A derrota da Seleção Brasileira para a Itália, na Copa da Espanha, completa agora quarenta anos. A cada decênio a discussão sobre o jogo volta à baila, reavivando velhas teorias, suscitando novas hipóteses, proporcionando explicações que, decorridos quase meio século da “tragédia de Sarriá”, ainda não convencem plenamente os que a vivenciaram intensamente, tanto dentro quanto fora das quatro linhas. Mas embora o inconformismo persista, a percepção sobre a derrota já não é mais a mesma. Ao longo do tempo, passamos por leituras distintas sobre os acontecimentos que ela encerra, cada qual exprimindo uma apreciação diversa acerca do resultado do jogo, do valor do adversário e do significado do evento.
O quadro da “tragédia de Sarriá”, a rigor, revela-se bem mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Algumas “verdades” foram descontruídas, outras continuam a ser reproduzidas, mas nenhuma interpretação sobre o fatídico 5 de julho consegue estabelecer um consenso, longe disso, ontem como hoje, a polêmica sempre foi a regra quando se trata de discutir o Brasil x Itália de 1982. Sendo assim, ainda que de forma esquemática, repassemos alguns pontos do interminável debate envolvendo a eliminação da “Seleção da Abertura”, debate iniciado logo após o apito final.
Com efeito, uma vez encerrada a partida em Barcelona, em meio à frustração, os atletas sequer encontravam uma explicação. “É incrível”, desabafava Zico à saída do vestiário, “mas estamos desclassificados”.[1] A mesma perplexidade comparecia nas declarações lacônicas de Junior, também à saída do vestiário: “Fomos vítimas de um acidente”.[2] A capa da edição extra do Jornal do Brasil, por sua vez, exibia a foto de uma torcedora sentada no meio-fio, o rosto apoiado no braço, completamente desolada. A legenda a tomava como uma alegoria do país: “O povo acreditava que o time de Telê era invencível.”[3] Muitos, à época, recusavam-se a aceitar a realidade. Um “boato nacional”, difundido a partir das 11 horas da manhã do dia 6 de julho, congestionava as linhas de telefone e telex dos jornais, rádios e televisões do país com a notícia de que Paolo Rossi “jogara dopado” e de que a Itália “fora desclassificada”.[4] Um tripulante do navio “Custódio de Melo”, da marinha brasileira, e que se achava atracado no porto de Sevilha, expressava a incredulidade geral com o desenlace de um jogo que se considerava ganho de antemão:
O que houve, o que aconteceu com esse time, meu Deus? Nós somos muito melhores do que a Itália. Como perder para eles e ainda levar três gols?[5]
As manifestações de perplexidade originavam-se precisamente nesta premissa inquestionada: éramos muito superiores aos rivais. Mas esta crença, amplamente disseminada entre os torcedores e os comentaristas antes do confronto, logo se desfez diante do resultado adverso. O pesquisador que se der ao trabalho de revisitar a cobertura jornalística do jogo irá se surpreender com as manchetes, análises e opiniões que, já naquele momento, expressavam um ponto de vista mais distanciado face à Pátria de Chuteiras. A título de ilustração, podemos citar o depoimento de um cobrador de ônibus da linha Vidigal-Mourisco, quando as cortinas do espetáculo se fecharam: “Infelizmente tenho que reconhecer, eles jogaram muito melhor e mereceram vencer”.[6] Pesquisas de opinião realizadas entre os torcedores também captavam a mesma visão de jogo expressa pelo trabalhador carioca do transporte público. Sem dúvida, a imprensa registrava reações de revolta, tumultos provocados por embriaguez, até casos de suicídio.[7] Mas em meio ao fluxo narrativo de uma nação dilacerada, emergia aqui e ali o reconhecimento a respeito da justiça do resultado e do mérito do adversário.
