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Palestra Itália, fascismo e antifascismo: entrevista com o historiador Micael Zaramella (parte 2)

Desde o título brasileiro do Palmeiras em 2018, quando foi autorizada a presença do então recém-eleito presidente da República no Allianz Parque, tornou-se ainda mais comum, por parte de torcedores rivais, a associação do clube a valores fascistas. A base para esse “argumento” está na origem italiana da instituição, fundada por imigrantes em 1914.

Envolvido com a luta de coletivos progressistas palmeirenses e instigado por essa questão, o historiador Micael Zaramella decidiu pesquisar a presença de fascistas e antifascistas no Palestra Itália nas primeiras décadas do século XX. Sua dissertação de mestrado, intitulada “O Palestra Itália em disputa: fascismo, antifascismo e futebol em São Paulo (1923-1945)”, foi defendida em 2021 no programa de História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Em entrevista ao Ludopédio, realizada pela jornalista e antropóloga Mariana Mandelli, Micael fala sobre as tensões políticas do clube à época, sem deixar de trazer esse debate para o presente e refletir sobre revisionismo histórico, “esquerdoclubismo” e torcer como um ato político.

Esta é a segunda parte da entrevista (leia a primeira parte). A terceira parte será publicada na próxima quarta-feira.

Palmeiras Ditadura
Torcedores do Palmeiras se reúnem na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, em SP, com bandeiras “pela vida e democracia” e “ditadura nunca mais”. Foto: @draomcqueen/@paviojor

 

Como você encarou a bibliografia existente sobre o Palestra Itália, considerando outras pesquisas publicadas que tangenciavam a relação entre a instituição e o pensamento fascista? Como você criticou e analisou os achados de outros pesquisadores?

Perfeito. Bom, em relação à bibliografia, na verdade houve uma série de autores que eu optei por recorrer para tentar, em algum sentido, fundamentar a abordagem da discussão, sempre pensando na questão do fascismo e do antifascismo. Essa foi minha escolha em vez de pegar emprestada essa discussão da forma como ela foi feita por outros historiadores, inclusive historiadores do futebol cujo trabalho eu respeito muito, como o João Paulo Streapco[1] e o Alfredo Oscar Salum[2], que colocaram essas questões em relação ao Palestra Itália.

Como eu não queria pegar emprestada a leitura deles sobre fascismo, recorri à bibliografia especializada para pensar fascismo e antifascismo italiano no Brasil, usando autores como o João Fábio Bertonha[3], que é o maior estudioso que temos sobre esse tema. Recorri aos conceitos que ele propõe, como o conceito de fascismo difuso, que uso para pensar de que maneira a simpatia pelo fascismo se manifestava nas condições específicas dessa coletividade italiana.

O João Fábio Bertonha oferece um repertório conceitual bem rico para a gente entender as próprias contradições que ali existiam, como por exemplo italianos que pareciam “fascistas de carteirinha” e no da seguinte mudavam de lado. Também usei o conceito de afascismo, que está na obra do Angelo Trento[4], um grande estudioso da imigração italiana no Brasil.

Então usei a bibliografia sobre imigração italiana no Brasil, sobre fascismo e antifascismo, sobre lutas sociais nesse contexto e também a bibliografia sobre futebol, justamente para pensar o contexto futebolístico e, depois de forma mais específica, o Palestra Itália, colocando para conversar todas essas bibliografias. Eu acho interessante porque uma consegue apontar – e também dá conta – das limitações da outra. Por exemplo: muitas vezes a bibliografia sobre imigração ou sobre a questão do fascismo e do antifascismo trata de forma um pouco genérica ou generalizante a questão das associações e das agremiações. As citações que existem sobre o Palestra Itália nessa bibliografia são muito de passada, muito rápidas. Em nenhum momento existiu uma análise aprofundada do clube sendo feita por esses autores que pensaram imigração, fascismo e antifascismo, embora o clube seja citado às vezes como exemplo de uma ou outra situação. Daí eu recorri, por exemplo, ao José Renato de Campos Araújo[5] e ao Alfredo Salum, que estudaram a fundo o clube de Palestra Itália.

