166.18

50 tons de Renato Gaúcho: fragmentos de um treinador boleiro defendendo seu valor em um futebol super estudado

Henrique Moretto 18 de abril de 2023

Poucas pessoas na História tiveram uma estátua construída em sua homenagem ainda em vida. Renato Gaúcho é uma delas. Desde 2019, após se tornar o primeiro brasileiro campeão da Libertadores como jogador e treinador (ambos os títulos conquistados com o Grêmio), Portaluppi – como é chamado no Sul – tem o privilégio de conviver com a sua própria imagem de bronze de 4 metros de altura na esplanada da Arena tricolor. A estátua foi aprovada com voto favorável de todos os 180 conselheiros do clube.

Apesar de ser unanimemente considerado o maior ídolo da história gremista – principalmente por ser o autor dos dois gols que deram o título mundial para o time gaúcho, contra o alemão Hamburgo, em 1983 – sua competência está longe de ser unanimidade, até mesmo entre a torcida. Na verdade, sempre foi assim, desde os tempos de jogador.

Grêmio
Renato Portaluppi vendo a inauguração de sua estátua na Arena do Grêmio. Foto: Lucas Uebel/Grêmio/Divulgação

Em um vídeo dos anos 80, Renato é visto deixando o pátio do antigo estádio Olímpico sob protesto de um grupo de torcedores do Grêmio. “Fora, mercenário!”, gritavam, repetidamente, em coro. Portaluppi, sozinho, parou o carro, desceu e peitou a torcida. “O que foi?”. Os torcedores silenciaram. Renato vestia uma camiseta do São Paulo.

Em 2017, quando o Grêmio de Portaluppi enfrentou o Real Madrid de Cristiano Ronaldo na final do Mundial Interclubes, uma declaração do Gaúcho deixou boa parte do universo futebolístico perplexo: a de que teria jogado mais do que CR7. Absurda para a maioria, a tese soou plausível dentro do “Grêmioverso”, incluindo para personagens célebres como Felipão, que fora treinador de ambos (de um no Grêmio e de outro na Seleção Portuguesa). “Eu acho que o Renato jogou mais, mas o Ronaldo é mais goleador”. Já o craque português ironizou. “Há coisas que não merecem resposta. A melhor resposta é rir. Fiquei curioso em ver um pouco do currículo dele. Teve um currículo bonito”.

Ronaldo provavelmente se referia ao fato do jogador Renato ter passado apagado pela Europa – o próprio Portaluppi se referiu ao futebol italiano como “ridículo”, apesar de que o adjetivo caberia melhor para descrever sua passagem pela Roma – além de não ter tido uma atuação marcante pela Seleção Brasileira. Em 1986, quando estava em seu auge como atleta, o Gaúcho foi cortado da lista da Copa do Mundo pelo treinador Telê Santana, por mau comportamento. A história é interessante e diz algo sobre a personalidade de Renato Gaúcho: durante a preparação, ele e o lateral Leandro saíram para curtir a noite, contra as regras estipuladas – aliás, como era de praxe na carreira de Renato – e, na volta, Leandro não conseguiu pular o muro do hotel por ter medo de altura. Portaluppi, mesmo sendo incentivado pelo companheiro a pular sozinho, não o abandonou. “Ou nós dois pulamos, ou nós dois entramos pela porta da frente”. E, assim, ambos ficaram de fora da Copa.

A fama de boleiro sem muito comprometimento continuou perseguindo o Gaúcho quando ele virou técnico de futebol. Muitos jornalistas, especialmente em Porto Alegre, martelam críticas do tipo: Renato não treina sua equipe de verdade, só faz “rachão”, não cobra profissionalismo de seus jogadores, não entende de tática, não respeita a hierarquia dentro do clube. Sua resposta, habitualmente, é o confronto contra a imprensa. “As críticas indo pro lado pessoal, eu quero ver como os filhos deles vão se entender lá no colégio, porque é o que passam os filhos dos jogadores”, ameaçou, em tom excessivamente hostil, até mesmo para seus padrões, em coletiva de março deste ano. “Cuidado que pode sair do lado pessoal aqui de dentro também. E eles têm filhos que vão pro colégio. E aí, quando o filho é humilhado, como certos filhos de jogadores, não adianta ficar brabinho”. Um trecho da entrevista coletiva foi publicado por uma página esportiva no Instagram e obteve um comentário ilustre: Neymar Jr. escreveu emojis de “palminha”.

