75.6

Camisa 8

Raul Andreucci 14 de setembro de 2015

Estávamos em trânsito pelas ruas de Manaus.

O motorista, policial civil, fazia um bico. Guardava nosso destino e nossas vidas. Quando precisava, sem consultar, estacionava e ia lá resolver, pegar ou falar qualquer coisa. De um jeito, acredite, simpático e rude. Quem vai de carona, mesmo com hora marcada, não reclama.

Ao seu lado, no banco da frente, meu guia local, por assim dizer, um baixinho agitado. Ninguém apostaria, mas estava ali, um especialista em jiu-jitsu. No tatame, como lutador, e fora, no papel de professor, historiador de artes marciais e, na época, cartola da sua federação.

Completando o grupo, um típico amigo da turma, que, a despeito de minha dúvida inicial de relevância na aventura, mostrou toda sua capacidade de contador de anedotas e piadas ao longo do trajeto. Além, claro, para completar o estereótipo, do potencial para a bebida.

Vista da cidade de Manaus, ao fundo a Ponte Rio Negro. Foto: Embratur.
Vista da cidade de Manaus, ao fundo a Ponte Rio Negro. Foto: Embratur.

Estivesse alguém filmando, pareceria um daqueles filmes de comédia em que o grupo se mete em todo tipo de enrascada. Só que, no caso do nosso quarteto, com pitadas de mambembe.

O carro morreu perto de um cemitério. Juro pela minha mãe. Enquanto o motorista se arranjava, os demais, ignorantes no assuntos e folgados de carteirinha, ofereceram apenas uma ajudinha inicial e protocolar. Nada mais. Era preciso de papo para que o tempo passasse.

O amigo da turma lembrou da outra vez em que, com o mesmo veículo, a cena se sucederá, a poucas esquinas dali. Aflito com minhas preocupações jornalísticas, não pude deixar de compartilhar a dificuldade em marcar com o presidente da Federação Amazonense de Futebol (FAF). Dissica Valério Tomaz não me atendia por nada desse mundo. As palavras “imprensa” e “paulista” eram, naquele momento, sinônimo de problema. Poucos dias antes tinha ido à Câmara dos Deputados falar sobre as denúncias de pedofilia nas categorias de base dos clubes amazonenses. Jamais entenderia (ou acreditaria) que eu apenas buscava mais informações sobre o futebol daquelas bandas para escrever uma reportagem – que viraria livro virtual.

Para a minha sorte, o guia local tinha amigos para todos os lados. E cara-de-pau suficiente para pedir o que fosse. Conhecia um parente próximo de Dissica. Prontificou-se ali mesmo, enquanto aguardávamos a solução para o possante, a ligar para o fulano. Dito e feito. Do outro lado da linha, mesmo sem escutar, sentia o nervosismo de quem ouvia um pedido indecoroso. Meu guia jogou duro, assentiu que, claro, os assuntos nada tinham a ver com aquela polêmica. Não é? Virou para mim, aguardando uma resposta. Balancei a cabeça positivamente e, como se o sicrano pudesse ver, disse que, tá vendo, não vai ter nada disso. Pronto. Ia ver o que conseguia.

Carro arrumado, prontos para partir, toca o celular. Não o meu, daqueles metidos a besta, sensível ao toque, caro, cheio de inutilidades tidas como úteis, e sim o do guia, desses piquiticos, que dobram, com botões, alguns com mau contato. Conseguimos a entrevista.

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Vista da Arena da Amazônia e de Manaus. Foto: Chico Batata – Agecom – AM.

Espelho, espelho meu

Algumas batalhas tem de ser travadas com os próprios punhos, por mais que a cavalaria esteja sedenta por sangue. A turma deu a carona, massageou meu ego no córner, e lá fui eu, sozinho, para um posto de gasolina que tinha como “conveniência” uma tenda de temakis e um restaurante de peixes. O entrevistado escolheu este último, louco para apresentar a culinária local, ignorando qualquer incômodo por almoçarmos com vista para frentistas, motoristas, bombas…

Digo isso porque, bem, foi a paisagem que tive à disposição por mais de uma hora. Tomei um verdadeiro chá de cadeira, gasto, principalmente, para revisar o que gostaria de perguntar, carregar o celular, e, né, deixar a imaginação viajar pensando aonde estaria aquele cidadão, se viria, se não viria, por que, cazzo, não atendia ao celular. Um dos garçons, aquele que consentiu minha espera no delicioso ar-condicionado, protegido do bafo de Manaus, ia divertindo-se a cada minuto, observando meu desespero e prevendo um bolo desses fenomenais.

Quando finalmente Dissica atendeu às ligações, fez-se, primeiro, de desentendido. Percebeu que tinha sido traído pela memória e quis me convencer do contrário. Estava a caminho, do lado. Conhecia essa desculpa esfarrapada. Meia hora mais tarde confirmava minha intuição. Esteve na casa de algum deputado. Coisa importante. Pede desculpas e amolece meu coração. Afinal, eu também não perderia aquela oportunidade, como meu pessimismo imaginava.

