112.10

Os robocops do time de Dito: uma crônica sobre jogadores capixabas aposentados

Essa é a história de Seu Benedito, porteiro de um prédio residencial em Vitória no Espírito Santo, onde lida com histórias de pessoas ditas “comuns”, dignas de enredo de um filme. Digo pessoas comuns, pois Seu Benedito, para os fins desse texto, não é “apenas mais uma pessoa”. Contudo, durante seis meses, Seu Benedito foi apenas mais um trabalhador do prédio onde eu morava. Muito sorridente e solícito com todos. Para mim, a história de Seu Benedito poderia ter acabado aí, não fosse o dia que resolvi sair do prédio com a camisa do Galo pela primeira vez, a fim de assistir ao primeiro jogo do Brasil na Copa. Ao retornar, no meio do jogo, desanimada com a Copa, Seu Benedito me chamou para uma cerveja e uma conversar, e começou a mostrar umas fotos suas jogando bola nos anos 1970. Me contou que nem sempre teve 62 anos e que, de seu passado, guardava memórias das épocas que jogou em importantes times da história do futebol capixaba. Benedito foi lateral direito do Santo Antônio Futebol Clube, do Vitória Futebol Clube e do Rio Branco Atlético Clube, importantes times da capital.

Na foto a seguir, vemos uma das fotos em questão, na qual Dito (seu nome de boleiro) está com o uniforme do Rio Branco e, no canto esquerdo da imagem, está uma nota de jornal de sua época de jogador do Santo Antônio que denuncia um pouco da formalidade jornalística da época e de sua moral sobre o futebol.

Foto 1
Dito, jogador do Rio Branco, década de 1970. Foto: Marina Mattos Dantas.

Entre “Ditos e não ditos”, o jogador me contou uma pequena passagem sobre como foi parar no América de Minas, onde jogou por uma temporada, pensando estar indo para o América do Rio. Parando de jogar profissionalmente aos 27 anos, Dito não largou o futebol, trabalhou em uma loja de departamentos e continuava a jogar com colegas comerciários. Até os dias de hoje, Dito não abre mão da bola, do samba, da cerveja e do futevôlei, suas diversões preferidas.

Foto 2
Seu Benedito, campeonato de futevôlei na praia de Itaparica (Vila Velha – ES). Foto: Marina Mattos Dantas.

A convite de Dito, no dia 1º de julho de 2018 fui ao Estádio Kléber Andrade assistir ao jogo comemorativo do Dia Estadual do Futebol Capixaba. A data é uma constatação de que há, sim, futebol no Espírito Santo, por mais que muitas pessoas não se interessem por ele ou o desconheçam.

No estádio, Dito me apresentou aos seus amigos, todos ex-boleiros com histórias distintas de glórias mais ou menos célebres, de mais ou menos glamour no Espírito Santo e em outros cantos do país. A despeito das arquibancadas vazias, pintadas “a la Mondriam”, reunidos lá estavam cerca de 70 anos de história do futebol capixaba, divididos em dois times: branco e rosa versus rosa e azul, cores da bandeira do Estado.

Foto 3
Time de branco e rosa. Foto: Marina Mattos Dantas.
Foto 4
Time de rosa e azul. Foto: Marina Mattos Dantas.

Durante os preparativos para a partida, visitei o vestiário do time rosa e branco, guiada por Dito que foi cuidadoso ao se certificar que nenhum constrangimento aconteceria àquela mulher que adentrava ao “templo sagrado da masculinidade” – essas não são palavras de Dito e sim a minha sensação ao entrar no local. Já no gramado, antes do jogo, participei da tradicional roda na qual se diziam palavras de celebração. Enquanto fotografava, fui “capturada” por Jurandir, segundo jogador mais velho presente, para rezar o pai nosso. Enquanto eles rezavam eu só conseguia pensar nas barreiras de gênero que estava quebrando ali. 

A partida se desenrolava nos dois tempos tradicionais de 45 minutos, enquanto eu e os reservas caminhávamos em volta do gramado, junto a mais algumas crianças, filhos de alguns dos boleiros. O restante das famílias chegava aos poucos e aguardava na área onde se organizava o churrasco pós-jogo. A idade dos jogadores variava entre 44 e 77 anos. Paulo Arantes, o mais velho jogador em campo (77 anos), anunciou a sua aposentadoria também das peladas naquele evento.

Foto 5
Conversa inicial. Foto: Marina Mattos Dantas.
Foto 6
Paulo Arantes. Foto: Marina Mattos Dantas.

