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50 anos do histórico Colo-Colo finalista à beira da queda de Allende

Fabio Perina 15 de junho de 2023

Antecedentes

“Salvador Allende, um torcedor de La U, logo percebeu a importância que o sucesso do Colo Colo tinha para criar uma causa unitária num país dividido em todo o resto. O primeiro ano de Allende, 1971, havia sido marcado pela aceleração da reforma agrária, a nacionalização da mineração e dos bancos, a estatização de fábricas e diversas medidas sociais. Em pouco tempo, no entanto, os bons resultados socioeconômicos deram lugar a uma crescente crise. (…) O governo de Salvador Allende entrou 1973 vivendo sua crise final. O plano de realizar uma transição pacífica ao socialismo, dentro da legalidade e da democracia, havia sido gradativamente despedaçado pelas sabotagens internas, os boicotes internacionais, os equívocos do próprio governo. O pleito de 4 de março era decisivo para os planos da oposição, que precisava de dois terços do Parlamento para fazer passar um processo de impeachment. Não conseguiu.”

O fragmento acima pertence a um texto que contribui com diversos elementos para a reconstituição de dois processos que se cruzaram nas perigosas esquinas da história: a coincidência simbólica da estreia do Colo-Colo na Libertadores em março ser dias antes da eleição parlamentar citada, com o início de um processo marcando o início do fim de outro. A bela caricatura da equipe do Colo-Colo com rostos coloridos como expressão da efervescência entre as dimensões cultural, intelectual e política em marcha naquele contexto, como os grupos musicais Quilapayun e o Inti-Illimani. E a menção a diversos grupos e sujeitos em disputa na política, mas que vibraram com as vitorias colo-colinas e parabenizaram seus jogadores.

Apesar dos legítimos depoimentos dos protagonistas daquela época, o que vale de ressalva que o “mito” que o Colo-Colo supostamente atrasou o golpe por um lado romantiza o futebol. Embora por outro lado banalizaria a política ao banalizar as imensas forças reacionárias (primeiro paramilitares e, por fim, militares) que estavam em curso. Sendo mais sensato não desequilibrar as duas dimensões do futebol e da política através de reconhecer objetivamente que multidões nas ruas e nos estádios podiam ser uma retaguarda aos movimentos populares para dificultarem o golpe e também reconhecer subjetivamente que essas vitórias eram um raro momento de união que vivenciava um país cada vez mais desunido. Um clube que desde sua fundação em 1925 em seu escudo busca aderir às cores nacionais mesmo que não sejam as mesmas do tradicional branco e preto do uniforme. E nessa nova jornada heroica de 1973 reforçou sua consigna oficial e popular que “Colo Colo es Chile”. Uma alegria muito mais concentrada que o cotidiano jamais sonharia entregar e provisoriamente trocar o medo pela trégua e pela esperança.

Sem uma longa e cansativa análise de conjuntura, o fragmento acima também sintetiza as contradições de uma intensa polarização política e social em que uma vibrante revolução popular e democrática com a inédita “via chilena ao socialismo” com o líder Salvador Allende e a Unidad Popular unindo socialistas e comunistas, em marcha desde novembro de 1970. Porém “se caiu a noite”, sobretudo a partir de março, e rapidamente revertida ao longo do ano de 1973 em uma violenta e duradoura contra-revolução. Tendo como ponto de não-retorno o trágico 11 de setembro como sua ruptura definitiva e um regime autoritário de quase duas décadas. Infelizmente a união que sobrava de dentro de campo com os jogadores para fora de campo com a hinchada não fui suficiente para contagiar a mesma unidade tática entre as forças populares que compunham a UP e o governo Allende diante de divergências internas. Daí uma conhecida tese historiográfica do “poder dual” na qual a militância acirrava suas contradições com o governo na busca por acelerar a “via chilena ao socialismo”. (Alguns exemplos: A exigência não atendida que o governo Allende liberasse armas para defenderem o processo revolucionário diretamente nas ruas e locais de trabalho e moradia. Assim como a chamada “batalha pela produção”, pela qual os operários aceitavam horas-extras não remuneradas, sobretudo nas fábricas expropriadas, sabendo que garantir o crescimento econômico seria uma importante retaguarda de legitimidade do governo e por consequência do processo revolucionário). Porém Allende não desistiu de seu projeto de vida de uma “via chilena ao socialismo” exclusivamente pacífica e parlamentar. O que se acentuaram conforme se agravou a ofensiva golpista reacionária obteve as armas que precisava, e assim a auto-organização popular (apesar de muito honrosa e “laburante”) se mostrou desarticulada e insuficiente. Em suma, impondo-se uma derrota histórica de toda uma geração da militância popular, que se viu bloqueada em sua luta coletiva e só lhes restou a luta pela própria sobrevivência de cada um (WIN, 2009).