Como um verdadeiro cartola, digno de quem há cerca de 22 anos comanda o futebol local, o oitavo mais longevo entre os presidentes de federações estaduais, segundo levantamento do jornal gaúcho “Zero Hora”, ele escolhe a mesa, cumprimenta o garçom, distribui sorrisos e tchauzinhos. É o dono do pedaço. Jogo no campo do adversário. Ao longo do papo, como era de se imaginar, tenta reforçar o perfil de gestor e, principalmente, de uma figura pública influente, com amigos nas rodas mais importantes. Estão na lista Marco Polo Del Nero, ex-presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) e atual presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), e Eduardo Braga, ex-governador do Amazonas e atual ministro de Minas e Energia.

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Dissica Valério Tomaz foi candidato a Deputado Estadual do Amazonas pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro e não foi eleito. Imagem: reprodução eleições 2014.

Vaidoso, faz questão de querer emplacar também seu lado esportista. Conta da breve carreira como goleiro, inicialmente do Rio Negro, e, em seguida, do São Raimundo. Fala das suas técnicas e aparelhagens inovadoras nos treinos de tênis de mesa, outra de suas especialidades. E mostra, empolgado, tempo de corrida que fez, outro dia mesmo, gravado por uma foto no celular. Uma trajetória de vida, entende, capaz de fazê-lo um dirigente antenado e defensor do esporte. Exalta sua campanha vitoriosa no título amazonense de 1982, como diretor do Rio Negro, encerrando uma hegemonia do Nacional, então hexacampeão, e lembra ser esse o grande trunfo para alçá-lo à FAF. Como sua camisa amarela naquele dia, com a redonda branca no centro, gigante, Dissica, insuportavelmente, aparenta (ou ao menos sente) estar com a bola toda.

Quem é que paga?

Dissica é contestado na Justiça. Tanto por seu mandato “eterno” (como a própria imprensa local refere-se ao seu período à frente da federação), como pela época na prefeitura de Eirunepé, no interior do estado. Os torcedores amazonenses não poupam o cartola das brincadeiras, abusam dos memes disseminados na internet. Em um deles, com sua carinha na alça de uma mala de viagem, a mensagem pede, desesperadamente: “desapega”. Ele visivelmente hesita na hora de tratar os assuntos mais importantes (como a Arena da Amazônia conseguirá ser autossuficiente; por que o campeonato local segue uma incógnita a cada ano; qual a solução para unir, organizar e fazer dos clubes locais instituições minimamente decentes). Talvez porque tenha aprendido a domar a imprensa e também por “controlar” boa parte dos veículos de comunicação (entre outros, está nas mãos de sua família o jornal impresso, “A Crítica”, e a afiliada da Record).

Uma das reclamações que ouvi de dirigentes locais era em relação ao calendário. Por que insistir num torneio de três meses de duração, já que apenas um time representaria o Amazonas na Série D do Campeonato Brasileiro, limitando as atividades dos clubes a um trimestre? “O regulamento é discutido pra caralho!”, exalta-se Dissica. “Tem umas três reuniões. Deixo meu diretor de futebol discutindo com todos e aí venho na última, vejo, tal, e chego pra fechar”, explica, sem rodeios. Um exemplo de como Dissica leva a coisa de forma, podemos dizer, prática. Levanto a bola do tão temido escândalo e, como publicado em A SELVA DO FUTEBOL, no BRIO, sai-se com a pérola: “Tem clube aqui que contrata veado para ser [treinador], para cuidar de categoria de base, por isso que deu a matéria que a gente tinha feito pedofilia nas categorias [de base]”.

Nosso tempo está acabando. Não parece haver mais o que espremer daquele político tarimbado, um pouco desbocado, é verdade. Dissica paga a conta, como quem espera garantir a complacência de uma barriga satisfeita. Tem a elegância de oferecer uma carona em seu carrão, e a sinceridade de limitá-la ao ponto de ônibus, afinal, meu hotel era longe demais dali. Admite não ser muito fã de transporte público. Promete um CD de músicas de sua autoria. Diz que eu vou adorar. Fico no meio dos populares, perguntando pela melhor linha para chegar ao centro. Castigado pelo sol, aguardo. Levemente culpado por não ter pago a refeição. Lembro do ditado americano de que não existe almoço grátis, de seu pedido para que maneirasse na hora de escrever. Termino (ou quase termino) esse texto que você lê matutando… Coloco na ponta do lápis: a história (a que convido você a ler) A SELVA DO FUTEBOL, a repercussão na capa do UOL, no blog do Sakamoto, outro artigo sobre o tema na Trivela, e, olha, contando um pouco mais sobre quem comanda um microcosmos do nosso futebol, como um representante de práticas que se repetem em vários outros cantos e instâncias, sinto que, é, taí um belo de um recibo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raul

Graduado em Jornalismo e Mestre em Ciências Sociais, ambos pela PUC-SP. Com passagens e frilas por Lance!, Folha de S.Paulo, Caros Amigos e Editora Abril. Idealizador da Dolores, um dos editores do Ludopédio e sócio da Eita.

Como citar

ANDREUCCI, Raul. Camisa 8. Ludopédio, São Paulo, v. 75, n. 6, 2015.
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