Em 1982, a rigor, coexistiam duas visões opostas sobre a “tragédia de Sarriá”. De um lado, havia o grupo que continuava convencido da superioridade do time nacional sobre o time italiano, cuja vitória atribuíam ao acaso, viam-na como fruto das circunstâncias adversas de uma jornada infeliz. De outro lado, havia o grupo que buscava identificar os pontos vulneráveis do Brasil, apontar as falhas cometidas durante a partida, reconhecer os presságios ignorados no transcorrer da competição. Na esteira da eliminação, muitos procuravam fixar o significado do “trágico” evento. O cronista Carlos Eduardo Novaes, por exemplo, tripudiava sobre o futebol apresentado pela Seleção Brasileira: “Daríamos uma excelente equipe de globe-trotters para sair pelo mundo fazendo exibições”.[8] Dessa maneira, instalava-se a falsa dicotomia entre o jogar bonito e perder versus o jogar feio e ganhar, polarização destinada a adentrar o século XXI, porquanto revestindo-se de uma nova terminologia.
Dez anos depois, embora se mantivesse o antagonismo das visões do jogo, surgiam novos enfoques, reavaliações críticas, olhares mais nuançados sobre a “tragédia de Sarriá”. A pedido da Folha de S. Paulo, Sócrates sintetizava nos seguintes termos o confronto Brasil x Itália: “Foi uma partida equilibradíssima”.[9] A sentença socrática, formulada em 1992, situava o jogo sob um novo prisma, crucial para desfazer um equívoco histórico cristalizado na memória coletiva. Conforme o testemunho valioso fornecido pela jornalista Renata Mendonça, a geração posterior à “tragédia do Sarriá” crescera persuadida de que o Brasil submetera a Itália a um verdadeiro massacre, constituindo-se a derrota do time nacional em uma das maiores injustiças já registradas nos anais da Copa do Mundo.[10] De fato, como salientado mais atrás, em 1982 não era absolutamente esta a percepção nem da crônica especializada nem do público torcedor. Ao que tudo indica, a versão do massacre foi sendo construída e propagada a posteriori.
Em 2002, Melchiades Filho chamava atenção para o que lhe parecia mais próximo da realidade dos fatos: “quem teve a paciência de rever a partida pôde constatar” que a derrota “não foi obra do acaso”. Ao contrário, prosseguia o jornalista da Folha de S. Paulo, a Itália havia superado o Brasil “com justiça”.[11] Carlos Alberto Torres, por sua vez, não teve necessidade de rever a partida para chegar à mesma conclusão. Em uma entrevista concedida à revista Placar em meados dos anos oitenta, momento em que principiava a carreira de treinador, ele já reconhecia o mérito do adversário que aliava organização tática, talento individual e amadurecimento coletivo: “Em 1982 nós não perdemos por azar, mas porque a Itália era um grande time.” [12] Mais recentemente, ao evocar o momento em que deixava o estádio Sarriá, logo após a partida, o jornalista Juca Kfouri corroborava a análise feita pelo capitão do tricampeonato.
A mudança de apreciação do resultado do jogo, do valor do adversário e do significado do evento foi adquirindo contornos mais nítidos à medida que nos afastamos do fatídico 5 de julho. Em 1992, o lateral direito da Seleção Brasileira, Leandro, era taxativo a respeito da comparação entre as duas equipes:
“Sabíamos que, se jogássemos dez partidas contra eles, venceríamos nove”.[13] Em 2014, o jornalista Juca Kfouri já não se mostrava assim tão certo quanto à distância que as separava: “Jogassem 10 vezes, os brasileiros venceriam sete e empatariam duas, mas, naquele dia, os italianos venceriam”[14] Em 2032, por ocasião do cinquentenário da “tragédia de Sarriá”, como estará a contagem dos playoffs imaginários disputados entre Brasil x Itália?
