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A cena do boxe: Pelé no Harlem (parte V)

José Paulo Florenzano 7 de maio de 2020

Em agosto de 1966, a equipe do Santos desembarcou em Nova York para a realização de uma série de apresentações nos Estados Unidos.[1] A estratégia promocional não poderia ser mais oportuna. Ela colocava frente a frente Brasil e Portugal, Santos e Benfica, Pelé e Eusébio, reeditando a rivalidade exibida durante a Copa da Inglaterra. Com efeito, os dois astros do soccer foram reunidos nos salões do Hotel Sheraton para atender à imprensa estadunidense, a qual, interessada em destacar-lhes a emulação, recordava a Pelé que Eusébio o havia “ofuscado” na Copa do Mundo recém encerrada.[2] A disputa pelo cetro de melhor atleta do mundo ganhava, assim, um novo e inesperado capítulo nos Estados Unidos.

Já o público disposto a prestigiar a partida agendada para o Downing Stadium, em Randalls Island, compunha-se em sua imensa maioria de membros das “colônias brasileira e portuguesa” o país.[3] Mas, ao que parece, eles não eram os únicos interessados nas incursões estadunidenses do time da diáspora. De acordo com o enviado especial de A Gazeta Esportiva, Orlando Duarte, o camisa dez do Santos havia despertado a “atenção da raça negra”. A comunidade do Harlem, acrescentava o jornalista, manifestara o desejo de homenagear Pelé, o qual, no entanto, impusera uma condição para aceitar o convite:

Irei ao Harlem com prazer. Mas irão comigo o Oberdã, Mauro, Gilmar, Joel, Mengálvio, Lima, isto é, pretos e brancos, para mostrar que no Brasil não há preconceito criminoso, racismo. Se quiserem me homenagear é assim, pois não servirei para dividir, ainda mais, duas raças que aqui, incompreensivelmente, continuam se batendo.[4]

Segundo Orlando Duarte, foram estas as palavras utilizadas por Pelé para responder ao suposto convite. De qualquer modo, importa-nos realçar o discurso racial que a declaração atribuída ao atleta veiculava e reproduzia através de A Gazeta Esportiva, bem como o quadro contrastivo que ela permitia estabelecer entre as sociedades brasileira e estadunidense. Sem dúvida, o golpe de Estado desfechado em 1964, no Brasil, exercera papel importante na cristalização da imagem de harmonia racial, convivência pacífica e ilha de tranquilidade que o país emitia para o mundo – sinal captado pelos observadores externos sem maiores questionamentos, a despeito da desconstrução do mito pelos estudos acadêmicos patrocinados na década de cinquenta pela Unesco. Em compensação, a radicalização crescente de setores do movimento negro nos Estados Unidos atraía a atenção da opinião pública, tanto interna quanto externa, para as contradições da democracia estadunidense, explicitando, ademais, os limites da política integracionista e o questionamento do princípio da não violência adotado pelo movimento pelos Direitos Civis.

Área situada no extremo norte da ilha de Manhattan, o Harlem abrigava uma longa história de luta e resistência, iniciada desde as primeiras décadas do século passado quando da implantação, ali, do movimento liderado por Marcus Garvey. Já nos anos vinte ela se encontrava convertida na “capital da diáspora negra”, espaço da efervescência cultural e artística nos campos da literatura, da dança, da música, em especial, do jazz, período posteriormente definido como “Renascimento do Harlem”.[5] Ao mesmo tempo, a região também se caracterizava como centro de atividade política, religiosa e cultural, constituindo-se em um termômetro importante para medir a temperatura das relações raciais no país.

“Negros rebelam-se em Nova York”. Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo, 20 jul. 1964, ano XLIV, n. 12.818, 1o. Caderno, p. 2.

O verão de 1964 prometia ser “longo e quente”.[6] Em um comício realizado em junho de 1964, no Harlem, o líder da Nação do Islã, Elijah Muhammad, fez críticas veladas ao apóstata Malcolm X e admoestações explícitas aos líderes do movimento pelos Direitos Civis, cuja crença na integração racial era objeto de escárnio dos oradores que se revezavam no palco. Presente ao concorrido comício, e concorrendo para o culto à personalidade do líder da Nação do Islã, Muhammad Ali aproveitava o ensejo para entregar ao “Mensageiro de Alá” a mesquita de ouro em miniatura que ele trouxera do Cairo.[7]  Pouco antes, um jovem suspeito de pertencer ao grupo de Malcolm X era agredido pela multidão.

