O que dizemos quando dizemos que algo é complexo?

Ouvi dizer da complexidade quando começava a descobrir as coisas da vida e a vida que mora nas coisas. Foi no terceiro período de psicologia que conheci os escritos de Edgar Morin e sua teoria da complexidade, a partir de uma disciplina que tratava de métodos de observação nos campos de estudo.

Muito escrevi sobre aquilo que se aprende através das andanças, fazendo, mundiando os outros. Existe tanto do que li e estudei que só fez sentido quando senti, que já não me importo quando demoro a assimilar um conceito filosófico novo. Foi assim com Edgar Morin, compreendi a complexidade da qual teorizou quando senti as coisas que senti, ouvindo Adson falar de seus dias após a dispensa do Figueirense…

Senti a urgência e a necessidade de voltar para a teoria da complexidade de Morin, na qual escreveu:

“A complexidade impõe-se, em primeiro lugar, como impossibilidade de simplificar; […] A complexidade não é a complicação. […] A complexidade está na base” (1977, p. 344).

De repente, tudo parecia fazer sentido.

A “complexidade está na base”, disse Morin.

***

Talvez o problema da filosofia e da análise a partir de uma perspectiva intersubjetiva, é que aquilo que se pensa, é pensado distante de quem se escreve e sobre quem se escreve. Enquanto escrevo, aqui, sobre os oito jogadores-cineastas, há vida acontecendo, sonhos sendo interrompidos, corpos cansados correndo atrás de uma bola, isso tudo depois de ter dado como encerrada a pesquisa de campo. Contudo, somos pequenos universos, de coisas, de palavras, de desejos. Já não mais acredito na possibilidade de alcançar esses pequenos universos em sua totalidade, quem dirá em um tempo pré-determinado.

Quando a pesquisa acaba, a vida continua. Mas a vida me interessa, tanto quanto a pesquisa. Ao pesquisar uma vida é preciso entender que quando o tempo de observação do campo termina, a pesquisa também termina.

Ou não?

Ou sim?

Minha cabeça caminha cheia de pontos de interrogação. Faço companhia a Adson, mesmo que de longe, em sua caminhada, como quem descobre as coisas da vida enquanto anda pela cidade.

***

Nos dias passados muito se falou sobre a Copinha São Paulo, competição de maior importância para jogadores da base nos últimos anos de formação clubística. E eu, que há tanto tempo estou nesse lugar de acompanhar a formação de atletas, não me vi capaz de escrever uma palavra sequer. A todo momento chegavam novas matérias, textos, reportagens. Mas meu teclado parecia mudo.

Não consegui.

Senti uma espécie de fracasso, derrota. Ainda assim, não perdi uma partida dos meninos que dias antes dividiam suas vidas comigo. Me interessei ainda mais por tudo que havíamos gravado e produzido juntos. Me ressenti quando soube que apenas três, dos oito jogadores-cineastas, participaram da Copinha: Adson, Léo Zonta e Kauan.

Meu eu-pesquisadora havia perdido a batalha. Eu agora era torcedora, lugar da vida que não gosto de estar, pensava tê-lo enterrado junto dos que se foram em Chapecó. Ainda assim, me vi no papel de torcedora, assistindo os meninos que conheci representando o sonho de tantos outros que não puderam estar ali.

Vibrei com o gol de Adson na copinha.

futebol de base
Adison comemora gol na Copinha. Foto: Lucas Veber/L3 mídia esportiva.

Lembrei do dia em que eu, Léo Moura e o rapper Makalister, dividíamos a gravação da arquibancada durante as filmagens, ao lado dos pais de Adson, gritamos em coro quando marcou.

Parecia um gol que era de todos nós, que dividíamos o sonho junto com ele.

Pensei: é assim então que é? Essa é uma pequena amostra do que é? Pois eu sei o que senti. Eu sei o quanto pedi para os santos que eu nem sei se acredito que Adson, Léo Zonta e Kauan marcassem. Que fossem vistos do jeito que os vi. Que fossem celebrados pelo tanto da vida que deixaram de lado para vestirem as chuteiras.

Dias depois da Copinha, uma surpresa infeliz. Adson não era mais “do” Figueirense. Perguntei a Adson de quem ele era agora, ele respondeu que de ninguém. Mas demorou a assumir isso. Foram dias de conversa até que me enviasse um vídeo contando, em movimento, sobre como tem sido “estar parado”.

***

O vídeo começa com o peso da frase: ex-atleta do Figueirense.

Ex-atleta.