A “tragédia de Sarriá” parece envolta pelo feitiço do tempo. A cada vez que a revisitamos, temos a impressão de assistir a um jogo diferente. Não são poucos, inclusive, os que ainda acreditam que, um dia, a cabeçada de Oscar, desferida no apagar das luzes de um sonho mítico, entrará afinal nas redes defendidas pelo goleiro Zoff.[15] Em contrapartida, inúmeros comentaristas, pesquisadores e torcedores passaram a partir da derrota a cultivar o ressentimento contra o futebol concebido como arte, manifestando arrependimento por terem acreditado na utopia lúdica de 1982. No que nos diz respeito, concluímos estas breves considerações com as palavras do escritor e compositor Sérgio Cabral, proferidas em um papo de esquina, logo após a eliminação para a Itália:
O que podemos fazer? Perderemos todas as copas em que a objetividade estiver mais forte do que as nuances. Ou onde o menor caminho entre dois pontos seja uma reta. Para nós, não. O menor caminho não existe. O que há é o melhor caminho, onde nos divertiremos mais, onde as coisas serão mais belas. Estou triste, mas não estou arrependido. [16]
Eis o futebol-arte: um estilo de jogo, uma filosofia de vida, uma prática de liberdade, aspectos que a “Seleção da Abertura” reunia e afirmava no momento em que almejávamos virar a página infeliz da nossa história, ontem como hoje.
[1] Cf. “O sonho acabou. Pena, porque era um lindo sonho”, O Globo, 6 de julho de 1982.
[2] Cf. “Falcão: triste é não saber se disputarei um nova Copa”, O Globo, 6 de julho de 1982.
[3] Cf. “O sonho acabou”, Jornal do Brasil, 6 de julho de 1982.
[4] Cf. “Torcida sonha por horas com a eliminação da Itália”, O Globo, 7 de julho de 1982. O Jornal do Brasil foi mais longe na tarefa de desfazer os boatos, publicando o boletim da FIFA do exame antidoping. Cf. “Comissão da FIFA desfaz qualquer dúvida”, 7 de julho de 1982.
[5] Cf. “Torcida chora a derrota que não esperava”, O Globo, 6 de julho de 1982.
[6] Cf. “Tristeza e decepção marcam reação contra a derrota” e “Emoção causa enfarte e suicídio”, Jornal do Brasil, 6 de julho de 1982.
[7] Segundo uma pesquisa realizada em São Paulo pelo Instituto Gallup, 61% dos torcedores entrevistados julgavam justa a vitória da Itália. Cf. “Torcida aclama Seleção, mas acha derrota justa”, Jornal do Brasil, 8 de julho de 1982.
[8] Cf. “Quem vai pagar a conta?” Carlos Eduardo Novaes, 8 de julho de 1982.
[9] Cf. “Surpreendi o goleiro”, Sócrates, Folha de S. Paulo, 5 de julho de 1992.
[10] Cf. “Sarriazo 82”. Evento promovido pelo Sesc Pompéia, em São Paulo, em 5 de julho de 2022, com a mediação do jornalista Marcelo Mendez.
[11] Cf. “Assim é se lhe parece”, Melchiades Filho, Folha de S. Paulo, 20 de maio de 2002.
[12] Cf. “O futebol brasileiro não é o melhor do mundo”, entrevista Carlos Alberto Torres, revista Placar, nº 765, 18 de janeiro de 1985.
[13] Cf. “De repente, o pânico. Era outra vez Paolo Rossi”, O Globo, 5 de julho de 1992.
[14] Cf. “A primeira Copa a gente nunca esquece” Juca Kfouri, Folha de S. Paulo, 26 de janeiro de 2014.
[15] Cf. “Sarriazo 1982, a anatomia de uma dor”, Marcelo Mendez, 2022, Museu da Pelada https://www.museudapelada.com/resenha/sarriazo-1982-a-anatomia-de-uma-dor/
[16] Cf. “Aqui entre nós: foi uma derrota bem brasileira”, Sérgio Cabral, coluna: “Papo de Esquina”, O Globo, 6 de julho de 1982.