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Dois anos do estallido social chileno

Fabio Perina 18 de outubro de 2021

Antes de tratar da conjuntura dos últimos meses, uma breve menção aos últimos dias no futebol e na política no Chile. No futebol, as campanhas insatisfatórias na Copa América e nas Eliminatórias levam a frequentes questionamentos não apenas ao treinador de turno (o uruguaio Martín Lasarte) como mais profundos com o envelhecimento da “geração dourada” (bicampeã da Copa América 2015/16). E mais profundos ainda quanto ao modelo de clube empresa por ser ineficaz, vide o fracasso na Libertadores ano a ano dos clubes chilenos. Na política, os últimos 40 dias do “governo” Piñera, são com baixíssima popularidade, sem fazer seu sucessor eleitoral e sobretudo a pressão da oposição para a abertura de investigações sobre o escândalo de paraísos fiscais Pandora Papers. Em pleno 12 de outubro, dia de luta dos povos originários, Piñera “passou a boiada” ao declarar Estado de exceção na região sul (alegando o bode expiatório de sempre dos mapuches como terroristas) e reprimiu com seus Carabineros uma marcha mapuche em Santiago levando à morte de uma militante!

Já tratei em dois textos anteriores do tema do “estallido” social chileno, tendo como marco inicial 18 de outubro de 2019 com um “pula catraca”. Em um, tratei de contextualizar a importância do futebol para entender as principais “consignas” (palavras-de-ordem) da mobilização política e seu impacto no início de 2020 com as últimas partidas com torcedores nos estádios antes da pandemia. Em outro, busquei aproximar uma comparação entre militantes antifascistas no Brasil e no Chile quanto às mobilizações nos estádios e nas ruas.

Sebastián Piñera
Presidente do Chile Sebastián Piñera. Foto: Pr.Chile via Fotos Públicas.

De um ano para cá, é preciso uma breve menção à geopolítica continental. Ficam cada vez mais claros os limites do progressismo com o desgaste de Obrador no México e Alberto Fernández na Argentina. Por contraste, nos países de neoliberalismo mais brutal nas últimas décadas foram os que nos últimos meses tiveram revoltas populares mais intensas (os “estallidos”): primeiro o Chile no final de 2019 e mais recente a Colômbia do início de 2021. Um importante líder do progressismo que tem dado as cartas no continente é Arce na Bolívia ao encorajar as investigações que mostram os vínculos (nem um pouco surpreendentes) da extrema-direita boliviana com seus colaboradores de direita no golpe no final de 2019: Bolsonaro no Brasil, Macri na Argentina e Piñera no Chile. 

O Chile entrou em 2021 em um intenso ano eleitoral com pleitos em diversas esferas: primeiro finalmente se votou a Assembleia Constituinte (AC), em maio, após seguidos adiamentos por conta da pandemia. (Obs: por falar em calendário, seu prazo é de 9 meses de elaboração da nova proposta de carta magna e possível retorno à votação popular em julho de 2022). Depois, em julho, eleições municipais, regionais e prévias presidenciais. E por fim se aproxima a eleição presidencial, programadas para o próximo dia 21 de novembro. Por enquanto o prognóstico é da centro-esquerda com Gabriel Boric a frente por pequena vantagem da extrema-direita com Juan Antonio Kast.

O resumo da AC é que toda a revolta popular do estallido social em fins de 2019 foi canalizada das ruas para as urnas com votações medianas nos partidos tradicionais de esquerda e de direita e uma votação mais expressiva nos candidatos independentes (assim como o aumento do abstenção eleitoral) . Por um lado a direita não conseguiu barrar enquanto processo a AC diante da unidade tática entre esquerda e independentes. Porém vem conseguindo sabotar (com respaldo da grande mídia) enquanto conteúdo a AC ao incitar fragmentações nos dois campos ao afastá-los das ruas que representam. A baixa popularidade do presidente-empresário Piñera não permite ainda grandes comemorações pois ela corresponde a um aumento da extrema-direita, “surfando” na onda “anti-sistema” (tal qual vários outros países). Assim como entre a esquerda e os independentes há o desafio de manter a coesão diante da fragmentação de inúmeras novas pautas anticapitalistas (porém não-marxistas) como ambientalismo e identitarismo. Portanto, o risco de fetichizar os independentes é de tomarem a AC como ponto de chegada e não como ponto de partida, inclusive com o risco sempre latente de serem cooptados pela direita. Mas ao que me parece a pauta de desmilitarização do Estado descriminalização da militância social é uma demanda em comum fundamental aos dois campos. E também crucial para a militância torcedora.

Chile 2019
Arte de rua em Santiago, Chile, durante a insurgência social em 2019. Foto: Wikimedia

Por falar em futebol, novamente minha principal fonte de consulta será a “Revista Obdulio”. A começar por um debate concreto muito similar ao que ocorreu no Brasil quanto ao retorno do público aos estádios tendo em vista que além do respaldo científico para tal medida é preciso levar em conta a elitização dos ingressos e a restrição da festa popular.

Voltando à questão da eleição polarizada, algum alento pode ficar com a chance do candidato de centro-esquerda, Gabriel Boric, dar prioridade às profundas reformas exigidas no esporte. Vide possível revogação da Ley de SAD e do Plan Estadio Seguro. Quem aliás anos atrás como deputado foi uma importante voz de crítica à medida piñerista. Assim como o candidato indica como responsável para o tema o pesquisador Rodrigo Soto Lagos. Acrescento a essa discussão que parece haver um razoável e muito positivo consenso na esquerda dessa necessidade de politizar o esporte. Afinal o caso brasileiro mostra que quanto mais a direita o esconde da agenda oficial mais trama em bastidores para influenciá-lo.

Outro artigo tratou de propostas mais claras de como materializar o direito social ao futebol pelos seus coletivos torcedores protagonistas (já com pelo menos uma década de auto-organização em vários pontos do território chileno). Vide o lançamento de uma carta conjunta com mais de 100 entidades e encontros regulares em plenária. Vide um exemplo de definição do conceito:

“El deporte social tiene dos grandes dimensiones. En primer lugar, la comunitaria, que guarda relación con todas las interacciones sociales que se producen a través de la práctica del deporte -dentro de la cancha, en los entrenamientos, en las etapas formativas, en los encuentros dentro de la sede, en las galerías el día domingo, entre muchas otras-. La otra dimensión es la del desarrollo local o de la comunidad. En este sentido se observa la aparición de una economía en torno al deporte (indumentaria, colaciones, obras de infraestructura, por nombrar algunas), y también de redes de solidaridad entre las distintas organizaciones deportivas y vecinales para acompañarse en salud, educación, necesidades básicas, y cuanta situación surja.”

Por fim, outro artigo retoma (ainda que implicitamente) o fetiche dos independentes da AC para avaliar qual o legado do estallido social para a militância torcedora nas barras populares. As muitas imagens que rodaram o mundo 2 anos atrás de monumentos tomados por bandeiras coloridas da Garra Blanca (Colo-Colo) e Los de Abajo (U. de Chile) foram nada mais do que aquilo: uma curta trégua. O que levou a alguns olhares expressaram, com profundo academicismo, que do dia para a noite teria se criado um “neobarrismo”, como se as barras agora fossem horizontalizadas e profundamente politizadas e antes nada fossem. O que despreza a evidência concreta, e com menos repercussão midiática, que seus padrões de conflitos e roubos de bandeiras retornaram. Embora o “Revista Obdulio” siga defendendo encarar as barras como atores políticos legítimos e contra a sua criminalização. Ao menos com algum otimismo isso parece estar menos improvável de ocorrer do que antes com amplos setores da esquerda (mais ou menos institucionalizada) aderindo à disputa do “futebol social”, conforme esbocei nos últimos parágrafos. O que, mais uma vez, deve ser visto como ponto de partida e não ponto de chegada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Dois anos do estallido social chileno. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 29, 2021.
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