A farsa e a tragédia do sorteio da Copa (ou o nada sutil “racismo à brasileira”)
Todas as luzes e câmeras direcionadas para o centro do palco da FIFA, na Costa do Sauipe. Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert apresentaram o sorteio dos grupos da Copa. Sepp Blater, presidente da FIFA, falou ao lado de Dilma, presidenta do Brasil. Craques campeões do Mundo de todos os tempos estiveram presentes e assessoram no sorteio dos grupos. Cartolas de todo o mundo desfilaram seus contentamentos. Houve apresentação da música e da cultura brasileira. Todos aplaudiram e ficaram satisfeitos com o evento.
Breve corte. Vamos pra parte de trás do palco.
O evento custou a bagatela de 26,4 milhões de reais. Não adianta enfatizar que a FIFA bancará a maior parte porque, a regra básica da matemática financeira é que não existe almoço (ou coquetel) grátis. O governo do estado da Bahia bancará diretamente uma parte.
Até aí, são cifras, e eu nem tenho muita familiaridade com isso.
Mas muito além disso, o tal sorteio da Copa vem provocando uma série de debates e não podemos passar ao largo.
1) Para a tal apresentação do sorteio, a Rede Globo, parceira da FIFA na organização local, teria sugestionado à entidade alguns casais, dentre os quais Camila Pitanga e Lázaro Ramos – ela, miscigenada, ele, negro, representariam bem a brasilidade no palco da Copa. A FIFA preteriu o casal negro e optou por Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert, uma gaúcha loira e um catarinense de olhos azuis, sob uma ventilada alegação de que os dois se enquadrariam num padrão esperado de comunicação mundial. Tão logo isso aconteceu a FIFA foi acusada por um segmento organizado de ter tomado uma atitude de fundamentação racista, o que foi refutado pela entidade. Fernanda Lima, questionada, saiu-se com essa: “O que eu tenho a ver com isso? Só porque eu sou branquinha?”
2) Iniciado o evento, qual papel destinado aos negros na cerimônia? Alcione, Emicida, Alexandre Pires, Vanessa DaMatta, Margareth Menezes, Olodum. Inegavelmente o papel artístico revolucionário desempenhado pelos negros é louvável e merece amplo destaque, mas igualmente essa afirmativa tem a sua armadilha conceitual – e sabemos muito bem como isso operou no sentido de apropriação e ressignificação dos feitos históricos de legitimação da inserção social demarcada (vide Mandela, agora pintado como um líder fofinho da união racial). Os exemplos de Pelé e Cafú, que também participaram do sorteio, caminham pela mesma vereda.
3) Quando o caldo entornou e o sorteio ia começar, Jerome Valcke, o tal que queria dar um pé na bunda dos brasileiros, entrou em cena na hora de abrir as bolinhas. Havia uma série de potes com as bolinhas que teoricamente teriam os países das seleções. Cada jogador aposentado pegava a bolinha de um pote e repassava à Valcke. Ele abria a bolinha, mas, na maior parte das vezes, na medida em que ia tirando o roletinho de papel de dentro, abaixava a bolinha para trás de um anteparo colocado no seu púlpito, de modo que não podemos ter certeza de que não havia troca dos papéis. (Reparem no vídeo ao final do texto, a partir dos 4 minutos – ele ainda parece olhar meio afoitamente nos momentos que ocorreriam as trocas). É claro que o truque bem feito é aquele que é bem ensaiado e oferece alguns lances verídicos; algumas poucas bolinhas são abertas sem medo, de modo que se possa ver que era aquele papelzinho mesmo – mas, salvo engano, isso só ocorreu uma vez em cada pote. (daí que podemos aferir, numa dedução não muito estapafúrdica, que cada pote tinha bolinhas com só um nome de seleção). Certeza, óbvio, não dá pra ter de nada. São só conjecturas. Mas por que Valcke não estava atrás de um púlpito clean, de vidro ou acrílico? Por que não havia câmera no palco?
3) Sepp Blater, o herdeiro de Havelange e ex-presidente da Sociedade Mundial dos Amigos da Cinta-Liga, falou ao lado de Dilma. Blater falaria mesmo, “hajasse o que hajasse”, mas Dilma havia dito que não se juntaria a essa gentalha. Deve estar colando na balança os pesos da corrida eleitoral e certamente mudou de ideia, seduzida pelo poder político simbólico do futebol. O próximo passo é posar ao lado de Marin, o Zé das Medalhas.
4) Terminada a grandiosa encenação Fernanda Lima “bombou” no twitter. “Que bela!”, “Que linda!”, “como será sua carreira internacional?”. Juca Kfouri, sempre à frente das causas humanitárias do futebol (ou da direção da Playboy) achou uma deslealdade com a presidenta colocá-la ao lado da apresentadora (seria uma “falta de educação” colocar qualquer mulher no mesmo palco que Fernanda Lima, sugestionou).
5) Para fechar realmente com chave dourada, começa a circular um vídeo, postado na rede há 2 dias, no qual a Fernanda Lima canta e dança, no seu programa da Rede Globo, a música do sambista Riachão, “cada macaco no seu galho”. O hit, tal e qual boa parte dos feitos históricos da resistência, é descaradamente apropriado para transmitir uma mensagem claramente de fundo racista – a mensagem de Riachão era outra, ilustres: “esse negócio da mãe preta ser leiteira já encheu sua mamadeira vá mamar em outro lugar”. Não podemos perder de vista que a apresentadora canta e dança essa música, enfatizando o “cada macaco no seu galho”, ao lado de um monte de dançarinos vestidos de macacos, no exato interstício entre a polêmica com Camila Pitanga e Lázaro Ramos e a apresentação do sorteio da Copa.
Não se podia esperar outra coisa de uma entidade que faz vistas grossas frente aos casos de racismo que pululam a todo instante em seus quintais, e cujas atividades sempre levantam suspeitas. A emissora, cujo chefe de jornalismo afirma insistentemente que não somos racistas, igualmente vem sendo questionada em função do viés ideológico racial e de classe de seus programas – sobretudo os humorísticos. A verdadeira alegria e subversão do futebol só pode ser esperada, de fato, de dentro do campo e das torcidas de arquibancada.
Texto originalmente publicado no blog Cronista do Alambrado e cedido para publicação nesse espaço.