 Eventualmente, o movimento contrário também se deu. Outros autores apresentaram generalizações em relação à simpatia do Palestra Itália pelo fascismo que são facílimas de desmontar. Por exemplo, uma delas, que abordo no terceiro capítulo da minha dissertação, é a afirmação de que o projeto do Estádio Palestra Itália tinha inspiração na arquitetura fascista. Isso é uma afirmação genérica. Durante a minha pesquisa, recorri ao Diógenes de Sousa, que de fato pesquisou a construção do Parque Antarctica[6], e ao Fernando Atique[7], analisando os planos de construção e quem eram os arquitetos responsáveis pela obra. E não há vinculação alguma com fascismo.

Em suma: dá para falar de fascista no clube? Dá. Mas é preciso evitar generalizações.

 

Vou te fazer uma pergunta que provavelmente vai surgir conforme a sua pesquisa for circulando, especialmente em redes sociais, onde há cada vez menos espaço para debates aprofundados. Você acha que pode ser acusado de alguma maneira de ter procurado antifascismo dentro do Palestra Itália por conta de ser um torcedor progressista? Algo como “olha aí o militante querendo negar que tinha fascismo dentro do clube dele”?

Olha, sinceramente eu acho que sim. Mas eu confesso que isso me interessa muito pouco, porque em algum sentido já são alguns anos ouvindo essas afirmações e me desinteressando progressivamente de rebatê-las com o mesmo tipo de discurso. Se você caminhar pela rua Caraíbas [rua do entorno do Allianz Parque, onde torcedores se concentrarm antes e depois dos jogos], ali você vai encontrar palmeirense de direita e palmeirense de esquerda falando que a Democracia Corintiana foi a estratégia de marketing mais bem sucedida da história, por exemplo – e a gente sabe que é o clubismo falando mais alto.

Quando ficamos só apegados ao clubismo, é isso que vamos encontrar, inclusive dentro dos coletivos de esquerda. Mas existe uma outra abordagem, na qual a gente se propõe a olhar para as contradições que eventualmente esses processos históricos carregam. Se somos pesquisadores, precisamos olhar atentamente para eles. Nesse sentido, eu fico satisfeito com o resultado da minha pesquisa porque eu apresento o que eu encontrei sobre fascismo e antifascismo para então propor a minha interpretação, que tem a ver com a minha forma de pensar História e também com a minha forma de pensar, inevitavelmente, militância política. Existiam aqueles atores, aqueles agentes, produzindo disputas dentro do clube e a existência dessas disputas, por sua vez, produz possibilidades de imaginação da identidade palestrina-palmeirense, que nos permite pensar um Palmeiras para além da coletividade italiana.

E hoje? O que podemos fazer com as disputas que temos? Eu acho que a questão que está posta é simples: a gente quer um Palmeiras de todas e todos – é justamente isso que é proclamado pelos coletivos de torcedores. Por todos eles. Então em que medida o devir desse Palmeiras de todas e todos pode se produzir por meio do diálogo, ainda que muito tensionado por essas várias formas de ser palmeirense e dessas várias formas de comunicar, narrar e vivenciar essa identidade clubística? Tem palmeirense que se identifica com o que a gente chama de “italianismo de quermesse”, tem palmeirense que se identifica com os indígenas do Xingu, tem palmeirense que se identifica como antifascista, tem palmeirense que se identifica como Bolsonaro… Estão todos ali partilhando o conjunto desses dezessete, dezoito milhões que se dizem palmeirenses.

Em resumo, eu acredito que isso que você me perguntou pode aparecer mesmo, não só porque me coloco como palmeirense, mas porque me coloco como um palmeirense cuja inquietação de pesquisa partiu da experiência de conviver entre esses torcedores organizados em coletivos, observando o que eles estavam discutindo e dialogando. As inquietações que circulavam naquele meio se tornaram as minhas inquietações de pesquisa também.

Mas eu acredito que o trabalho que eu produzi não é apenas um trabalho que só quer responder às questões colocadas por torcedores de outros clubes. É um olhar sobre essa questão e que produz as suas próprias conclusões por meio de uma pesquisa.

