149.10

Moreira da Costa F.C.

Livros
Fonte: Walter Serpa Pinto Neto

Flávio Moreira da Costa, falecido em 2019 aos 76 anos, foi um multipremiado escritor gaúcho que, dentre outras produções, se dedicou a organizar antologias de diversos segmentos literários. Dentre as duas dezenas de seleções, três foram dedicadas ao futebol, buscando explorar de forma emotiva a relação que o esporte tem com seus praticantes e a sociedade em geral, incluindo aqueles que acreditam não sofrerem os impactos da modalidade esportiva mais praticada no mundo.

No trajeto dessa pesquisa descobri que a produção dessa “trilogia por acaso” foi, para Moreira da Costa, não somente um trabalho, mas também uma vitória pessoal de um projeto que demorou 29 anos para ser concluído. Com a ideia de produzir uma antologia com vinte e dois contistas e realizar uma partida de “futebol literário”, o escritor encontrou grande resistência por parte do mercado editorial, que não manifestava interesse em investir num nicho tão restrito como era o da literatura esportiva nos anos 70. Coube à centenária editora carioca Francisco Alves a tarefa de publicar o projeto, mas com uma condição: por razões financeiras, o número de contos deveria ser reduzido pela metade.


Foi assim que, em 1986, ano da Copa do Mundo do México, foi publicado Onze em campo, a primeira obra a ser tratada nesse texto. Contendo contos que transitam entre a felicidade imensa e a tristeza profunda, Moreira da Costa deixa claro que o futebol não é somente um jogo com vinte e duas pessoas correndo atrás de uma bola, mas sim uma expressão cultural que extrapola seu próprio livro de regras e molda sonhos, pesadelos, memórias e aspirações.

Literatura
Fonte: Walter Serpa Pinto Neto

Campo: João Antônio, Ricardo Ramos, Luiz Vilela, Duílio Gomes, Carlos Eduardo Novaes, Flávio Moreira da Costa, Anna Maria Martins, Edla van Steen, Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca e Edilberto Coutinho.

O primeiro conto apresentado é “Escanteio”, de Anna Maria Martins, no qual é narrado o conflito de gerações entre uma senhora que se sente incomodada com o costume dos jovens de soltarem rojões durante as comemorações em partidas de futebol. Sua indignação desperta o sentimento nostálgico de tempos onde os hábitos eram – assim como o futebol amador – mais simples, no qual seu marido Bonifácio acompanhava o Club Athletico Paulistano, ambos já falecidos. Publicado originalmente em 1983 no livro Katmandu, apresenta ainda um breve diálogo onde fica implícito uma crítica à ditadura militar, onde um dos jovens relata a surra de um companheiro, supostamente pelo regime, e como a vitória naquela partida manteria o povo momentaneamente “anestesiado”. A senhora, que viu a transição dos hábitos sociais e políticos, agora se sente à escanteio em uma partida onde não tem vez.

Num dos poucos contos de teor cômico do livro, temos Carlos Eduardo Novaes com o “O rei da superstição” apresentando a história de Calvito, figura inspirada no lendário dirigente botafoguense Carlito Rocha, famoso por suas crenças e superstições. O personagem Calvito reproduz as célebres histórias que, de acordo com Carlito, eram o motivo das vitórias (e amenização das derrotas) da estrela solitária, desde o nó na cortina do banheiro das senhoras até a escalação de um cachorro para partidas do Campeonato Carioca. Escrito especialmente para a antologia, Novaes idealiza frases inesquecíveis como “se Calvito foi o primeiro dirigente de futebol a escalar um cachorro, Macalé, por sua vez, foi o único cafetão de cachorro de que se tem notícia” e “minha Nossa Senhora, fazei com que esse ladrão roube hoje para nosso lado”.