colo-colo 1973
Colo-Colo em 1973. Fonte: Conmebol

A trajetória copeira

A campanha do Colo-Colo, o vigente campeão chileno de 72, naquela Libertadores iniciou na fase de grupos contra o também chileno Union Española e os equatorianos Emelec e El Nacional. Em um grupo que apenas o líder avançaria, as goleadas em casa por 5 gols cada foram suficientes para compensar um desempenho mediano fora de caso com 2 empates e 1 derrota.

Na fase seguinte de um triangular semifinal, na qual novamente apenas o vencedor do grupo avançaria, houve uma disputa muito parelha com Cerro Porteño-PAR e Botafogo. O alvinegro carioca dos craques Marinho Chagas e Roberto Miranda além dos tricampeões Brito e Jairzinho por sua vez tinha saído do “grupo da morte” com os uruguaios Peñarol e Nacional e com o após Palmeiras, após desempate adicional. Contra os paraguaios houve o insólito equilíbrio de uma goleada para cada lado (4 a 0 e 5 a 1). Já contra o Botafogo, a partida mais recordada foi no Maracanã, em 6 de abril. Onde em partida muito disputada o visitante chileno abriu 2 a 0 em sua reta final com gols de seus protagonistas Francisco “Chamaco” Valdéz e Carlos Caszely, com Ferretti descontando no último minuto para os locais 2 a 1. Uma façanha de um país periférico no futebol sul-americano impor uma derrota a um clube do país vigente tri-campeão mundial em seu templo sagrado. (Obs: inclusive já havia meses na formação dessa equipe chilena considerada a mais ofensiva de todas justamente ao “beber da fonte” dessa tão privilegiada referência de talento e união). Já em Santiago na volta foi o Botafogo quem esteve próximo da épica com uma remontada parcial de 2 a 0 para 2 a 3. Final 3 a 3 e pela primeira vez uma vaga chilena na final.
O desafio foi ainda maior ao enfrentar o vigente campeão continental Independiente-ARG, com a linha de defesa lendária com Sá e Pavoni, quem entrou na competição direto no outro triangular semifinal superando Millonarios-COL e San Lorenzo-ARG. Primeiro, em 22 de maio no empate de 1 a 1 em Avellaneda com gols de Mendoza para os argentinos e Sá marcando contra para os chilenos. Depois, em 29 de maio novo empate, agora sem gols, em Santiago. Finalmente, em 6 de junho, no desempate no Centenário de Montevideo houve empate parcial no tempo normal com gols de Mendoza para os argentinos e Caszely para os chilenos. Porém na prorrogação Giachello marcou o gol decisivo nessa decisão agônica. Em cada partida os chilenos não se intimidaram com a pressão e aplicaram o mesmo estilo de jogo ofensivo desde a chegada do treinador “Zorro” Alamos, porém foram prejudicados pela arbitragem em cada uma das três partidas.

Time-base: Nef; Galindo, Herrera, González e Silva (Castañeda); Páez, Valdés e Messen; Caszely, Ahumada e Véliz (Lara). Técnico: Luis Álamos

Colo-Colo
O Colo Colo de 1973, em mural pintado em 2013 pelo coletivo “Campeones de Estampa”. Fonte: reprodução

E depois?

Ainda em meados daquele ano de 73 com uma peça chave na trama golpista quando o presidente Allende aceitou uma troca no comandante das forças armadas do general Prats pelo general Pinochet. Dali em diante a história se acelerou vertiginosamente para seu ponto de não retorno em 11 de setembro com o bombardeio do Palácio de la Moneda com apenas Allende em seu interior. Quando saiu da vida e entrou para a história com o célebre discurso que “muito mais cedo se abrirão novamente grandes alamedas para passarem homens livres”. Ironia suprema: acompanhado apenas de um fuzil AK-47 presenteado por Fidel Castro como prova do dever de atender o clamor popular pelas armas. Em suma, pagou caro demais com voluntarismo por sua firmeza de princípios. Colocando imediatamente em marcha o ato final do golpe com brutal repressão da ditadura Pinochet já em seus primeiros meses com muitas prisões, exílios e assassinatos. O elemento simbólico trágico que no momento em que a política cruzou o caminho do futebol mais do que nunca foi que, dentre as demais ditaduras sul-americanas, apenas a chilena quem “profanou” seu principal estádio público como centro de repressão.