Na experiência de ser jogador existem marcas que não podem ser apagadas, pois fazem parte da construção do sonho. Mas como pesa dizer do que já não é, para poder dizer daquilo que ainda vive, do que se quer viver.

Observo aquilo que se mostra no que é dito e no que não é. Observo aquilo que se mostra difícil de ser dito, complexo, que aparece nas pausas de uma fala, no não olhar para a câmera, no caminhar sem rumo, apenas para poder falar em movimento. Tem coisa que não cabe no falar parado, estático. Tem coisa que só é cabível de traduzir em palavras se elas estiverem andando junto do corpo.

Adson diz:

– Logo após quando vira o ano ser mandado embora de um clube é uma situação complicada, porque você não sabe o que vai fazer. Não sabe qual é seu rumo, não sabe se clubes vão te aceitar, não sabe se as coisas vão dar certo… Então… querendo ou não é meio complicado.

Fala tudo isso enquanto caminha.

Depois complementa:

– O futebol é muito complicado, o futebol é complexo.

Se tudo isso, tudo o que narra enquanto anda pela cidade, não fosse complexo o suficiente, acrescente a responsabilidade de ter uma filha:

– A pequena depende de nós.

Continua a caminhar. Parece urgente a necessidade de andar pela cidade. De não deixar a palavra imóvel, de fazê-la movimentar. Narrar algo em movimento imprime um certo tipo de urgência no que é dito. Como se as palavras e o corpo pedissem saída, um extravasamento do que não pode mais habitar apenas o interior, precisa encontrar com o mundo para se fazer mais real.

Percebo que no futebol parece haver uma urgência ainda maior naquilo que é dito, talvez pela idade cronológica que relembra dia a dia o quanto o corpo pode menos, talvez pela urgência de poder habitar esse território de enfim ser, ser-jogador e se dizer jogador… Ou, talvez, porque sentem que só são ouvidos quando estão movimentando o corpo, dizendo com os passes, as chuteiras, as tentativas de marcar gol.

Com os oito jogadores-cineastas ouvi essa urgência de falar e uma urgência no falar, um atropelamento das palavras e dos sentidos. Arrisco dizer que só falam através do sentimento de urgência, da necessidade de falar tudo o que há para ser dito de uma vez por todas e o mais rápido possível, porque, no desejo de ser jogador de futebol existe uma complexidade intraduzível em palavras.

Sonho, desejo, profissão, família, sujeito, trabalho, vida, dinheiro e tudo mais que seja possível nomear. Um universo feito de pequenos universos de coisas e de pessoas, que carregam consigo pequenos universos de coisas e de pessoas naquilo em que desejam.

Isso é ser jogador.

Um movimento urgente e ininterrupto de movimentar-se, de fazer acontecer, de tornar real o sonho.

Morin diria que:

“[…] produzimos incessantemente emergências. […] Na nossa sociedade surge de modo humano, isto é, inumano, o problema crucial de todo o ser-máquina: a organização do trabalho. Estamos empenhados numa práxis produtiva ininterrupta, produzindo as nossas vidas, os nossos utensílios, as nossas cidades, os nossos monumentos, os nossos mitos, as nossas ideias, os nossos sonhos…” (1977, p. 339).

O problema mora justamente aí, na dificuldade de parar, de interromper, de romper com o movimento que só é movimento corpóreo.

O tempo do corpo é outro. O tempo do futebol é outro. O tempo do pensamento é outro.

Não há tempo para parar ou parar perder quando se está em um clube de futebol, mas e quando a dispensa chega? O que resta quando se interrompe? Quando a urgência passa a ser outra além de movimentar o corpo? Quando não se é mais jogador de tal clube e se é apenas aquilo que se é?

Ainda assim, não é possível parar e Adson sabe muito bem disso. É preciso movimentar-se para continuar sendo visto.

Adson finaliza o vídeo agradecendo pela oportunidade de participar do filme. Ainda caminhando, ainda em movimento.

Do que é possível desejar ao outro, desejo que Adson continue. Que continue a caminhar pela cidade, na tentativa de colocar para fora tudo o que precisa ser dito. Que continue a falar sobre a complexidade que filósofo algum poderia expressar com conceitos e teorias. Que continue sentindo a urgência de movimentar o pensamento. E que continue a marcar gols, pois eu continuarei torcendo, seja de perto ou longe…


Referências

MORIN, Edgar. O método: a natureza da natureza. Publicações Europa-América. 1977.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

MORO, Eduarda. A complexidade está na base. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 4, 2024.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães