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Estádios de futebol, ditaduras, esperanças

Como costuma acontecer com as tradições, a de comemorar o 7 de setembro foi, por assim dizer, inventada. Data que marca o dia do Grito de Independência, imagem imortalizada pelo quadro de Pedro Américo – que mostra um Dom Pedro I com improvável elegância, dadas as condições da viagem entre Santos e Rio de Janeiro há 200 anos –, urdida na sedimentação de tantas imagens e sons que martelaram minha infância, eis o evento. Depois da desmoralização à que foram submetidas por Jair Messias Bolsonaro no ano passado, as comemorações de antes de ontem aconteceram de forma discreta. Não fosse o governador de São Paulo, Tarcísio Freitas, ter desfilado em um tanque do Exército, tudo teria sido tranquilo. O (anti)político, no entanto, prefere mostrar-se como um combatente em guerra do que como liderança razoável seu estado. Não passa de um simulacro, em uma e outra posição.

Entre tantas versões da data comemorativa, a de 1972, no Sesquicentenário da Independência, deixou-se marcar pela finalíssima do Campeonato Carioca, um torneio que à época tinha muita relevância. A final foi um Fla-Flu, o embate que, dizia Nelson Rodrigues, “surgiu 40 minutos antes do Nada”. As expectativas do Profeta foram cumpridas. Do lado rubro-negro o ataque era formado por Rogério, Doval, Caio Cambalhota e Paulo Cézar Lima. O primeiro compunha o elenco campeão mundial em 1970, tendo sido cortado por contusão já no México, mas permanecendo na delegação como observador técnico, enquanto o segundo era o Anjo Loiro da Gávea, o argentino que brilhava no Maracanã e em Ipanema, e que seria ainda jogador do Fluminense. O centroavante era um dos três irmãos carismáticos e goleadores, junto com César Maluco e Luisinho Lemos. O último dispensa comentários, era o supercraque PC Caju. Do lado tricolor estavam o goleiro Félix e o lateral Marco Antônio, campeões mundiais dois anos antes, além dos ótimos pontas Cafuringa e Lula. Soberano no meio-campo, o genial Gérson. A disputa terminou em 2 x 1 para o time da Gávea, que levantou mais um título para sua longa série de triunfos.

Se no banco flamenguista estava Mário Jorge Lobo Zagalo, treinador campeão da Copa de 1970 e que naquele ano rebaixara o jovem Zico dos profissionais para osjuvenis (como era chamada a categoria su-20), nas arquibancadas podia ser visto o Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici. Foi mais uma das aparições do ditador em campos de futebol, o que acontecia com frequência também em seu estado natal, o Rio Grande do Sul. Dizia-se ele torcedor de Grêmio e Flamengo. Não era incomum que alguém se afeiçoasse simultaneamente por um clube local e por outro do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Nos dois estados estavam, de fato, as agremiações mais divulgadas, tanto pela boa atuação técnica quanto, principalmente, pelo impulso preferencial da imprensa. Jornal, rádio e televisão levavam alguma informação, muita mentira e certo entretenimento para grande parte do Brasil, unificando o país por meio da indústria cultural. O futebol não era alheio a isso, pelo contrário, até mesmo no cinema das tardes de sábado ele comparecia, com as belas imagens e a narração grandiloquente do Canal 100.

11 de setembro. A data tornou-se famosa por causa do atentado terrorista em Nova York, em 2001. Mas, um ano e quatro dias depois daquele Fla-Flu, ou seja, na mesma data da destruição das Torres Gêmeas, mas em 1973, deu-se a instituição formal do terror aqui perto, no Chile, quando Augusto Pinochet e seus comparsas perpetraram o golpe de Estado que tirou do poder o socialista Salvador Allende. O enredo é conhecido: traidores agindo na calada da noite, prisão, tortura, morte, desaparecimento, censura, exílio etc., além instituição do binômio ditadura & neoliberalismo como experimento na América Latina. Entre os muitos perseguidos pelo regime de exceção estavam brasileiros que viviam seu exílio no país. Alguns deles foram detidos no Estádio Nacional, a principal praça esportiva chilena, palco, vejam só, da vitória brasileira na Copa de 1962. Suspenso o esporte, o espaço amplo foi preenchido com opositores do regime, detidos ilegalmente, fossem eles socialistas, democratas e ou leais ao governo democraticamente eleito. Muitos foram lá mesmo assassinados. O que passará na cabeça de jogadores e torcedores quando entram naquele lugar?

Estádio Nacional Chile
Estádio Nacional Chile. Foto: Max Montecinos.

Os campos de esportivos já foram espaços de muita dor e tristeza, para além do esporte jogado com os pés. Em Ruanda um se transformou em cemitério de mortos não identificados, resultado do genocídio de hutus contra tutsis. Mas também podem ser outra coisa, e são, na insistência do desfrute do jogo, na manifestação política avançada, em outro tipo de ocupação. Um exemplo: daqui a poucos meses, em março de 2024, completam-se 45 anos da primeira grande assembleia geral dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, realizada no Estádio de Vila Euclides. O movimento do ABC mudou a situação dos trabalhadores, mas também ajudou muito a mudar o Brasil, ao mostrar que era possível não baixar a cabeça frente a patrões e generais. Não é casual que seu líder seja hoje, em terceiro mandato, Presidente da República.

Todos os dias são de rememoração. Os que morreram sob tanta injustiça não podem ser esquecidos. Amanhã serão 50 anos do maldito golpe que pôs nos eixos capitalistas e ditatoriais um país que despontava como esperança para o continente. Como ensina Walter Benjamin, será dia de rememorar, em honra aos vencidos da história, aqui, no Chile, onde estiveram e estão esses que não deixam de ser inconformistas.

Militares chilenos vigiando prisioneiros no Estádio Nacional, em 1973
Em 1973, após o golpe de Estado de 11 de setembro que derrubou o presidente Salvador Allende, as instalações do Estádio Nacional foram usadas como centro de detenção e tortura a partir de 12 de setembro de 1973.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Estádios de futebol, ditaduras, esperanças. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 10, 2023.
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