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Futebol: objeto científico?

O tema desta coluna não se encerra nos seus limites, tampouco poderia pretendê-lo. Seria até de se questionar se um trabalho científico de maior envergadura – artigo, ensaio ou mesmo tese – pudesse dar conta, nas suas pretensões de problematização e complexificação, das perguntas: “como tratar o futebol como objeto científico? Quais os desafios e possibilidades dessa empreitada epistemológica?”. Em primeiro lugar, não seria possível pela diversidade temática próprio pretendente a objeto científico: o futebol. O universo do futebol encerra e convida a interpretações de natureza sociológica, da teoria política, da antropologia, da história, da própria psicologia ou do jornalismo. Basta superar, minimamente, um olhar superficial sobre o jogo mais popular do mundo e pretender questioná-lo como um expressão, por exemplo, para que uma gama de questões, intimamente ligadas ao fazer científico, se apresentem. Mas, de início, como caracterizar a abordagem científica sobre o futebol e distingui-la de outros tipos de abordagem?

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Vamos chamar a atenção, em primeiro lugar, para a questão do imediatismo. Tomemos o exemplo do campo da ciência política. Inúmeros e corriqueiros são os casos de cientistas políticos que se veem desafiados ou cobrados a fornecerem análises sobre eventos políticos da atualidade. Muitas vezes, cientistas políticos se veem em debates, por exemplo, com jornalistas especializados em política, nos diferentes meios de comunicação, entrincheirados pela exposição de um tipo de argumentação e pensamento que, a princípio, não lhes cabe: analisar eventos imediatos da política, fornecer respostas sobre fatos ocorridos no dia anterior ou, muito pior, apresentar previsões sobre cenários políticos futuros. Embora eventos do dia-a-dia (demissão de ministros, casos de corrupção de deputados, contradições de políticas econômicas) componham a pauta do jornalismo especializado em política, o tratamento sobre o fenômeno político – vindo da parte dos cientistas – nem sempre leva em consideração eventos imediatos. Muitas vezes, eventos imediatos são encarados, por cientistas, não encerrados em si mesmos, mas como partes de fenômenos mais amplos. A atividade científica, nessa seara, está mais ligada, portanto, à complexificação sobre fenômenos sistêmicos e estruturais, e menos ao fornecimento de respostas interpretativas sobre um ou outro evento político específico.

A partir disso, vejamos a situação do futebol. Inúmeros e inúmeros são os casos de programas televisivos, debates, mesas redondas e podcasts que repercutem temas no calor dos acontecimentos: o resultado da última rodada, a artilharia de um ou outro time, a divulgação do balanço financeiro de certo clube, a contratação ou demissão de certo jogador/treinador, entre outros temas. Embora comuns no universo do jornalismo esportivo, eventos do futebol – a campanha de um time campeão em uma temporada, por exemplo – não constituem, exatamente – ou não rigorosamente – o ponto principal da atividade acadêmica, quando se observa e se trata o futebol como objeto científico. O que não quer dizer que personagens e fatos do futebol não possam fazer parte de estudos acadêmicos. Muito pelo contrário. A questão é que eles podem ou não expressar fenômenos mais complexos (estes, sim, objeto do debate científico). Apenas a título de rápido exemplo: quando inserido no debate acadêmico, a influência ou não da ditadura militar brasileira no ambiente institucional e esportivo da seleção brasileira campeã em 1970, no México, seria uma temática a ser estudada em um contexto ainda mais amplo, denso e complexificado: a relação entre futebol e poder, no marco da ditadura militar brasileira. 

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Assumir isso significa uma defesa irrestrita de que o(a) pesquisador(a) do futebol, no campo das ciências, por exemplo, deve, obrigatoriamente, manter-se distante do fenômeno que pretende analisar? Essa pergunta exigiria um debate epistemológico sobre a natureza da atividade científica, especialmente no âmbito das ciências humanas, mas, em todo caso, são outros os elementos de interesse da atividade científica relacionada ao futebol. Trata-se de uma questão de distinção: um mesmo objeto (o futebol) pode ser analisado pelo ângulo jornalístico, pela visão dos(as) apaixonados(as) e torcedores(as) – em conversas de rua – ou através de instrumentos teóricos próprios à ciência. Cada qual a um modo específico, com natureza e finalidade distinta. 