Os jogadores ocupavam em campo suas posições de ofício. Dito era o lateral direito, número 3, do time rosa e azul. Durante o jogo muito se ouviu os jogadores falarem sobre a forma física uns dos outros e sobre as lesões que os acompanhavam. Alguém chegou a comentar que alguns deles não vão aos encontros dos ex-atletas por vergonha de sua forma física. Do lado de fora, alguém comentava que o que menos importava era o resultado. “É, o problema é a reputação”, comentou Marcelinho, com seis operações no joelho.

Explícitos estavam lá os limites que situavam cada um em campo, entre as operações, o não desempenho regular de atividades físicas e, em alguns casos, limites que ainda seguiam as regras da época de atleta de alto rendimento. Não demorou a aparecer reclamações sobre a “má divisão dos times”.

O meio de campo do time de rosa e azul era nitidamente mais lento do que o time branco e rosa, o que deixava Dito nervoso. Em um momento, o mesmo esbravejou: “Assim não dá! Só tem Robocop no meu time!”. Dito não se referia aos jovens ciborgues da tese de Fernando Bitencourt (BITENCOURT, 2009), mas, sim, às marcas nos corpos de amigos ex-atletas, suas operações e suas dificuldades de se locomover em campo. Alguns jogadores que, apesar de interditados pelo saber médico, jogam. Outros que ainda jogam sem muitas dificuldades impostas pelo tempo ou mais habilidosos para entender que as marcas do tempo transformaram suas formas de jogar.

Foto 7
Partida dos ex-jogadores homenageados, julho 2018. Foto: Marina Mattos Dantas.

Após um tempo longe da atividade profissional dentro de campo, muitos e acostumam a serem chamados de ex-jogadores. Muitos assim se auto intitulam e tentam não perder esse lugar em suas histórias. Estão também exercendo outras atividades ligadas ao futebol. São técnicos, preparadores físicos, preparadores de goleiros – psicólogos e nutricionistas, às vezes –, comentaristas, agentes de outros jogadores, professores em escolas ou universidades, advogados, contadores. Mas carregarão, geralmente, até o apito final de suas vidas, o “ex-jogador”, seja como substantivo ou adjetivo, como já comentei em outro texto aqui no Ludopédio (DANTAS, 2015).

Se “a grande dificuldade dos atletas que se aproximam da aposentadoria, é sair de cena e deixar o posto de ídolo para seus sucessores” (GIGLIO, 2009, s.p). Uma das lutas atuais desses jogadores é por reafirmar seus lugares na história, nas histórias, nos causos, em documentários que buscam entender as nuances de um futebol passado[1]. Entre o Dito e o não dito, se perpetua a história do futebol capixaba, no orgulho de um passado no futebol profissional que continua reverberando no presente, na portaria de um prédio, na câmara legislativa, no comércio local e em outros lugares por aí…

Referências

 

BITENCOURT, Fernando Gonçalves. No reino do quero-quero: corpo e máquina, técnica e ciência em um centro de treinamento de futebol – uma etnografia ciborgue do mundo vivido. 2009. 332f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2009. Disponível em:

www.labomidia.ufsc.br/index.php/acesso-aberto/…/340-15-no-reino-do-quero-quero.

DANTAS, Marina de Mattos. ‘No existen ex-abogados? ou sobre ser e não ser jogador de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 74, 17 ago. 2015. Disponível em: https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/no-existen-ex-abogados-ou-sobre-ser-e-nao-ser-jogador-de-futebol/

DANTAS, Marina de Mattos. Cartografias de um campo invisível: os anônimos jogadores do futebol. 2017. 252f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.ludopedio.org.br/biblioteca/cartografias-de-um-campo-invisivel/

GIGLIO, Sérgio Settani. Destinos Cruzados. Ludopédio, São Paulo, v.6, 31 dez. 2009. Disponível em: https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/destinos-cruzados/.


[1] Exemplos desses documentários são o notório FUTEBOL – APOSENTADORIA. Direção: João Moreira Salles, Arthur Fontes. Brasil. GNT Vídeo Filmes, 1998. DVD; e o Documentário Futebol Capixaba, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2W4IISLZasA

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 13 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. Os robocops do time de Dito: uma crônica sobre jogadores capixabas aposentados. Ludopédio, São Paulo, v. 112, n. 10, 2018.
Leia também:
  • 171.6

    Futebol e Negritudes – voltando ao campo

    Bárbara Gonçalves Mendes, Danilo da Silva Ramos, Marina de Mattos Dantas, Natália Silva, Ricardo Pinto dos Santos
  • 163.15

    Família, paternidade e “o psicológico” na Copa do Mundo de 2022

    Gustavo Andrada Bandeira, Marina de Mattos Dantas
  • 144.34

    Até quando carreiras esportivas serão edificadas sobre o silenciamento e sofrimento de mulheres?

    Marina de Mattos Dantas, Mauro Lúcio Maciel Júnior