Além dos conflitos nas ruas envolvendo os seguidores de Elijah Muhammad e Malcolm X, havia também a atuação de uma gangue de jovens e adolescentes negros, encarregada, segundo o New York Times, de disseminar o terror contra cidadãos brancos pacíficos.[8] Se a gangue dos Blood Brothers possuía existência efetiva, ou não, era uma questão em aberto. Já o exercício da brutalidade policial não comportava dúvida. O assassinato de um estudante negro de 15 anos, James Powell, por um policial branco de folga, transformar-se-ia no estopim de uma revolta racial sem precedentes na história do gueto, prenunciando os acontecimentos dramáticos que colocariam a sociedade estadunidense à beira da guerra civil.[9]

Os indícios de uma ruptura histórica estavam por toda parte. Em um comício promovido pela seção local do Congresso da Igualdade Racial, o orador argumentava em termos enfáticos: “Eu pertenço a uma organização não violenta”, comprometida com a campanha pelos direitos civis, “mas eu não sou não violento. Quando um policial atira em mim, eu também atiro nele”.[10] Radicalizando ainda mais a disposição combativa que se disseminava na comunidade, outro manifestante propunha como única atitude capaz de modificar o estado de coisas vivido pelos afro-americanos a “guerra de guerrilha”.[11] O princípio da não violência, arduamente defendido por Martin Luther King, começava a ser duramente questionado, perdendo espaço para a tese da autodefesa esgrimida por Malcolm X.

Sendo assim, à luz da radicalização que tomava conta do Harlem, o discurso de Pelé a favor da conciliação entre negros e brancos parecia deslocado no tempo. Aliás, podemos nos perguntar se, de fato, ele foi convidado a visitar a área-gueto de Nova York, pois, nem a seção de esportes do New York Times, nem a revista Sports Illustrated, fazem qualquer menção ao assunto. Isto, obviamente, não significa que ele não tenha recebido uma sondagem para visitar o bairro que àquela altura abrigava uma comunidade de mais de duzentos mil habitantes. Afinal de contas, como a própria Sports Illustrated admitia em uma extensa matéria sobre Pelé, ele era o atleta mais conhecido do mundo, mais até do que Muhammad Ali. A comparação também envolvia o posicionamento dos dois a respeito da questão racial. Eis, segundo o semanário esportivo, as considerações de Pelé a respeito do paralelo:

Eu sei que Cassius Clay (…) está sempre falando sobre lutar por sua raça. Eu não o criticaria, porque não sei a situação de onde ele vem. Mas no Brasil ninguém pensa assim. Eu poderia lutar pelo meu país ou meus amigos, mas não por uma cor.[12]

Suas palavras, decerto, não eram um convite à luta. Mas, conforme argumentaremos no próximo artigo, o convite para Pelé visitar o Harlem não representava uma iniciativa desprovida de sentido.


Notas

[1] A primeira partida da equipe alvinegra nos Estados Unidos foi realizada no dia 11 de junho de 1965, em Nova York, contra o Milan, empate de 1 a 1. Pelé servia, então, a Seleção Brasileira e não havia viajado aos Estados Unidos. Cf.  “Santos volta a esbarrar no bloqueio do Milan em jogo que entusiasmou Nova York”, Jornal do Brasil, 13 de junho de 1965.

[2] Cf. “Ianques empolgados com a peleja Santos x Benfica”, A Tribuna, 20 de agosto de 1966.

[3] Cf. “Santos espetacular goleou o Benfica: 4 x 0”, A Tribuna, 23 de agosto de 1966.

[4] Cf. “Papai Pelé ensina brancos e pretos nos Estados Unidos”, A Gazeta Esportiva, 24 de agosto de 1966.

[5] A formação do gueto remonta à “Grande Migração”, iniciada em 1915, dos afro-americanos da zona rural, no Sul, para as áreas industriais, no Norte. Cf. Marable, Manning (2013) Malcolm X: uma vida de reinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, p. 67.

[6] Cf. “Night of Riots Began with Calm Rally”, Paulo L. Montgomery, The New York Times, 20 de julho de 1964.

[7] Cf. “Elijah Muhammad Rallies his Followers in Harlem”, The New York Times, 29 de junho de 1964.

[8] Cf. “Whites are Target of Harlem Gang”, Junius Griffin, The New York Times, 3 de maio de 1964.

[9] Cf. “Negro Boy Killed; 300 Harass Police”, Theodore Jones, The New York Times, 17 de julho de 1964.

[10] Cf. “Thousands Riot in Harlem Area; Scores are Hurt”, Paul L. Montgomery and Francis X. Clines, The New York Times, 19 de julho de 1964.

[11] Cf. “´Guerrilla Wa`Urged in Harlem”, Junius Griffen, The New York Times, 20 de julho de 1964.

[12] Cf. “The Most Famous Athlete in the World”, Pete Axthelm, Sports Illustrated, October 24, 1966. Volume 25, No. 17.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A cena do boxe: Pelé no Harlem (parte V). Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 14, 2020.
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