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Breves notas sobre a Copa América 2024 e a identidade latino-americana

Fabio Perina 4 de julho de 2024

Uma coluna chamada “La Pelota No Se Mancha” obviamente não poderia deixar passar ao menos algumas breves notas pontuais e conjunturais sobre a atual edição da Copa América entre junho e julho, sediada nos Estados Unidos, tal qual em 2016. Vide durante a última edição de 2021 elaborei breves textos para contextualizar edições anteriores de 2001 na Colômbia1 e de 2011 na Argentina2, curiosamente ambos os países que seriam as sedes originais da edição de 2021, assim como um texto mais profundo em seu contexto político e esportivo com a épica consagração de Messi e da Albiceleste em pleno Maracanã rompendo um jejum desde 93.3 A partir de agora, irei construir esse novo e breve texto através de um duplo desalento externo e principalmente interno: o pouco interesse na mídia oficialista brasileira na cobertura ao torneio e, por outro lado, o meu próprio pouco interesse diante de uma sede tão pouco “futebolizada”. Assim como um desalento tão relevante quanto da importação de modos de consumo estadunidense para nosso continente latino-americano. Para ficar em apenas um exemplo pontual embora sintomático: a clássica música de Caetano e Gil “Soy loco por ti, America” composta em 68 para expressar um contexto de luta por emancipação dos povos. Porém radicalmente virada do avesso em 2005 em novela da Rede Globo que trata de submissão cultural e migração em massa de brasileiros para a prometida “terra das oportunidades” acima do Rio Bravo. São esses elementos que buscarei articular de pouco em pouco nesse texto, mostrando como o caráter vago do termo “América” pode ser tão funcional a negócios forâneos, inclusive no futebol.

Sobre o primeiro, há a dificuldade de “cavar” espaço na cobertura midiática oficialista por uma série de fatores acumulados: os jogos em si mesmo tarde da noite e com raros horários na televisão aberta; a tabela de jogos simultânea ao Campeonato Brasileiro (sabendo que o público clubista é bem mais engajado que o público patriota), e simultânea à Eurocopa (sabendo que o público de um futebol mais eurocêntrico rende maior audiência); as instabilidades da CBF e da seleção brasileira (vide várias trocas de treinadores) em organizar um planejamento competitivo no ciclo mundialista rumo a 2026; um discurso midiático oficialista de desvalorização da Copa América principalmente pela saturação várias edições repetidas em poucos anos, vide a alegação dela não caber em um calendário “racional”.

Em suma, elementos coerentes com a tendência na mídia esportiva brasileira e seu patriotismo ser “descongelada” somente em época de Copa do Mundo e, por contraste, menosprezada na Copa América. Segundo uma certa licença poética, desde o primeiro título mundial de 58 (e intensificado com o quinto e último em 2002) ter trocado o “complexo de vira-latas” pelo “complexo de cachorro grande” (ou “jibóia saciada”), ou seja, como se já não tivesse mais nada a provar a ninguém.

Endrick Brasil
Endrick é tietado por torcedores antes de treino. Foto: Rafael Ribeiro/CBF

Antes de ir propriamente para os elementos mais profundos desse texto, como considerações mais superficiais e preliminares cabe mencionar como justificativa ao tema uma breve história do torneio. Cuja relevância esportiva está em ser o primeiro torneio de seleções (tendo como embrião o Campeonato Sul-Americano ainda apenas com Uruguai, Argentina e Brasil de 1916 em diante) várias décadas antes da Eurocopa, além da alta competitividade dos vencedores: Argentina e Uruguai com larga hegemonia sobre o Brasil. Nas primeiras décadas do século passado, enquanto a Europa estava dizimada por duas guerras mundiais, também teve muito futebol de qualidade entre as seleções dessas três potências do Atlântico Sul junto de muita pancadaria em campo (antes mesmo da Taça Libertadores da América entre os clubes a partir dos anos 60). Enquanto em sua época clássica também houveram títulos de Peru e Paraguai (dois cada) e até uma solitária alegria da Bolívia. Enquanto nesse atual século foi a vez de colombianos e chilenos festejarem de forma inédita. Outra justificativa pouco lembrada é que até mesmo grandes gênios como Pelé e Maradona (assim como Zico, Riquelme e tantos outros) que nunca conquistaram o torneio. Ora, como sempre reivindico, analisar um torneio deve ir além do “resultadismo” e olhar também a outras justificativas de que há muito mais coisa “em jogo”. Seja as históricas rivalidades vindas de fora do futebol por antigos conflitos bélicos ou atritos diplomáticos entre países com poucos títulos: como Paraguai x Bolívia, Bolívia x Chile, Chile x Peru, Peru x Equador e Colômbia x Venezuela. Assim como a recente “rivalidade” virtual entre argentinos e mexicanos aquecida pelo recente confronto mundialista de 2022. Confrontos que certamente são muito aguardados por seus torcedores como se fossem torneios a parte. Seja a chance de ver que em um continente com barras dos clubes tão vibrantes também há barras de seleções também muito vibrantes. Vide as edições recentes (Argentina em 2011, Chile em 2015 e Brasil em 2019) permitiram que vários torcedores migrantes vindos da zona andina se somassem a vários torcedores viajantes para fazerem o seu “aguante” pela seleção. Agora, em 2024, em um país como os Estados Unidos com vários migrantes latino-americanos, certamente esse será um fator relevante para encher os estádios de futebol “americano” provisoriamente com torcedores do futebol de verdade.