Na sequência, outro conto escrito excepcionalmente para a coletânea: “Lucrécia”, de Duílio Gomes. Num texto que poderia ter sido escrito ontem e que ainda mantém muitas similaridades com a sociedade atual, o autor relata a fictícia história de Lucrécia, uma mulher livre de amarras sociais que, durante um verão, se muda para a pequena cidade de Rinópolis e choca a sociedade conservadora com seus costumes “modernos”. Solteira, vestindo calças e um cigarro aceso entre os lábios, a mulher frequentava os poucos botecos da cidade em busca de cerveja, amizade e diversão, portando a confiança inabalada típica dos que nada devem perante boatos, sussurros e olhares tortos de moradores que a viam como uma ameaça aos costumes da boa família. Passam-se semanas e Lucrécia já não é mais um ponto de referência, pelo contrário, dia após dia, mais e mais garotas adotam os costumes da forasteira e a novidade se torna um lugar-comum em Rinópolis. Numa tarde entre cascos de cerveja e cinzas de cigarro, as garotas decidem fundar um clube de futebol feminino e o plano, que inicialmente parecia ser nada além de uma conversa boêmia, dá certo ao ponto de, com o passar dos meses, cobrarem ingressos para as partidas das garotas. O que não estava no propósito coletivo era que a pequena fortuna acumulada pelo clube seria desviada por Lucrécia que, com a chegada do outono, para sempre fugira de Rinópolis. A tragédia de Lucrécia de Roma resultou na queda da monarquia e no estabelecimento da república, enquanto sua homônima de Rinópolis, em uma única temporada, disseminou a democracia.

Em “Vadico”, o multipremiado Edilberto Coutinho escreve a história do personagem que dá nome ao conto, um craque de carreira promissora, cotado a ídolo nacional, que sofre uma grave lesão no joelho e se vê obrigado a abandonar os gramados em seu auge. Já idoso, Vadico passa os dias sentado em bancos de praças públicas relembrando a vida, a carreira, os amores e tudo que poderia ser, mas não foi. Uma das melhores características do conto se concentra na discreta variação temporal da narrativa e a presença de uma personagem secundária no enredo, uma prostituta que, sentada ao lado do narrador, acompanha pela televisão de um bar, reportagem especial celebrando a carreira do jogador. Em tom introspectivo e trágico, a narrativa se encerra com duas situações paralelas: o repórter informando o suicídio de Vadico na noite anterior e o suicídio por overdose da prostituta à beira do balcão. Uma crítica à condição daqueles que são mastigados e cuspidos pela sociedade após perderem o valor.

Em mais uma temática trágica, a escritora catarinense Edla van Steen acompanha em “Que horas são?” os personagens Edu e Rosa durante uma manhã de abertura de Copa do Mundo, descrevendo o monótono cotidiano do jogador frustrado após romper os ligamentos do joelho no auge da carreira e da esposa que abdicou da profissão pelo marido. Num relacionamento apoiado em frustrações financeiras e amorosas, o casal se encontra em um patamar letárgico, justificado apenas pela comodidade em continuarem juntos. Com problemas psicológicos e físicos, Edu passa seus dias vagando de um cômodo a outro pela casa, enquanto se embriaga e espera pela morte que chega durante a partida de futebol. Assim como conto anterior, de Edilberto Coutinho, a escritora promove uma reflexão a respeito do valor social daqueles que não mais se adequam às funções previamente desempenhadas, restando apenas a casca do profissional que se foi.

Organizador da antologia, Flávio Moreira da Costa incluiu também um conto de autoria própria, “A solidão do goleiro”, abordando a posição do goleiro como um ícone de herói ou vilão do resultado, sem meio termo. Utilizando-se do simples e genérico nome próprio Goleiro, Moreira da Costa presta homenagem aos bodes expiatórios de inúmeros clubes e humaniza o dono da posição mais ingrata do futebol, narrando os fatos anteriores a uma falha durante partida decisiva de Copa do Mundo. Certamente um aceno a Barbosa e os julgamentos de 1950.

