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Lima Barreto e a arte do mundo esférico

Caríssimos leitores, munam-se de papel e lápis e anotem a observação que se segue após estes funcionais dois pontos: o maior amigo de uma criança não é outra criança. Tampouco a companhia de um adulto. O maior amigo de uma criança é uma bola. E digo isso não apenas por convicção própria, mas, principalmente, por supor ter esta minha constatação partilhada por grande parte dos amigos leitores que também são pais.

Afinal, quem já não surpreendeu toda a pureza d’alma estampada na face de uma criança à frente de uma bola? Quem não já experimentou instantes de verdadeira estesia poética ao contemplar a alegria de uma criança brincando de bola? Aqui mesmo na minha casa, essa experiência reveladora é corriqueira pois tenho um filho cujo universo inteiro é imaginado (e vivido) nos estritos, mas infinitos limites de uma bola. Hoje, meu filho sequer é ainda criança, se consideramos apenas a cronologia das idades, para essa circunstância existencial da alma – mas também do corpo -, pois que já adentrou à vida adulta com suas outras esferas de responsabilidades e encargos. Mas, só pude compreender, contudo, o aventado acima, quando entre suas várias partidas de futebol jogadas na infância, com companheiros e adversários imaginários, flagrei a seguinte cena, que passo a relatar:

Após comandar, durante um jogo, o meio campo do seu time imaginário (apenas a bola era real, pois ele jogava futebol em um campo cujos limites eram imaginados e enfrentando adversários, repito, também imaginários), o meu filho, digo, sentou-se à beira do gramado (na verdade, a um canto da parede pois o gramado era a exígua sala do nosso apartamento) e ali ficou, observando o desenvolvimento de uma outra partida em que perdia por 2 a 1.

Fingindo não estar assistindo aquele embate, para não tirar-lhe a espontaneidade das jogadas que planejava em silêncio; das ordens mudas que dava aos companheiros em campo; dos dribles com os quais pretendia envolver os adversários quando retornasse ao campo de jogo, não contive a curiosidade e sapequei-lhe uma questão:

Por que, meu filho, você está aí à beira do gramado quando os seus companheiros estão se esgoelando para tentar empatar a partida?

Ê pai! – retrucou. Você não está entendendo nada. É que o técnico resolveu me botar no banco de reservas e eu estou aqui esperando ele me recolocar em campo para ver se viramos o jogo.

É, amigos! Depois dessa experiência de poesia pura envolvendo uma criança e uma bola é que pude compreender o quanto o futebol está existencialmente entranhado na alma dos homens brasileiros. Tanto assim que um dos seus maiores opositores no início do século XX – o escritor Lima Barreto – não suportou e se rendeu ao fenômeno do futebol compondo um conto em homenagem ao esporte que tanto combatia em suas inumeráveis polêmicas com o também escritor Coelho Neto.

Lima Barreto
Caricatura de Lima Barreto.

Lima Barreto compreendia à sua época (e com relativa razão) o futebol como mais um espaço de separação, tão ao gosto da elite brasileira, do mundo dos brancos e o mundo dos negros, o mundo dos pobres e o dos ricos, o dos operários e o dos patrões, e por aí vai.  Todavia, a sua visão, digamos, sociológica do futebol não impediu que o tornasse tema de sua vastíssima obra literária. E tema a partir de um dos seus vieses mais atuais: a vontade que toda criança tem de um dia se tornar um jogador de futebol, num país em que esta profissão ainda reserva para os atletas um futuro absolutamente incerto. Confiramos, pois, o conto que Lima Barreto escreveu tematizando o futebol intitulado “Herói!”.

É que talvez um dia alguns de nós – que somos pais – nos encontremos na situação verossímil de um dos seus personagens, o velho Felisberto desta narrativa. Vamos ao texto.

***

Herói!

Lima Barreto

Os dois velhos amigos desde meses que não se encontravam. Exerciam profissões diversas, em lugares afastados da cidade. Um, o Felisberto, era médico de um posto de profilaxia rural, pelas bandas de Santa Cruz; e o outro, o Teodoro, estava encarregado, como engenheiro, dos mananciais da Gávea e do Jardim Botânico. Moravam nos arredores das suas repartições e raramente desciam à cidade, a não ser para receber, no Tesouro, no começo do mês, os vencimentos de seus cargos.

Eram dois filósofos a seu modo que nada perturbava. Revoltas, exposições, discurseiras, fogos de artifícios – tudo isso os deixava frios. Uma coisa, porém, estava sempre a preocupá-los: a educação dos filhos. Nenhum dos dois foi feliz com eles. Felisberto, além de outros, tinha o mais velho, Samuel, que não dera para nada. Tudo estudara e nada aprendera. A sua mania era o tal do football. O pai lutou em vão para que metesse no bestunto algumas noções com que ele pudesse ser, ao menos, amanuense. Era inútil. Desde de manhã até à noite, não fazia outra coisa senão dar pontapés na bola, discutir corners e o mérito dos rivais. Não ganhava dinheiro; mas, graças à mãe e outros arranjos, tinha-o sempre na algibeira.

O filho mais velho de Teodoro, se não era dado a brutalidades esportivas, não possuía iniciativa de coisa nenhuma. Formara-se em direito e foi o pai quem lhe arranjou um emprego de guarda no cais do porto, apesar de anel e tudo.

Há anos, tendo, por acaso, se encontrado os dois velhos amigos, Felisberto perguntou-lhe o que fizera de seu filho mais velho, formado em direito.

O que fiz? Fi-lo guarda do cais do porto!

Como? Um bacharel?

Por certo.

Pois o meu, por não dar pra nada, deixei-o no football.

Como dizia acima, esses dois velhos amigos não se encontravam, há muito tempo, talvez desde que tiveram a conversa acima.

Há dias, ele se vieram a encontrar e foi com efusão de velhos camaradas que se falaram.

Então, Teodoro, teu filho do cais do porto ainda continua lá?

Continua; por sinal que já é escrevente; e o teu?

Ah! Não sabes?

Que houve?

Vai receber cinquenta contos; é um herói nacional.

Homem?

Venceu o campeonato Sul-Americano de football  com o team nacional. E dizer que ele não dava pra nada!”

***

ÚLTIMAS LINHAS. AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO foi combatente contra a prática do futebol no Brasil. Embora homem de inteligência lúcida e de origem humilde, verdadeiro filho do povo, nunca aceitou o chamado esporte bretão, chegando mesmo a tornar-se inspirador e centro de um movimento que a ele se opunha. E muito escreveu para afirmar sua posição. Artigos, crônicas, sueltos, conferência imaginária, contos, como A doença do Antunes e Herói!, que o leitor conferiu acima. Foi publicado em A careta, em 1922, e mais tarde figurou no volume Coisas do reino de Jabom, de suas obras completas. Fonte: Milton Pedrosa. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Editora Gol, 1967.

Artigo publicado originalmente em História(s) do Sport.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edônio Alves Nascimento

Jornalista, Poeta, Escritor. Também é pesquisador da relação entre futebol e literatura e professor do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba onde leciona Jornalismo Esportivo, entre outras disciplinas.

Como citar

NASCIMENTO, Edônio Alves. Lima Barreto e a arte do mundo esférico. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 28, 2023.
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