Renato Gaúcho
Foto: Lucas Uebel/Grêmio/Divulgação

Em 2020, Neymar já havia se referido ao Gaúcho como “mito” após ele responder com uma “parábola” às críticas por ter vencido o São Paulo na semifinal da Copa do Brasil com baixíssima posse de bola. “Teve um cara que levou uma mulher bonita pra jantar. Depois, levou ela pra boate e ficou até às 5h da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Aí, na boate, chegou um amigo meu e conversou com essa mulher por 15 minutos. Levou ela pro motel. Então, a posse de bola…”.

Se alguns alegam falta de profissionalismo, outros afirmam veementemente: a vida de Renato em Porto Alegre é apenas trabalho. Do hotel onde mora para o CT, do CT para o hotel. Nada de vida pessoal. Tamanha obsessão poderia ser explicada pelo sonho de Portaluppi, reafirmado ao longo dos últimos anos, de treinar a Seleção Brasileira – talvez motivado pelo fracasso como jogador em 86. Ele chegou perto de realizá-lo em junho de 2021. Segundo o jornal ‘As’, da Espanha, o ex-Presidente Jair Bolsonaro pretendia, na época, substituir Tite, visto por ele como “esquerdista”, por Renato Gaúcho, seu admirador e amigo pessoal.

Não rolou. Para a CBF, entre outras razões, faltava uma prova cabal da aptidão do Gaúcho – que poderia ter vindo alguns meses depois, caso ele tivesse conquistado mais uma Libertadores, dessa vez treinando do Flamengo. Novamente, não aconteceu: o meio-campista Andreas Pereira escorregou na final e deu um gol e o título ao Palmeiras. Junto com ele, provavelmente escorregaram as chances de Renato vir a treinar o Brasil algum dia. Ele parecia estar consciente disso em seu discurso pós-jogo no vestiário rubro-negro, que proferiu aos prantos. Ainda assim, protegeu seu jogador, como sempre faz. “Você não é o culpado de nada. Levanta a cabeça. Já tive sua idade, sei como é difícil, mas você joga muito. Só erra quem está lá dentro. O culpado sou eu”.

Renato Gaúcho
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação

Portaluppi realmente é culpado de, quando treinador do Grêmio, ter feito pouco caso do trabalho de Jorge Jesus, afirmando que, com 200 milhões investidos em contratações, “até o Stevie Wonder” ganharia títulos. Quando chegou sua vez, dos 3 títulos disputados com o Flamengo, ele perdeu os 3. Mas a culpa acaba aí. De todos os treinadores que ocuparam a casamata rubro-negra após Jesus, o Gaúcho teve o melhor aproveitamento – superando, inclusive, os campeões Rogério Ceni e Dorival Júnior.

Ainda assim, não foi o suficiente, e Renato deixou o cargo no final de 2021. Outro motivo que teria pesado contra sua permanência seria o fato dele ter supostamente entregado uma partida do Brasileirão para o Grêmio, que lutava desesperadamente para fugir do Z-4. Nessa partida, foi possível vê-lo dando conselhos aos adversários gremistas ao pé do ouvido. O Flamengo ganhava por 2 a 0 com um jogador a mais até os 30 do segundo tempo. Portaluppi fez substituições desastrosas, tirou o colorado Vitinho, autor dos dois gols do Flamengo, e voilà, o Grêmio empatou. A acusação é grave. Caso seja verdadeira, se trataria de uma das atitudes menos profissionais – mas também de uma das maiores demonstrações de amor por um clube – dos últimos tempos no futebol brasileiro.