No que é, sem dúvidas, o conto com maior poder de crítica social dentre os presentes na antologia, João Antônio escreve, em “Juiz”, linhas que causam revolta aos que leem a história de Jacarandá Bandeira, clássico personagem que aparece em outros textos do mesmo autor. Seu nome é referência à árvore de origem nacional, de madeira com superfície escura e núcleo rosado, assim como a maioria do povo brasileiro. Apitando partida entre Londrina e Curitiba, o árbitro negro sofre pressão constante de torcida, jogadores e jornalistas, acompanhada de ameaças físicas e injúrias raciais. Sob xingamentos contínuos e ataques preconceituosos, fatalmente a partida foge de seu controle e falhas aparecem em sua performance, levando a aumentar ainda mais a pressão no estádio Vitorino Gonçalves Dias. Ao término do jogo e o empate no resultado, nenhuma das torcidas fica satisfeita e Jacarandá, sob mais agressões físicas e verbais, foge para seu vestiário, onde aguarda durante as horas seguintes pela dispersão de torcedores, jogadores e diretores. Debaixo do chuveiro, o árbitro reflete se fez a escolha certa em se meter naquele “domínio dos brancos”, onde “o negro entrava como jogador e força de trabalho” e, desiludido, deixa o estádio já sob a luz do luar, apenas para ser pego em tocaia por torcedores que o agrediram até que sua consciência o deixasse. Em sua cabeça, apenas o constante som proferido pelos criminosos: “negro”.

De composição distinta dos demais contos do livro, Luiz Vilela escreve em “Escapando com a bola” a amarga relação entre Tiago e Canhoto, dois ex-jogadores de futebol que se viram obrigados a interromper as próprias carreiras por motivos relacionados um ao outro. A história é narrada majoritariamente através dos diálogos entre os dois personagens numa mesa de bar, fornecendo “peças” de um “quebra-cabeças” que vai se montando na mente do leitor. Descobre-se, por fim, que Tiago foi o responsável por uma grave lesão que definiu o afastamento de Canhoto dos gramados, enquanto ele próprio nunca se perdoou pelo acidente que causara, se encontrou psicologicamente atormentado pela memória e viu a carreira afundar até não ser mais capaz de suportar a pressão do esporte e trilhar um novo caminho. Canhoto não se sente capaz de aceitar o pedido de desculpas de seu antigo rival e encerra a conversa deixando a mesa do boteco, mas não sem antes – num interessante recurso de Vilela para demonstrar traço de caráter – discretamente pagar a bebida de seu nêmesis.

Apoiado em parágrafos longos, frases curtas e expressões ágeis, Ricardo Ramos é o responsável pelo conto mais leve e bem-humorado da antologia. “Casados x Solteiros” é a representação de todos os amantes do futebol em uma ocasião que todos nós já nos colocamos ao menos uma vez na vida: a pelada. Narrado do ponto de vista dos atletas de ocasião, a partida se dá entre os funcionários na clássica “confraternização da firma” e, o que começa como uma brincadeira, rapidamente se transforma em guerra campal. Em meio a outros contos com narrativas distantes do lugar-comum de seus leitores, o grande valor do texto de Ramos é a capacidade de aproximar o leitor daquele contexto e fazê-lo perceber que a literatura de futebol não se resume às glórias e fracassos de suas figuras, mas também do casual e cotidiano ao redor de todos nós.

“Abril, no Rio, em 1970”, escrito por Rubem Fonseca, se aproxima do teor intimista apresentado no conto anterior, de Ramos. Através de passagens mescladas entre a angústia e a comicidade, acompanhamos Zezinho em sua tentativa frustrada de se destacar em partida marcada pela suposta presença de um olheiro do Madureira. Em poucas páginas, Fonseca foi capaz de desenvolver profundidade no personagem principal e trazer o leitor à torcida pelo jogador. Órfão, pobre, de baixa escolaridade e com pouca autoconfiança, Zezinho busca reunir forças se espelhando em ídolos dos gramados que, assim como ele, também tiveram vidas talhadas com faca cega.

Se coubesse a mim escolher um capitão para esse time, sem dúvidas a faixa estaria no braço de Sérgio Sant’Anna e seu conto “Na boca do túnel”, um texto fantástico que transcende o futebol e fornece os melhores parágrafos em toda a antologia. Em primeira pessoa, acompanhamos o experiente técnico do São Cristóvão antes, durante e depois de uma derrota humilhante de 7×1 contra uma gigante da capital fluminense. Os pontos de vista, reflexões e atenção aos detalhes transformam a experiência do leitor em um mergulho emocional na posição ingrata do chefe do banco de reservas.


Em 1998, ano da Copa do Mundo da França, a editora carioca Relume-Dumará lança o segundo volume da antologia: Onze em campo e um banco de primeira. Trazendo de volta os onze titulares do primeiro volume, Moreira da Costa apresenta cinco novos autores, responsáveis por ampliar o contexto histórico, social e comportamental.