Vejamos, ainda, que o futebol, em todas as suas nuances, agrega esferas em permanente estado de disputa. Não seria a arquibancada um local de permanente disputa? A “arenização” dos estádios brasileiros (cujo mais emblemático exemplo pode ser o Maracanã) põe em evidência que a disputa pelo lugar na arquibancada é um processo político marcado por antagonismos, que se expressa na tensão entre classe privilegiadas e classes sociais desfavorecidas, com, infelizmente, resultado cada vez mais visível: a dinâmica do capital que impõe, no contexto local, uma “higienização” dos estádios. Muita coisa no universo do jogo de futebol pode ser resultado do acaso e do imprevisível, como o gol ou o resultado final, mas, definitivamente, não é por acaso o sufocamento dos setores populares nos estádios de futebol. Ali se expressa, de maneira latente, privilégios e tensões sociais. Outro exemplo, também, pode ser a a discussão sobre a presença ou não de torcidas organizadas em estádios de futebol, debate que se pautou fortemente pela questão da violência (vejamos o caso brasileiro, especialmente nos anos 1990) e pelo domínio de uma narrativa marcada pela discriminação. 

Maracanã
Imagem aérea do Maracanã em 2015. Foto: Wikipédia

Como fenômeno social, também, o futebol é marcado pela historicidade. Ainda assim, parece ser preciso manter distante a visão de que o futebol se restringiria a um reflexo irretocável da sociedade. Ou mesmo de que a consideração do futebol enquanto objeto científico estaria limitada a encontrar, no universo futebolístico, elementos estruturais e sistêmicos presentes no corpo social. Penso – ainda que, para isso, seja necessário elaborar de maneira mais alongada – que o futebol, nas suas dinâmicas, simbologias, afetos e historicidade; pode explicar o mundo social, ao mesmo tempo em que, nessa via de mão dupla, o próprio mundo social pode ser explicado pelo futebol. De maneira lúcida, Hilário Franco Júnior (2017, p. 417), em Dando Tratos à Bola: ensaios sobre o futebol, expressa que:

“[…] se toda história é social, conforme a conhecida lição de Lucien Febvre, a do futebol também o é. Daí porque David Goldblatt acertou ao observar que ‘nenhuma história do mundo moderno é completa sem levar em conta o futebol’, embora devamos avançar ainda mais e afirmar que nenhum relato sobre o futebol é completo sem a história, mundial ou nacional ou ao menos local”.

Levo a questão, por fim, para o reconhecimento de que narrar o futebol (narrá-lo como fenômeno, complexificando-o) é narrar as dinâmicas políticas que lhe toca. Muito além da simplória consideração do futebol enquanto “instrumento político”, que o reduziria a mero utensílio dos interesses dos mandatários da política representativa, trata-se de perceber que o futebol é capaz de ser narrado e de narrar distintos fenômenos políticos, desde disputas locais – quantos são os casos de rivalidades entre times de uma mesma cidade que expressam, integralmente, lutas de classes e disputa por territórios? – até questões políticas, que tanto já se revelaram em Copas do Mundo e nas práticas e discursos de órgãos supranacionais como a Fifa, a Conmebol e a UEFA. Aprofundar o debate sobre o futebol, investigando-o enquanto objetivo científico, parece ser uma atividade, senão contrária, ao menos separada de uma abordagem mais imediatista.


Financiamento Coletivo Ludopédio

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André Lucena

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)Escritor. Autor do livro "Um Par de Horas" (Editora Multifoco, 2019)

Como citar

LUCENA, André. Futebol: objeto científico?. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 65, 2021.
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