conseguido junto a meu amigo John Williams, um famoso sociólogo especializado em futebol nascido e criado em Liverpool. Embora more em Leicester, a quase três horas de carro de distância, Williams tem o season-ticket do Liverpool há várias décadas. Praticamente todo fim de semana John viaja para Liverpool ou para outra cidade onde o Liverpool estiver jogando. Não é o único.

Liverpool é Resistência

Quando encontro os amigos de John no simpático pub Flat Iron, uma hora e meia antes do jogo começar, descubro que embora todos naquele grupo tenham nascido em Liverpool, mais da metade não mora mais lá. Liverpool hoje tem uma população de 400 mil pessoas, a metade do que tinha em 1930.  Por seu papel estratégico, Liverpool foi pesadamente bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial:  quase metade das casas da cidade foram atingidas. A decadência econômica de Liverpool acentua-se no pós-guerra.

Antes de chegar ao Flat Iron eu dera uma volta pelos arredores de Anfield e ficara impressionado com o grande número de casas abandonadas, com as janelas lacradas pela prefeitura. Uma igreja evangélica, estrategicamente colocada entre um pub gigantesco e uma casa de apostas, lembrava que “Jesus se importa”. Steve, um dos amigos de John, me explica que aquele bairro é o mais pobre de Liverpool e tem alguns dos piores índices de qualidade de vida da Inglaterra. 

Uma Paixão sem Igual

Além de Steve, havia mais uma dúzia de amigos de John, a maioria acima dos quarenta anos, torcedores fiéis do Liverpool há várias décadas. Enquanto revezavam-se para buscar os pints de cerveja, debatiam a situação do time com pleno conhecimento de causa. Ali ninguém estava com a camisa ou o cachecol do Liverpool. Mas Sheila, por exemplo, uma simpática senhora com cabelos curtos totalmente brancos, me explica com indisfarçável orgulho que está na sua sexagésima temporada.

É isso mesmo: há 60 anos que ela assiste a praticamente todos os jogos do Liverpool. Ela ainda se lembra, por exemplo, do primeiro título europeu conquistado em 1977. Ela foi trabalhar de manhã, saiu ao meio-dia para o aeroporto e chegou em Roma a tempo de ver o Liverpool bater os alemães do Borussia Monchengladbach por 3×1. “Havíamos bebido tanta cerveja”, conta ela com ar maroto, “que o capitão do avião proibiu servir qualquer bebida no vôo e nem o duty free funcionou”. Chegando em Liverpool, bebeu uma garrafa de champagne com mais dois amigos. 

O pub onde nasceu o Liverpool FC
O pub onde nasceu o Liverpool FC. Foto: Marcos Alvito
Lá dentro só dá vermelho
Lá dentro só dá vermelho. Foto: Marcos Alvito

Análises e Bons Momentos no Flat Iron

O encontro no Flat Iron é um ritual pré-jogo e pós-jogo também, pelo menos no caso de vitória. Localizado em um bico de esquina cuja forma lembra um ferro de passar (daí o nome), o Flat Iron é um pequeno e simpático pub “neutro”, ou seja, que também acolhe os torcedores do time visitante. Naquele dia, além dos liverpudlians havia um bom número de torcedores do Arsenal. Depois de umas cervejas, a turma de Londres começa a provocação lembrando aos torcedores do Liverpool os quase vinte anos sem um título nacional: “When you are going to win the League?” Ao meu lado, Steve sorri e lembra: “já ganhamos 18 vezes”. Outros torcedores do Liverpool levantam-se e entoam uma resposta gesticulando e mostrando a mão espalmada: “Nós ganhamos em Istambul cinco vezes”. É que o Arsenal jamais ganhou a Champions League.

Sheila diz que aquilo é ótimo, ela adora aquele clima de provocação saudável, ao que parece sem nenhuma possibilidade de degenerar em pancadaria. Ajuda muito o fato da maioria ser de meia-idade, não há grupos de adolescentes, apenas um ou outro trazido pelo pai.  Um dos coroas do nosso grupo vem trazer a notícia da escalação do Liverpool, com a novidade da escalação do grandalhão Peter Crouch no ataque junto com Fernando Torres. Por ali as opiniões estão divididas. Sheila, do alto da sua vasta experiência, diz que está cansada do fato de que Crouch necessita de quatro toques para matar uma bola. “O quarto toque até é de qualidade”, ressalta ela, “mas a velocidade da jogada é comprometida”. Sábias palavras: a escalação de Crouch quase custaria ao Liverpool a eliminação da Champions League. Vamos ao jogo.

 

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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. You’ll Never Walk Alone. Ludopédio, São Paulo, v. 37, n. 6, 2013.
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