Literatura
Fonte: Walter Serpa Pinto Neto

Campo: João Antônio, Ricardo Ramos, Luiz Vilela, Duílio Gomes, Carlos Eduardo Novaes, Flávio Moreira da Costa, Anna Maria Martins, Edla van Steen, Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca e Edilberto Coutinho.
Banco: Hilda Hilst, João Ubaldo Ribeiro, Orígenes Lessa, Marcos Rey, Antônio de Alcântara Machado.

Nessa segunda antologia, o primeiro a entrar em campo – ou melhor, no banco de reservas – é João Ubaldo Ribeiro com o conto “Já podeis da pátria filhos”, título em referência ao hino da independência do Brasil. Narrando a partida entre humildes moradores de uma pequena cidade em processo de industrialização devido a implementação de uma mineradora versus os estrangeiros contratados para tocar o empreendimento, o autor utiliza-se de um estilo de escrita divertidíssimo no qual estrangeirismos são utilizados fora de contexto criando assim um significado original. Ribeiro se apoia na comédia para tecer uma afiada crítica social que mira política externa e interna, pondo frente a frente o “futebol mulato” e o “futebol científico”, num embate que, acima de qualquer amistoso local, representa a felicidade do brasileiro em suas pequenas vitórias contra os “gringos”.

O verdadeiro torcedor é aquele que critica na bonança e apoia na tempestade, linha seguida por Orígenes Lessa em “O Esperança Futebol Clube”, no qual moradores da pacata Buritizal, cidade paulista a cerca de 350km da capital, se reúnem e fundam o clube de futebol que dá nome ao conto. Após enfileirarem vitórias locais e adquirirem certa relevância estadual, o clube amador convida o Paulista Futebol Clube, tradicional time de Jundiaí, para testar forças em partida amistosa. A essa altura, o Esperança e seus jogadores eram idolatrados em Buritizal, tornando-se celebridades quase unânimes perante a opinião pública, tendo angariado a antipatia somente dos jogadores do Lírios, o outro clube buritizalense, agora caído no ostracismo. Após dias de ansiedade e preparações em todos os setores da cidade o Esperança enfrenta o Paulista e, pela primeira vez em sua curta história, termina o primeiro tempo em desvantagem no placar. Com tamanha quebra de expectativa, seus simpatizantes murcham e a festa ao redor do campo se silencia, sendo possível ouvir apenas a torcida visitante entoando provocações aos locais. Havia, porém, gritos abafados de um pequeno grupo de indivíduos que não vestiam as cores do Esperança, não portavam faixas de apoio e nem mesmo queriam estar ali. Eram os jogadores do Lírios que, revoltados pela falta de esperanças dos esperançosos, resolveram ser eles próprios a esperança. Lessa não nos conta o que acontece no restante da partida, mas a tempestade já estava feita.

No time de Moreira da Costa, o paulistano Marcos Rey joga na mesma posição de Ricardo Ramos, já contemplado no volume anterior com “Casados x Solteiros”. Em “Pênalti!”, Rey descreve os últimos minutos de partida com placar zerado em final de campeonato e as responsabilidades de Beto e Almir, centroavante e goleiro, respectivamente, após a marcação de um pênalti. Como pênalti em final de campeonato serve apenas para definir os papéis de herói e vilão, só resta a Beto e Almir decidirem quem é quem nessa história. Bola na marca, goleiro na linha, juiz apita e a partida é subitamente interrompida pelas mães dos jogadores, apenas para descobrirmos que o embate não se passa de uma pelada improvisada entre os amigos de escola. Tal como Ramos, Rey trata a simplicidade com a importância da grandeza e deixa o surreal mais perto de nós.

Como nova representante feminina dessa segunda antologia, Hilda Hilst cumpre o papel de forma magistral com “Aguenta coração”, escrito especialmente para esse volume. Através de seu forte estilo lírico, Hilst descreve uma jogadora e sua relação íntima com a bola de futebol, ressaltando a feminilidade da cena que ultrapassa as figuras da mulher e do objeto, transpondo em poucas linhas crítica social, política e perspectivas de 1998, ano de eleições presidenciais no Brasil.

