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O sportswashing além do Oriente Médio

Copa Além da Copa 17 de novembro de 2021

A compra do Newcastle United por um fundo ligado ao governo da Arábia Saudita trouxe de volta ao noticiário um termo em inglês cada vez mais comum no esporte de alto nível: “sportswashing”.

Trata-se da prática de tentar usar o esporte para limpar uma reputação internacional. Por isso, normalmente, ela é feita por Estados com regimes repressivos, como as ditaduras árabes, entre as quais se inclui a saudita. Mas falar somente delas é uma injustiça: hoje, são muitos os regimes autoritários que tratam o esporte como propaganda. Aliás, nós já falamos um pouco sobre o assunto aqui mesmo no Ludopédio.

Este texto é um complemento ao episódio 44 do podcast Copa Além da Copa, que fala sobre o esporte nos países do Golfo Pérsico. Para ouvi-lo, clique aqui.

Prática antiga

É difícil dizer quando o sportswashing foi criado, mas é possível que os nazifascistas tenham sido pioneiros. É conhecida a influência do governo italiano na grande seleção que ganhou as Copas de 34 e 38, por exemplo. E, no caso dos alemães, a Olimpíada de Berlim em 1936 foi uma suntuosa resposta internacional ao prêmio Nobel da Paz do ano anterior.

Ele havia sido dado a Carl von Ossietzky, jornalista que era um crítico feroz de Hitler e que estava preso desde o incêndio no Reichstag, o Parlamento alemão, em 1933. O fato de ter sido laureado com o prêmio foi desmoralizador para a imagem internacional que os nazistas queriam projetar. Assim, os grandiosos Jogos Olímpicos na capital alemã em 36 visavam mudar a maneira como o führer e seus acólitos eram vistos pelo mundo.

Mas o termo “sportswashing” em si começou a circular mais na imprensa nos últimos anos, tendo sua origem atribuída a uma campanha chamada Sports or Rights (em português, “esportes ou direitos”), que era crítica do governo de Ilham Aliyev, ditador do Azerbaijão desde 2003. 

Essa campanha teve a sagacidade de pegar a palavra inglesa “whitewashing”, que quer dizer algo como acobertar ou esconder fatos desagradáveis sobre uma coisa ou uma pessoa, e acrescentar “sports”. O termo pegou, e vale falar um pouco sobre por que, afinal, esses ativistas estavam protestando contra o governo do Azerbaijão. 

Ilham Aliyev
Ilham Aliyev no Grande Prêmio do Azerbaijão de 2019. Foto: President.az/Wikipédia

Azerbaijão: “terra do fogo”

Em 2014, o Atlético de Madrid voltou a conquistar o campeonato espanhol depois de quase 20 anos, além de ter chegado à final da Champions League pela segunda vez na história. Na sua camisa, porém, havia um slogan criticado por entidades defensoras dos direitos humanos: “Azerbaijão, terra do fogo”.

O país de Aliyev havia desenvolvido toda uma estratégia para mudar sua imagem internacional: conhecido por censurar a imprensa e impedir associações civis, além de impor prisões arbitrárias e tortura, o regime queria agora ser lembrado por sua paixão por esportes.

Por isso, decidiu lançar a capital Baku como potencial sede da primeira edição dos Jogos Europeus, competição multiesportiva que estreou em 2015. Entrou na disputa e venceu. Mas o Azerbaijão queria ainda mais: tentou também ser a sede da Olimpíada de 2020, que acabou indo para Tóquio. 

Na Fórmula 1, competição automobilística que historicamente nunca se importou com questões como direitos humanos, organizando corridas até na África do Sul sob boicote mundial por causa do apartheid, não foi difícil realizar o Grande Prêmio de Baku a partir de 2016.

Mas o futebol é o esporte mais popular do mundo, e, por isso, patrocinar o Atlético de Madrid era a joia da coroa do plano azeri. Além de estampar seu nome na camisa do clube, o governo Aliyev ainda trouxe a equipe para treinar em seu país, bem como enviou jovens do Azerbaijão para desenvolver seu futebol na Espanha. O presidente do clube espanhol, Enrique Cerezo, ao passo que aceitava o dinheiro, dizia orgulhoso que estava ajudando a “projetar a imagem do Azerbaijão para o mundo”.

Ilham Aliyev ainda se aproximaria da UEFA e conseguiria trazer para o Estádio Olímpico de Baku a final da Liga Europa de 2019, entre Arsenal e Chelsea. Houve um constrangimento, uma vez que o meia Henrikh Mkhitaryan não pôde jogar por ser da Armênia, país sem relações diplomáticas com o Azerbaijão. Mas, para a UEFA, foi um sucesso – tanto que Baku foi escolhida como uma das sedes da Euro 2020.

Baku Olympic Stadium
Baku Olympic Stadium. Foto: Eminn/Wikipédia
Chelsea vs. Arsenal, 29 May 2019
Chelsea vs. Arsenal, Liga Europa 2019. Foto: Fars Media Corporation/Wikipédia

Ao lado do Azerbaijão, a Turquia

Antes de Ilham Aliyev, quem mandava no país era seu pai, Heydar Aliyev, presidente entre 1993 e 2003. Era ele quem costumava dizer que “a Turquia e o Azerbaijão são uma nação com dois Estados”. Não à toa, na Eurocopa, vimos nos jogos da seleção turca em Baku um amplo apoio à seleção alvirrubra, com bandeiras híbridas com os símbolos dos dois países sendo hasteadas.