O que começou com apenas 3 participantes e imensas dificuldades logísticas para viagens internacionais pelas primeiras décadas do século 20 foi se consolidando em um torneio que de pouco em pouco finalmente incluiu os 10 países sul-americanos filiados à Conmebol. O formato de disputa também variou muito entre fases de grupo e mata-mata, assim como variou entre sede fixa e sistema de ida e volta de mandos de campo como as Eliminatórias. Até que de 87 a 2011 alcançou sua fase mais estável sendo jogada a cada ano ímpar e com cada um dos 10 países sendo sede pelo menos uma vez. No entanto, um elemento irregular bem ao estilo do “noventismo freestyle” de torneios aleatórios, foi a expansão a 2 convidados totalizando 12 participantes. Sendo a maioria da zona da Concacaf, ou seja, América Central, América do Norte e Caribe. (Obs: o que de certa forma coincide com uma “gratidão” nos convites com várias seleções sul-americanas convidadas pela Copa Oro da Concacaf nos anos 90 e 2000). Inclusive naquele mesmo ano de 93 o estreante México surpreendeu e foi finalista, assim como repetiria a dose em 2001, porém depois suas participações foram piorando de rendimento e até de prioridade por enviar apenas jogadores das categorias de base e privilegiar seus profissionais para a Copa Oro. Embora também houveram convites ainda mais aleatórios com seleções de fora da como o Japão em 99, a Espanha recém-campeã mundial em 2011 (embora recusou o convite) e até o Catar em 2019. O que permite concluir que a escolha de convidados e principalmente de sedes não é desinteressada, porém articuladas com as possibilidades de expansão dos negócios da Conmebol. 

E assim emergiu em 2016 a primeira edição fora da América do Sul ao ser disputada nos Estados Unidos, tal qual a atual edição de 2024. O que permite partir para alguns elementos mais profundos nesse texto, que contarão apenas com notas breves pois cada um por si só já renderia um texto novo inteiro, partindo da infame ironia da edição centenária ter sido justamente tão distante de onde nasceu o torneio. Muita coisa aconteceu de 2016 para cá. Não somente a “geração dourada” do Chile, bicampeã em 2015 e 2016, envelheceu e corre risco de novo vexame. Não somente a recente empolgação de Uruguai e Colômbia se autodeclarando favoritos (vide a Colômbia ter um elemento dramático a mais de voltar a solo estadunidense após o vexame de eliminação precoce em 94 com sua melhor geração. Não somente a seleção brasileira volta a solo estadunidense para um certo “tira-teima” após o êxito em 94 (inclusive derrotando os donos da casa), porém o vexame de eliminação precoce em 2016. E sobretudo não somente a Argentina de Messi (em sua versão maradoniana) rompeu a seca de títulos continentais e mundiais e voltar a solo estadunidense buscando uma outra revanche a 94 com o escândalo do doping contra Maradona que segundo ele próprio “me cortaron las piernas”. 