Publicado em 1927 por Antônio de Alcântara Machado, “Corinthians (2) vs. Palestra (1)” é uma gostosa viagem no tempo para uma época em que o futebol era mais simples. O autor se fez valer dos cânticos reais das torcidas à época e também de jogadores verídicos como Heitor e Neco, de Corinthians e Palestra Itália, respectivamente. Junto a isso, são fornecidas passagens que possibilitam ao leitor vislumbrar como seria o clima do dérbi no início do século passado e como a sociedade se comportava diante de um dos grandes eventos da cidade paulista.


Finalmente, em 2006, ano da Copa do Mundo da Alemanha, Moreira da Costa consegue concluir seu projeto e reunir 22 contistas em campo para uma partida literária de futebol. Das seleções anteriores, saíram Carlos Eduardo Novaes, Ricardo Ramos e Orígenes Lessa, mantendo todo o restante do escrete e adicionando ao banco de reservas dois ícones históricos para a literatura e o esporte.

Literatura
Fonte: Walter Serpa Pinto Neto

Seleção I: João Antônio, Flávio Carneiro, Mario Benedetti, Rubem Fonseca, Flávio José Cardozo, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Sergio Faraco, Rachel de Queiroz, Ignácio de Loyola Brandão, Plínio Marcos.
Seleção II: Luiz Vilela, Edilberto Coutinho, Antônio de Alcântara Machado, Aldyr Garcia Schlee, Edla van Steen, Anna Maria Martins, Hilda Hilst, Flávio Moreira da Costa, Marcos Rey, Duílio Gomes, Sérgio Sant’Anna.
Banco: Patrick Kennedy, Horacio Quiroga.

Primeiro estrangeiro presente na trilogia, o uruguaio Mario Benedetti é também o responsável pelo primeiro conto desse terceiro volume, com “Ponta-esquerda”. Com a narrativa sustentada inteiramente a partir de uma única fala, conhecemos a história de um ponta-esquerda que aceita se vender para dirigentes do time rival na partida final do campeonato que promoveria ao vencedor o acesso para a Intermediária, divisão de entrada do futebol profissional uruguaio. Em forma de relato, o ponta-esquerda justifica suas atitudes e explica os motivos que o fizeram mudar de ideia durante a partida, marcando o gol decisivo que culminaria na vitória e acesso, além da surra em retaliação ao acordo não cumprido. Publicado em 1959, o conto ainda é um reflexo da cultura do futebol de várzea, conhecido por suas artimanhas e bastidores folclóricos.

Seguindo os mesmos trilhos do conto anterior, “O suborno” é a investida de Plínio Marcos na corrupção do futebol em divisões inferiores. Com grande repetição de palavras e frases, a narrativa faz alusão ao estilo de comunicação radiofônico e transforma a leitura em uma experiência semelhante ao que teria o leitor se a ouvisse através das falas de um locutor de rádio, sendo embarcado em seu característico ritmo e potencial de transe. Com pênalti aos quarenta do segundo tempo em partida final de segunda divisão, cabe ao veterano do time, o ex-craque que poderia chegar e não chegou, a responsabilidade de cobrar a penalidade. Porém, assim como o juiz que marcou a falta dentro da área, o cobrador também estava sendo manipulado pelas cordas dos bastidores corruptos do futebol amador. Diante da trave, do goleiro e da bola, o veterano revisita sua carreira e decide que, como último ato, marcaria aquele gol, independentemente de quaisquer acordos firmados, e terminaria sua trajetória com um título, mesmo que esse fosse da segunda divisão. Por golpe do destino, o chute vai na direção errada e o craque que não foi, agora nunca mais será. Chorando, abatido, somente vê a felicidade nos olhos daqueles que o compraram.

Talvez por estratégia de Moreira da Costa, o próximo de seus selecionados não faz apenas uma alusão ao estilo de comunicação radiofônico, mas sim incorpora completamente a linguagem característica do meio. Em “É gol”, Ignácio de Loyola Brandão faz uma síntese da cultura do rádio brasileiro, utilizando-se de bordões, conversas de bastidores, inserções de publicidade, descrição técnicas das jogadas, jingles de locutores e entrevistas com técnico e jogador à beira do campo. O roteiro do conto em si se torna um elemento de segundo plano, fazendo reverência à técnica apurada de Brandão na reprodução caricata de um meio de comunicação intrínseco ao futebol.