Falando nisso, infelizmente a agenda futebolística voltou a se cruzar com os destinos do Estádio Nacional devido às Eliminatórias para a Copa do Mundo de 74 na Alemanha. Com o Brasil já obtendo vaga direta como vigente campeão mundial, Argentina e Uruguai garantiram suas vagas através da fase de grupos triangulares. Enquanto entre abril e maio os tradicionais rivais do Pacífico (Chile e Peru) jogaram uma definição em chave única (devido a desistência da Venezuela que disputaria o triangular) com uma vitória de 2 a 0 para cada lado. Já em 5 de agosto houve o desempate no Centenário de Montevideo com vitória chilena. É então que um capricho do destino ainda maior fez com que na repescagem pela última vaga se cruzassem União Soviética x Chile, justamente uma quinzena após o golpe de Pinochet, em 26 de setembro em Moscou em um empate sem gols. É então que as peças se encaixaram para a maior vergonha da FIFA por não conseguir em 2 meses encontrar alguma solução sensata e obrigando que a partida de volta fosse realizada em 21 de novembro em Santiago. A cena final vergonhosa se deu com um estádio praticamente vazio e apenas jogadores chilenos tocando a bola sem adversários em campo. Episódio que inclusive reforça a recorrente interferência da FIFA contra a forte seleção da União Soviética seja em escândalos fora de campo como esse ou em arbitragens suspeitas dentro de campo. Um ano depois a seleção chilena voltou da Alemanha eliminada na fase de grupos sem vitórias.

Por fim, acelerando a retrospectiva, o Independiente-ARG após o bicampeonato da Libertadores em 72/73 ainda ganharia mais duas edições seguidas de 74/75, alcançando um até hoje inédito tetracampeonato. Sendo que seu dirigente Julio Humberto Grondona teve ascensão decisiva na AFA por mais de 3 décadas. O futebol chileno como um todo teve alguns surtos com mais finais continentais com os modestos U. Española (em 75) e Cobreloa (81 e 82). Mas somente passou a conhecer um título com o próprio Colo-Colo em 91, conforme já tratei em texto anterior. Desde então raramente repetiu uma boa participação na Libertadores. Hoje parece cada vez mais improvável qualquer clube chileno (ou mesmo andino) repetir uma façanha de grande vitória em algum grande estádio brasileiro. Vindo para os dias mais atuais, o tema de futebol e política no Chile foi sendo reabilitado com sua repercussão no Brasil diante do bom desempenho da seleção chilena campeã continental em 2015 e fora de campo com o “estallido social” em 2019. Além desses fatos notórios, outro talvez pouco lembrado por muitos que em 2015 se iniciou um movimento de sócios pela revogação do título de sócio de Pinochet do clube. Algo que se insere em um contexto mais amplo de formação de hinchadas antifascistas em vários clubes e vários países, de lutas pela recuperação do clube social e esportivo e da revogação do clube-empresa “Blanco y Negro”, que afasta sócios e hinchas do dia-a-dia do clube e sequer entrega resultados esportivos satisfatórios. Uma amostra recente levantou discussões dos vários usos políticos que diferentes forças tentaram usar sobre o clube e como a hinchada os ressignificou. Parte desses conteúdos recém descobertos ao público brasileiro abordam o papel do clube colocolino e do craque colocolino Caszely (quem dispensa apresentações em sua militância política, sendo simplesmente considerado junto com Sócrates um dos principais jogadores “rebeldes” da América do Sul) conforme as diversas polarizações políticas surgiram. Em suma, questão de identidade e principalmente memória e reparação histórica sempre em disputa. Sendo que felizmente esse último teve uma estátua sua recém-inaugurada no Estadio Monumental. O que é fora de campo algum alento diante de um futebol chileno em refluxo após 2015 e sobretudo uma sociedade chileno em refluxo após 2019 diante da atual imensa frustração com o governo de centro-esquerda Gabriel Boric. Tanta frustração que parece repetir elementos da experiência Allende (inclusive pelos rituais simbólicos de sua recente posse no início de 2022) como um líder de centro-esquerda vivamente apoiado pela militância da esquerda-marxista, porém logo a abandonando diante da firmeza de princípios de apostar na “via chilena” pacífica e nos compromissos parlamentares burgueses.

Caszely Colo-Colo
Fonte: reprodução twitter/Colo-Colo

Leitura de Apoio

WIN, Peter. A Revolução Chilena. São Paulo: Editora UNESP, p. 381, 2009.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. 50 anos do histórico Colo-Colo finalista à beira da queda de Allende. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 15, 2023.
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