A Turquia também tem um ditador no poder: Recep Tayyip Erdogan. Ele investe muito em esportes e inclusive fez um pequeno clube chegar ao título nacional, o Istanbul Basaksehir, história que já contamos em um dos nossos podcasts especiais sobre a Eurocopa.

Em dezembro de 2010, Ilham Aliyev chamou Erdogan de “irmão” em uma parada comemorativa da vitória azeri na Guerra dos 44 dias. Completou falando que “a participação da Turquia no evento mostra aos nossos povos e ao mundo novamente a nossa unidade”.

É claro que a Turquia não perde a oportunidade de fazer sportswashing: a imagem de Erdogan no mundo não é das melhores, mas a Turkish Airlines, por exemplo, é uma empresa estatal poderosa. Ela já foi patrocinadora oficial da Eurocopa, do Borussia Dortmund e do Manchester United, e recentemente causou problemas na Argentina, ao passar a estampar a camisa do River Plate.

A Argentina tem uma grande comunidade armênia, com cerca de 120 mil pessoas. Aí, basta ligar os pontos: o Azerbaijão, aliado da Turquia, é rival da Armênia. O patrocínio de uma estatal turca a um dos maiores clubes do país foi visto como uma terrível ofensa.

“A Turkish Airlines representa os interesses de Recep Tayyip Erdogan, um presidente autoritário que prende e persegue jornalistas”, diz o comunicado oficial das Instituições Armênias da República da Argentina divulgado ainda em 2019. Errado, não está. Mas o presidente do River Plate, Rodolfo D’Onofrio, comemorou também os benefícios financeiros levados pela estatal turca aos nossos vizinhos sul-americanos: “Eles vão trazer um vôo de turistas da Rússia que vai passar por Moscou, Istambul, São Paulo e Buenos Aires. Tudo isso é riqueza para a Argentina”. O dinheiro é a alma do sportswashing.

O principal projeto de Erdogan, porém, é transformar a Turquia em uma potência dos esportes de inverno. Anunciou um investimento de 48 bilhões de euros em 2014 com a ideia de colher frutos a partir dos Jogos Olímpicos de 2026.

E, claro, existe a Fórmula 1. Mas ela merece um capítulo à parte…

Erdoğan
Pôster de campanha de Erdoğan. Foto: Myrat/Wikipédia

Fórmula 1 é o esporte campeão no sportswashing

O calendário da temporada 2021 da Fórmula 1 tem 22 provas. Delas, seis acontecem nos países mais mencionados quando falamos em sportswashing: Bahrein, Catar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Azerbaijão e Turquia. A Rússia, outra feliz detentora de uma etapa, não fica muito atrás no assunto. E, claro, há a Hungria, mas essa é uma corrida antiga e tradicional, apesar de que uma remoção seria recomendada considerando a ditadura de Viktor Orbán.

A FIA nunca se preocupou com direitos humanos ou com ditaduras. Como mencionamos acima, em pleno Apartheid, mantinha uma etapa na África do Sul, mesmo com todos os protestos e boicotes da comunidade internacional. E, claro, hoje aceita alegremente o dinheiro de várias ditaduras ao redor do globo.

Mas como podemos criticá-la quando a próxima Copa do Mundo acontecerá no Catar, um dos estados campeões em sportswashing?

Ruanda Arsenal
Fonte: divulgação

Ruanda: genocídio, pobreza e investimento em esportes

Localizado na África Central, Ruanda é um país montanhoso conhecido como “terra das mil colinas”. Tem apenas o 160º melhor IDH do mundo e uma guerra civil entre duas etnias dominantes, os Tutsi e os Hutu, levou a um dos piores genocídios da história recente da humanidade em 1994.

É justamente desde o genocídio e do fim da guerra civil que a Frente Patriótica de Ruanda governa o país. Liderada por Paul Kagame, mantém-se no poder com diversas medidas ditatoriais e autoritárias, além de ter denúncias frequentes de fraudes eleitorais.

Apesar de a agricultura ainda ser o principal pilar da economia de Ruanda, o governo investe cada vez mais em turismo. O trabalho para tornar os gorilas das montanhas visitáveis de maneira segura rende frutos, além da música e da arte popular também ganhar um alcance internacional. Kagame tem a intenção de fazer do país um dos principais destinos na África.

E é justamente com o turismo que Ruanda faz seu próprio sportswashing: mesmo com boa parte da população vivendo abaixo da linha da pobreza e tendo um IDH baixo, o governo investe em anúncios e patrocínios em alguns dos principais times do mundo.

No último mês de agosto, o Arsenal renovou o seu acordo para ter a frase “Visit Rwanda” nas mangas de seu uniforme. Para isso, recebeu 40 milhões de libras do Rwanda Development Board, ou Comitê de Desenvolvimento de Ruanda, obviamente uma organização estatal.

O RDB também tem um acordo com o PSG para estampar “Visit Rwanda” nos uniformes de treinamento e pré-jogo da equipe francesa, além de anúncios no Parque dos Príncipes em dia de jogo. Quantos turistas Lionel Messi, Neymar e Mbappé podem levar ao país que tem 39% de seus habitantes passando fome?

Para encerrar, não poderíamos deixar de lado uma informação surpreendente: A FIA anunciou em 2019 que pretende voltar a ter uma corrida na África em breve, coisa que não acontece desde o Grande Prêmio da África do Sul de 1993. Uma das principais favoritas? Ruanda.

PSG Ruanda
Fonte: divulgação
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Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. O sportswashing além do Oriente Médio. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 20, 2021.
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