Nova representante feminina desse terceiro volume, Rachel de Queiroz faz de seu conto “Amistoso”, publicado em 1954, uma viagem ao passado do futebol amador e, através de linguagem coloquial e uso de termos estrangeiros, nos leva a um período onde o esporte ainda se desenvolvia e era encarado como uma diversão casual. Assim como os espectadores, a voz narrativa se mostra confusa perante o esporte, encarando com curiosidade e insegurança as jogadas e acontecimentos de uma partida que nunca terminou, um artifício inteligente de Queiroz, que busca tirar de lugar o imaginário do torcedor e levá-lo para uma zona de desordem em ambiente habitualmente familiar.

No texto mais trágico da antologia, Sergio Faraco conta a história de Neco e Maninho, dois irmãos gaúchos que visitam o Rio de Janeiro, no dia 16 de julho de 1950, para acompanhar a final da Copa do Mundo entre Brasil e Uruguai, data hoje conhecida como o Maracanazo. Após a derrota da Seleção, os irmãos saem do estádio e caminham em meio ao público desolado que ainda não havia absorvido os acontecimentos daquela que seria, até 2014, o revés mais frustrante da camisa brasileira. Faraco faz referências a diversas localidades, pessoas e costumes da época, fazendo do conto um registro social daquela década, como os filmes em cartaz no Cinema Império, inaugurado em 1925 e demolido em 1978; as extintas linhas de bonde; as lendas do teatro Luz del Fuego e Dercy Gonçalves; além do contexto político nacional em torno de Getúlio Vargas. Chegando próximo ao clássico bar Tip-Top, os irmãos vão de encontro a um homem ferido que, ao receber ajuda do duo, erroneamente esfaqueia Neco num reflexo defensivo, que agoniza no chão ao término do texto.

Moacyr Scliar retrata em “Aqui na terra estão jogando futebol” a relação do futebol com a capacidade do brasileiro de se reinventar e ignorar obstáculos impostos no caminho entre o pé e a bola, seja ela como for. Traçando uma linha temporal, o autor narra a história de alunos de um internato que são proibidos de praticar o esporte em retaliação às notas baixas das últimas avaliações, pondo em destaque a cultura dos amantes da bola em improvisar campos, equipamentos e regras do jogo, de maneira que possibilite a prática do esporte, dadas as condições forçadas por terreno ou autoridades. Conjunturas essas que transformaram o Brasil no país do futebol e sua população portadora do estilo mulato de se jogar, ultrapassando os limites da cal.

No que, pessoalmente, considero o melhor conto dessa nova seleção, Flávio Carneiro aborda com profunda sensibilidade o estado psicológico de um jogador amador que sonha em se destacar na final do campeonato de várzea com o objetivo de chamar a atenção de um suposto olheiro do Botafogo. “Penalidade máxima” tem sua narrativa apoiada entre a partida e flashbacks do cotidiano de Lúcio, garoto de 21 anos, pobre, garçom e centroavante do Vila da Penha nas horas vagas. Carneiro constrói, em detalhadas passagens, o plano de fundo da história do jogador que se prepara para cobrar um pênalti no minuto final da partida decisiva, fornecendo ao leitor motivos para se sentir ligado ao personagem e torcer pela vitória de seu time azarão. O conto apresenta passagens que demonstram as dificuldades do jogador amador, que joga contra onze em campo e, acima de tudo, o azar do destino. A cobrança de Lúcio é perfeita, deslocando o goleiro enquanto chuta a bola para o lado oposto, que, de forma trágica, desvia em defeito do campo varzeano destruindo as expectativas de carreira do atleta.