Em suma, as breves notas citadas nos parágrafos anteriores são o pouco que há de alento em minha expectativa em contraste com um desalento geral que agora explicarei mais profundamente. Contudo, olhar 2016 a partir de 2024 sobretudo diz muito sobre a assim chamada jocosamente “Nueva Conmebol” fora de campo do que as citadas expectativas dentro de campo de algumas das principais seleções como citado. Provisoriamente “descabezada” de Nicolas Leoz, “mandamás” na confederação contemporâneo em décadas do reinado absoluto do argentino Grondona e do brasileiro Havelange em suas entidades nacionais. Mas que à partir desse ano se reorganizou através do novo dirigente Alejandro Domínguez, quem simultaneamente “no topo” intensificou as relações promíscuas com outras confederações continentais visando potencializar negócios enquanto “na base” trabalha arduamente para a exclusão e prejuízos aos torcedores mais populares através de: inflação nos preços dos ingressos, torneios com mais viagens envolvidas (portanto, mais gastos, sobretudo o modelo de “final única” na Libertadores copiando o modelo europeu da Champions League) e até mesmo regulamentos com proibições aleatórias à festa torcedora popular e, pior, incapaz de coibir crescentes casos de racismo em partidas continentais. Assim como de lá para cá o protagonismo dos Estados Unidos somente aumentou, vide desde 2015 as férteis análises que o assim chamado escândalo de corrupção “Fifagate” (protagonizado pelo FBI) afetou com punições aos principais dirigentes de várias confederações continentais (como a Conmebol descrita acima) além da própria FIFA. Forçando-as a reformas internas através de alguma fachada de “modernização” (sendo o VAR o caso mais notório visando aproximar o futebol de outros esportes “americanos”). Mesmo que de lá para cá felizmente não houve significativa melhora de rendimento esportivo da seleção estadunidense nem de seus clubes, ainda assim aumentou o seu protagonismo no rendimento financeiro como sede dos próximos megaeventos: Copa América de 2024, Mundial de Clubes de 2025 e Copa do Mundo de 2026. E daqui até lá tendo como principal divulgador Messi jogando por um clube estadunidense.

Jogador Vini Jr atende pedidos dos torcedores. Foto: Rafael Ribeiro/CBF
Jogador Vini Jr atende pedidos dos torcedores. Foto: Rafael Ribeiro/CBF/Fotos Públicas

Ora, como desfecho desse texto, mesmo ao propor apenas breves notas, impossível não fazer algumas relevantes mensões sociais e políticas da atual conjuntura. Para tentar não ser tão pessimista sempre e revigorar algum alento, já que falei de racismo linhas acima, ao longo do mês de junho pensei em concluí-lo mencionando o craque Vini Jr. da seleção brasileira. É o desejo que ao estar em um importante foco da luta antiracista (como Malcolm X, Luther King e tantos outros) que isso lhe servisse como uma inspiração a mais sobretudo fora de campo do que propriamente dentro de campo. Contudo, ao concluir o texto no final, trocarei a chave de leitura do antiracismo pelo anti-imperialismo e seu impacto na identidade “futbolera” latino-americana. Um tema tão estratégico quanto ausente nas discussões políticas e futebolísticas do cotidiano, vide o imperialismo ser uma engenhosa frente a “todoterreno”: militar, diplomático, financeiro, midiático, e claro, também futebolístico. Vide por esses últimos dias algum alento com a liberdade de Julian Assange4 e a fracassado tentativa de golpe militar na Bolívia derrotado pelo governo popular de Luis Arce e a valente resistência popular. Inclusive faltando apenas um mês para eleições na Venezuela como uma prévia de mais instabilidades diante de vários outros países com outros problemas significativos como Peru e Equador.5 Sendo inevitável olhar no retrovisor de 2016 quando todo o desalento já comentado com uma Copa América com sede nos Estados Unidos estava longe de ser o maior de nossos problemas diante do primeiro ano do governo Macri na Argentina e sobretudo o golpe parlamentar no Brasil. Depois, em 2019, na Bolívia, um golpe policial-militar (e até racista e fundamentalista evangélico também) logrou derrubar o governo popular de Evo Morales, contando com a cumplicidade de Macri e Bolsonaro. Sendo muito significativo, e constantemente lembrado no noticiário político, que naquele momento o bilionário Elon Musk também o apoiou promiscuamente: “Vamos dar o golpe em quem quisermos, lidem com isso”. Visando se apropriar das riquezas do lítio boliviano para suas empresas de carros elétricos. De lá para cá uma preocupação estratégica identificada por vários analistas e internautas atentos. Afinal, guardadas as devidas proporções, cabe lembrar através deste modesto texto que busquei demonstrar que o futebol sul-americano e popular também é uma riqueza que passa por permanente “acoso” imperialista no qual os bilionários clubes europeus (junto a bilionários árabes e estadunidenses) buscam aqui a captação de seus melhores talentos. Afinal, ver nossos craques jogando em nossas terras parecem ser oportunidades cada vez mais raras.

Leituras de apoio

1 PERINA, Fabio. Copa América 2001 na Colômbia: 20 anos depois. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 38, 2021.

2 PERINA, Fabio. Copa América 2011 na Argentina: 10 anos depois. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 9, 2021.

3 PERINA, Fabio. O épico Brasil 0x1 Argentina (ou porque 2021 não pode ser 1971!). Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 27, 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Breves notas sobre a Copa América 2024 e a identidade latino-americana. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 4, 2024.
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