 

Existem vários coletivos de palmeirenses progressistas, como já falamos. Entendo que esses torcedores e torcedoras, assim como você, encaram o torcer como um ato politico. Queria que você falasse um pouco sobre isso.

Com certeza torcer é um ato político – e em vários sentidos. A atuação do Ocupa Palestra, por exemplo, tem uma proposta de democratização do clube, de promoção do acesso de todas e todos ao Palmeiras, para que ele seja de todas e todos e para que as culturas torcedoras do clube não sejam restringidas por cerco[8], por ingresso caro e outras coisas. Por isso que essas se tornaram as grandes campanhas já realizadas pelo coletivo, como “Libera a rua” e “Ingresso caro não”. Como torcedores, estamos vivenciando tudo isso, todas essas questões. A política permeia o cotidiano e o cotidiano torcedor é permeado também por ela. Essa política tem características próprias, já que existem elementos do universo da arquibancada que são distintos de quem faz política em movimentos sociais, em sindicatos ou em comunidades religiosas, por exemplo. Cada cada espaço tem as suas linguagens, sua gramática, seus códigos e, no caso do ambiente torcedor, não poderia ser diferente.

Notas

[1] João Paulo Streapco é professor de História na educação básica e doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Sua dissertação de mestrado, obtida pela mesma universidade, é intitulada “Cego é aquele que só vê a bola. O futebol em São Paulo e a formação das principais equipes paulistanas: S. C. Corinthians Paulista, S. E. Palmeiras e São Paulo F. C. (1894 – 1942)”.

[2] Alfredo Oscar Salum é doutor em História pela USP com a tese “Palestra Itália e Corinthians: quinta coluna ou tudo buona gente?”.

[3] João Fábio Bertonha é pesquisador e professor de História na Universidade Estadual de Maringá (UEM). É doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – sua tese é denominada “Sob o Signo do Fascio: O fascismo, os imigrantes italianos e o Brasil, 1919-1945”. Já sua dissertação de mestrado, obtida pela mesma instituição, se chama “O antifascismo socialista italiano de São Paulo nos anos 20 e 30”.

[4] Angelo Trento é professor aposentado de História da América Latina na Universidade de Nápoles “Istituto Orientale”. É considerado uma referência internacional em assuntos relacionados à imigração italiana e ao fascismo.

[5] José Renato de Campos Araújo (in memoriam) foi docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Conquistou o título de doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com a tese “Migna Terra: Migrantes Italianos e Fascismo na Cidade de São Paulo (1922/1935)”. Sua dissertação de mestrado pela mesma universidade é intitulada “Imigração e Futebol: O Caso Palestra Itália”.

[6] Diógenes Rodrigues de Sousa é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sua dissertação de mestrado, publicada em 2017 pela mesma instituição, é intitulada “Cidade e Cerveja – Companhia Antarctica Paulista e Urbanização em São Paulo”. Seu trabalho de conclusão de curso em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) tinha como título “Parque Antarctica – Um Patrimônio do Lazer na Cidade de São Paulo no Início do Século XX”.

[7] Fernando Atique é professor do Departamento de História da Unifesp, onde leciona na graduação e na pós-graduação na área de História, Espaço e Patrimônio Edificado. É arquiteto e urbanista e mestre e doutor (2007) pela Universidade de São Paulo (USP).

[8] O cerco ao qual Micael se refere é o cercamento do Allianz Parque promovido pelo Palmeiras, com apoio da Polícia Militar de São Paulo e da subprefeitura, em dias de jogos, impedindo a livre circulação de pessoas no entorno da arena. Falei sobre essa prática na minha dissertação de mestrado.


* A terceira parte da entrevista será publicada no dia 11 de maio de 2022.

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Micael L. Zaramella Guimarães

Mestre em História Social pela FFLCH-USP, pesquisa as relações entre futebol, organização política e transformações urbanas e sociais na cidade de São Paulo, especialmente durante a Primeira República. É palmeirense e coordenador do Grupo de Estudos Palestrinos, vinculado ao coletivo Ocupa Palestra.

Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

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