Ainda na esteira do futebol enquanto representatividade de sentimentos puros e simplórios, Flávio José Cardozo desenvolve no conto “Jogadores” o grande significado que a bola pode trazer para aqueles que não tem quase nada. Numa cidade pobre com economia baseada na extração de carvão mineral, as crianças Rubinho e Vado encontram nas improvisadas partidas em chão de terra batida e bola de meia, um passatempo para lidar com a pobreza e falta de expectativas, enquanto os adultos – os quais bolas de meia já não surtem mais efeitos –, viam no boteco, bebida e carteado a fuga da realidade servil. Num desses finais de tarde onde crianças e adultos tentam escapar do inescapável, rompe a notícia de que durante uma briga de facas no bar local o pai de Vado ceifou a vida de Andrino, pai de Rubinho. Durante o velório, sentindo-se culpado, Vado oferece a Rubinho o seu bem mais precioso, símbolo da própria liberdade em troca da de seu pai: a bola. O presente é recusado, Rubinho já não é mais um garoto e sua moeda agora é o carvão.

Aldyr Garcia Schlee, o pai da camisa verde e amarela, faz sua contribuição com “A falta de Tabaré”, história do fictício zagueiro que dá nome ao conto. De personalidade discreta, sorriso curto e habilidade modesta, Tabaré era conhecido por nunca ter errado nenhum pênalti em todas as suas cobranças, além de ser um exímio defensor da grande área. Em todas as partidas que participou focava em fazer o próprio papel, não sendo afeito a comemorações, discussões ou quaisquer outras distrações que o tirassem do eixo. Embora apresentasse grande potencial, a carreira de Tabaré nunca deslanchou e, com o passar dos anos, suas discretas cores foram se desbotando, sua penumbra se apagando e, aos poucos, sua imagem já não era recordada por mais ninguém. A narrativa é sobreposta e entrecortada pelas cobranças de pênalti entre Peñarol e Nacional valendo o título do Torneo Clausura, em 5 de novembro de 1995, simbolizando as duas faces do futebol: a vitória e a derrota. Tabaré é, nesse contexto, a representação daqueles que foram esquecidos e deixados ao rés-do-chão.

O último volume da antologia termina com dois marcos históricos: o irlandês Patrick Kennedy com “Os fantasmas e o jogo de futebol” e o uruguaio Horacio Quiroga com “Juan Polti, half-back”, primeiros contos publicados no mundo e na américa latina, respectivamente, em 1866 e 1918. Acima de qualquer característica técnica, a importância dos textos está no estabelecimento das primeiras manifestações literárias do esporte em suas culturas e sociedades, uma tempestade perfeita que seria se tornaria impossível de conter.


O esporte mais popular do país corresponde a um campo relativamente enxuto da literatura nacional. Porém, na contramão das tendências literárias, Moreira da Costa prestou um grande papel em seu projeto de divulgação cultural, tendo suas obras um lugar importante na prateleira de referências para aqueles interessados em ler mais do que as famosas quatro linhas. O sonho do autor foi concluído com essa que foi considerada pelo próprio a versão definitiva de seu projeto e, embora já não esteja mais entre nós, continuará influenciando e revelando para futuras gerações um fragmento do que é o futebol-além-da-bola.

“Um poema fica ali, invisível, como um gol gravado em videoteipe, à espera de que alguém vá lá e ponha ele pra rodar. Só que é feito de palavras, substância quase imaterial, quase como o ar, e por isso pode permanecer por mais de mil anos, transmitindo-se de geração a geração. Basta que alguém vá lá na estante, pegue o livro e o leia.” (SANT’ANNA, 1982)

Referências

COSTA, Flávio Moreira da. Onze em campo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

COSTA, Flávio Moreira da. Onze em campo e um banco de primeira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998.

COSTA, Flávio Moreira da. 22 contistas em campo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Walter Serpa

Bacharel em Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, habilitação em Estudos Literários. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC) do CNPq, com o projeto "Literatura e Futebol no Brasil: contos de futebol". Pesquisador vinculado ao FuLiA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FALE/UFMG).Contato: [email protected]

Como citar

SERPA, Walter. Moreira da Costa F.C.. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 10, 2021.
Leia também:
  • 171.11

    Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte IX: O futebol na RDA dos anos 1960, em um romance de Erich Loest

    Marcel Vejmelka
  • 171.4

    Publicações de literatura infantil e infanto-juvenil de futebol na literatura brasileira

    Alan Francisco de Paula
  • 164.28

    Lima Barreto e a arte do mundo esférico

    Edônio Alves Nascimento