Impactante. Se existe uma palavra para descrever o filme Zidane: um retrato do século XXI eu escolho essa. O enredo desse longa-metragem dirigido por Douglas Gordon e Phillippe Parreno é uma partida do Real Madrid contra o Villareal que aconteceu em 23 de abril de 2005. O filme de 90 minutos é exatamente essa partida do campeonato espanhol só que sob a ótica de Zidane. Isso mesmo, é a partida inteira centrada no jogador.

A partir dessa condição de olhar somente para Zizou você é convidado a ter um outro olhar para o futebol. A intenção em produzir o filme nessa lógica foi a de produzir uma obra de arte. E se é uma obra de arte ela precisa causar incômodo. Precisa te tirar do lugar de conforto e produzir efeitos em você. Quando falo que o filme foi impactante é porque ele produziu isso em mim. As jogadas passam na sua frente, mas a câmera continua focada em Zidane. Isso é desesperador.

Se a proposta dos diretores é a de produzir uma obra de arte incorporei essa ideia para pensar o título deste texto. Sendo Zidane um dos representantes do futebol-arte e tomando-o, a partir do filme, a sua dimensão de obra de arte, penso que o que traduz o futebol de Zidane seja o futebol-obra de arte.

Voltando ao filme e sua complexidade. São 17 câmeras espalhadas pelo estádio para captar não a bola, mas Zidane. Todas de última geração para aquela época. São os detalhes de dentro de campo que o filme quer mostrar e exaltar como é a experiência de não ser conduzido a olhar para a bola como um jogo transmitido pela televisão nos faz. Aliás, já dizia Nelson Rodrigues que “o pior cego é aquele que só enxerga a bola”. Nesse caso, a televisão seria o “pior cego” do qual falava o escritor já que a todo momento somos conduzidos pelas lentes do câmera focando a bola. E quando filmam algo que não a bola ficamos desesperados!

O convite é exatamente esse, o de ter um outro olhar para o jogo. No trailer abaixo você poderá ver uma amostra dos detalhes que o filme capta. Em suas caminhadas pelo gramado Zidane frequentemente arrasta o pé direito sobre a grama. Pela televisão ou mesmo no estádio esse é um elemento que passaria despercebido.

Interessante pensar que o convite feito pelos cineastas foi de mostrar um fragmento de uma partida de futebol. A sequência das 17 câmeras para contar o jogo evidenciam essa fragmentação. É como se tivéssemos 17 jogos diferentes de futebol se olhássemos a partida inteira por cada uma das câmeras.

O filme mostra o quanto um jogador toca, de fato, na bola. Zizou, um dos craques do Real Madrid participa bastante do jogo, mas mesmo assim não fica com a bola nos pés o tempo todo. Ele pouco fala durante o jogo. Por Zidane ser um dos líderes daquela equipe eu imaginava que ele ficasse todo o tempo orientando os demais jogadores. Mas ele não ocupa esse lugar dentro de campo. Seu olhar está centrado o tempo todo no que ocorre ao seu redor. Zizou é altamente focado durante a partida.

Aliás, esse filme focado em Zidane mostra o quanto ele está “perdido na intensidade da concentração”. Essa é uma expressão utilizada pelo professor Hans Gumbrecht que surgiu em uma fala de um ex-atleta do atletismo de alto rendimento dos Estados Unidos. O atleta em questão, chamado Pablo Morales, revela o quanto ficou perturbado quando percebeu o que havia perdido por não participar da edição de 1988 dos Jogos Olímpicos. Ele havia ido em 1984 e após essa experiência de estar do outro lado voltou aos treinos e esteve nos Jogos de 1992.

Zidane está totalmente imerso na partida. Um dos pontos do seu sucesso enquanto jogador estava centrado no foco que tinha naquilo que fazia. Tanto é que Zizou dá apenas uma risada ao longo do jogo todo quando Roberto Carlos fala com ele após uma jogada. Entendo que a sua imersão na intensidade da concentração produzia seu diferencial em relação aos demais jogadores em cada lance.

zidane-filme
Zidane durante a partida. Foto: Divulgação.

Aqui temos um ponto para perceber o quanto o futebol mudou nos últimos tempos. Durante a partida, em vários lances os jogadores reclamam com o árbitro. Em nenhum momento colocam a mão na frente da boca para que não saibam o que dizem. É tudo aberto. Pode-se falar com o árbitro sem precisar esconder o movimento dos lábios. Esse futebol de 12 anos atrás não existe mais. Hoje só se fala com a arbitragem com a mão cobrindo a boca.

Outro ponto que se modificou em relação aos atletas é em relação a cor das chuteiras. Nessa partida é possível identificar chuteiras pretas ou brancas. Outras cores não se faziam presentes naquele momento.

Se você gosta de futebol precisa assistir a esse filme. Não espere um documentário sobre a vida do Zidane. O filme trata da história de uma partida focada apenas nele. Pode-se dizer que o filme seja cansativo e, de fato, é. Porém, isso se torna secundário se você aceitar ser levado por Zidane para onde ele quiser. Sem aceitar essa condição você não entenderá o filme como uma obra de arte e chegará ao final dele como se tivesse sido mais um filme que assistiu.

Só por curiosidade termino o texto com a escalação das duas equipes daquele sábado. Além de jogadores brasileiros na equipe do Real Madrid o seu treinador também era brasileiro, Vanderlei Luxemburgo. Quer saber quanto terminou a partida? Vai ter que ver o filme!

Real Madrid

Casillas, Francisco Pavón, Michel Salgado, Roberto Carlos, Wálter Samuel, David Beckham, Borja Fernández, Zidane, Michael Owen, Raúl e Ronaldo. Técnico: Vanderlei Luxemburgo.

Villareal

Pepe Reina, Armando Sám Rodolfo Arruabarrena, Gonzalo Rodriguez, Quique Álvarez, Juan Pablo Sorín. Josico, Marcos Senna, Juan Riquelme, Diego Forlán e José Mari. Técnico: Manuel Pellegrini.

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Zidane, futebol obra de arte. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 9, 2017.
Leia também:
  • 176.27

    Como Durkheim – com ajuda de Simmel – explicaria o futebol

    Rodrigo Koch
  • 173.11

    Salif Keïta, the defiant Malian football legend who created history on and off the field

    Paul Dietschy
  • 171.18

    A guerra em Nice: o que de fato aconteceu naquela noite

    Gabriel de Oliveira Costa