Apesar disso, não há motivo para ciúme por parte dos flamenguistas. Declarações de amor ao Flamengo também foram comuns na vida de Renato Gaúcho, virando objeto de flauta entre torcedores do Internacional. Em entrevista de 1990, ele disse que o Flamengo “é o clube que eu amo”. Há alguns anos, no Jogo das Estrelas, evento comandado por Zico no Maracanã e que costuma contar anualmente com a participação de Portaluppi, gerou certo constrangimento a afirmação de que ele só não deixava o Grêmio pois já tinha um acordo verbal com o Presidente tricolor, mas que seu “sonho” era treinar o Flamengo. Alguns colorados brincam que ele deveria ser chamado de Renato “Carioca”. Não é exagero. Renato ama o Rio de Janeiro, onde decidiu estabelecer sua vida e constituir família. É no Rio que se sente em casa. Até o sotaque fluminense na fala ele adotou.

A verdade é que o coração de Portaluppi é grande o suficiente para que caiba mais do que apenas Grêmio e Flamengo. Em edição especial de Dia dos Namorados do programa Globo Esporte, nos anos 80, ficou famosa a participação de Renato, que citou o nome de 8 mulheres diferentes enquanto jogava flores em direção à câmera. Certa vez, também em um programa de televisão, Pelé teria cutucado o Gaúcho e provocado: “Mil gols, hein, Renato”. A resposta foi: “Cada gol seu era uma mulher minha”. Portaluppi vive uma relação aberta com Maristela Bavaresco desde a adolescência.

Renato Gaúcho
Foto: Lucas Uebel/Grêmio/Divulgação

A postura mulherenga não agrada a todos. Em 2019, após a fala homofóbica de que ele não se importaria em ter um jogador gay, mas que iria “sacanear ele de manhã, de tarde e de noite”, a torcida organizada Grêmio Antifascista publicou uma nota de repúdio. “Sua marca registrada sempre foi o jeito de “machão pegador”, personagem este indissociável do machismo. […] Renato não entende. Talvez ele não saiba, ou talvez ele simplesmente não queira entender, pois não se importa. Ficamos com o ídolo, rejeitamos a pessoa.” 

Já o jornalista Léo Gerchmann, autor dos livros “Somos azuis, pretos e brancos” e “Coligay: tricolor e de todas as cores”, minimizou em suas redes as falas de Portaluppi. “Com o Renato o tom é sempre exagerado, porque ele próprio é exagerado, fala muito, provoca, é intenso, desperta amores e ódios. Mas, enfim. Perguntem a quem o conhece. Talvez você se surpreenda. Esse cara é generoso. Tem um coração enorme. Faz muitas coisas bonitas, geralmente com baixo perfil.”

Muitos discordam, especialmente na imprensa. Em áudio de 2020, o jornalista gaúcho Guerrinha fez duras críticas ao treinador do Grêmio. “Vou dizer uma coisa a ele: dá uma chegadinha na Spaan (instituição de longa permanência de idosos), que a tua irmã está lá e tu nunca foste visitá-la. O Dunga me contou. A irmã do Renato está na Spaan. Ele nunca foi lá. Ela não pode ouvir falar no nome dele. Ele é muito arrogante.” O áudio foi vazado de uma conversa privada, gravada em uma sala de espera de consultório médico.

Afinal: arrogante ou generoso? Hostil ou protetor? Fanfarão ou compromissado? Para o ex-Presidente do Grêmio, Romildo Bolzan, de quem Portaluppi foi próximo, nenhuma das máscaras representa fidedignamente a pessoa que está por trás delas. “O Renato é um tímido. Às vezes, a pessoa cria um personagem pra se defender.”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 13 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

MORETTO, Henrique. 50 tons de Renato Gaúcho: fragmentos de um treinador boleiro defendendo seu valor em um futebol super estudado. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 18, 2023.
Leia também:
  • 178.32

    “Camisa 12”: um espaço de sociabilidade e paixão clubística na revista Placar

    Maria Karolinne Rangel de Mello
  • 178.30

    Ser (ídolo) ou não ser…

    Eduarda Moro
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim