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A Copa do Mundo de futebol de mulheres e as mudanças no mercado de transmissão

Anderson David Gomes dos Santos 8 de novembro de 2023

Desde que a CazéTV surgiu para a transmissão no YouTube da Copa do Mundo FIFA Catar 2022 de futebol masculino, reapareceu certo otimismo com novos agentes de mercado para a transmissão de jogos do futebol na internet. “Reapareceu” porque vivemos momentos semelhantes quando a plataforma DAZN começou a transmitir jogos no Brasil e, depois, com o Facebook exibindo a Copa Libertadores.

Em paralelo, a pandemia da Covid-19 acelerou processos de mudança do Grupo Globo em vários setores, o que significou redução de custos para se adequar ao novo momento concorrencial e de receitas. “O fim do monopólio da Globo” foi saudado por muitos e lamentado, ao longo dos anos, por outros tantos.

Porém, a ideia de pulverização dos jogos em outras emissoras de TV aberta ou para acesso gratuito na internet veio também com mais possibilidades de acesso pago para assistir aos jogos. Ao mesmo tempo, algumas pessoas sentiram falta do padrão tecnoestético da líder. Se a Globo, especialmente a partir de 2022, mostrou que “voltou sem ter saído” para este tipo de programa, isso não se dá da mesma forma do decênio que marcou a primeira grande briga de direitos (da Record TV ao Esporte Interativo).

Neste cenário, a Copa do Mundo FIFA 2023 de futebol de mulheres talvez feche o período de transição do ciclo de novos agentes de mercado para a transmissão do futebol com as possibilidades do streaming. Os jogos foram exibidos no Brasil pelo Grupo Globo (34 dos 64 jogos, com garantia de um por rodada na TV aberta), pela CazéTV no YouTube e no aplicativo FIFA+.

A seguir, discutimos a estruturação das barreiras de mercado para a exibição de futebol neste país e, em seguida, trazemos comentários sobre o caso específico da Copa do Mundo FIFA 2023, encerrando com considerações finais que demarcam expectativa sobre o futuro da estrutura de mercado analisada.

As barreiras de mercado para transmissão do futebol

Como relatado em Santos (2019), que trata especificamente da Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol masculino, o Grupo Globo expandiu a sua hegemonia na liderança no mercado audiovisual brasileiro também com a transmissão esportiva. Esse ciclo se inicia com a transmissão exclusiva de torneios na década de 1980 (Copa do Mundo FIFA Espanha 1982 e Copa União/Brasileiro de 1987), mas fortalece-se no final da década de 1990 e segue até meados da década de 2010.

A partir da interpretação heterodoxa para análise da concorrência, adaptada pela EPC brasileira, é importante considerar como conceito-chave para análise de dado mercado oligopolista comunicacional as “barreiras à entrada” de novos agentes ou para que um já existente alcance a liderança. O modelo de concorrência de dado mercado se estrutura, mas com as empresas buscando estratégias para manter ou quebrar as barreiras estabelecidas.

Brittos, desde estudos prévios de Bolaño (2000), opta por delimitar as barreiras de mercado comunicacionais de forma sintética, em duas formas: “estético produtiva, que envolve os fatores que diferenciam o produto, como modelos específicos artísticos e de produção, cuja obtenção demanda esforços tecnológicos, de inovação plástica, de recursos humanos e financeiros” (Brittos, 2022: 80); e as “político-institucionais”, que envolvem resultados de leis, regulamentos, fiscalização e outras decisões ou relações de ordem política que privilegiam agentes de dado mercado. Aqui, vai nos interessar o primeiro dos tipos.

A constituição do “Padrão Globo de Qualidade” para distintos produtos audiovisuais no Brasil (telenovela, telejornalismo e noticiários) se constituiu como barreira de mercado ao se estabelecer como padrão tecno-estético para o jogo de futebol transmitido ao vivo. O Grupo Globo detinha há muito tempo a transmissão dos principais campeonatos do país interclubes e entre seleções, de maneira que, conforme Brittos (2022: 80):

Esses modelos acabam recebendo a adesão dos consumidores, desencadeando uma relação difícil de ser rompida, embora isso sempre seja viável. Esse processo traduz-se no próprio produto, reunindo ainda técnicas de marketing e publicidade, bem como criando vinhetas ou embalagens, que servem para o reconhecimento do público e para estimular sua preferência.

Assim, um dos desafios para qualquer outro agente de mercado para atuar no Brasil, mesmo que tenha condição econômica de adquirir os direitos de transmissão de importantes jogos de futebol, é enfrentar a identidade criada pela Globo quanto a este programa midiático, principalmente num período em que ela era a geradora das imagens do jogo, não as entidades organizadoras da competição.

Não à toa que mesmo oriundo de uma mídia distinta (a Twitch/Amazon), Casemiro Miguel, em parceria com a agência Live Mode (Copa do Nordeste/Campeonato Paulista/torneios FIFA para o Brasil), optou por construir uma identidade com certa diferença para a líder, que possibilite reconhecimento por parte do público, mas que não se diferencia do modelo da Globo.

Se Brittos já tratava na década de 2000 que a escolha do espectador tendia a ser produto a produto, ainda por causa da oferta da TV condicionada a pagamento, o uso da internet (não sem contradições quanto à coleta e ao tratamento sobre os dados pessoais) permite melhor direcionamento sobre quem é o público-alvo daquele conteúdo, possibilitando “opções sobre o que e como veicular e investimentos para melhor fazer e divulgar” (Brittos, 2022: 135).

É a partir dessa análise de mercado que chegamos ao estágio atual do mercado de transmissão de futebol no Brasil. Não sem o Grupo Globo, como muitas pessoas imaginavam, mas sem o modelo constituído anteriormente, de exclusividade e, até mesmo, todos os jogos de uma competição para um torneio em todas as suas plataformas.

A transmissão da Copa do Mundo FIFA 2023 de futebol de mulheres

Pelo lado da disputa de mercado, vemos com a Copa do Mundo FIFA 2023 de futebol de mulheres um torneio internacional de seleções em que o Grupo Globo não transmitirá todas as partidas (nem mesmo pelo SporTV, canal de TV paga). Sobrando o pacote completo para a CazéTV, que é agenciada pela Live Mode, empresa que administra propriedades da FIFA (Federação Internacional de Futebol Associação) no Brasil; e o aplicativo FIFA+.

Isso reflete alteração importante nos custos previstos pela líder do mercado audiovisual no Brasil, que está reestruturando sua atuação nos distintos mercados e processos internos (caso dos contratos por produção na esfera do trabalho artístico, cultural e intelectual) para conseguir concorrer com os agentes de atuação internacional, sejam tradicionais como Disney, Warner Discovery e Paramount; ou oriundos de novas possibilidades tecnológicas, caso da Amazon.

Nos direitos de transmissão de eventos de futebol, prioriza-se os gastos em determinadas telas. Assim, a Libertadores voltou em 2023, mas apenas na TV aberta; o Campeonato Paulista passou em 2022 e 2023 apenas no pay-per-view Premiere; e a Copa do Brasil foi relicenciada para a Amazon Prime Video, com jogos exclusivos nesta plataforma; e outros pacotes da Copa do Mundo FIFA, seja a deste ano ou a de 2026, podem ser adquiridos por outros agentes de mercado.

O aumento de pacotes possíveis, agregado a uma retenção de mercado para investimentos após a crise econômica acelerada pela pandemia e a um crescimento de receitas abaixo do previsto fizeram com que alguns agentes não investissem em brechas que aparecem para transmissão – movimento não só aqui do Brasil, frise-se.

Assim, alguns conteúdos caminham para outros planos que envolvem, normalmente, novos agentes no mercado de agenciamento esportivo: parceria na divisão de receitas (como a Band aplica em casos como os da Série B do Brasileiro e da Fórmula 1); ou viabilização de um pacote menos custoso via internet, com venda menos cara para empresas patrocinadoras (casos da CazéTV e do recém-criado GOAT para o YouTube).

Em termos de padrão tecnoestético, como já comentado, a diferença é menor, até mesmo porque a geração de imagens é centralizada pela FIFA. A CazéTV faz pré e pós-jogos bem mais longos do que na TV aberta – esta, presa ao modelo de programação linear –, de maneira a chamar público antes da mídia voltada a bem mais pessoas e que estas possam retornar, se for o caso, após as partidas. Além disso, inclui narrador e comentaristas na tela quando há uma jogada perigosa, de maneira que o público possa ver suas reações, como pode ser observada na Figura 1 a seguir.

CazéTV
Reação da equipe da CazéTV em gol da Colômbia. Fonte: Print de Colômbia 2-1 Alemanha da CazéTV no YouTube

É importante destacar como exceção o teste da FIFA na transmissão das semifinais para incluir em tempo real na tela de velocidade da bola, trajetória das jogadoras, entre outros elementos gráficos para acompanhamento de uma partida, seguindo um modelo que a liga estadunidense de futebol (NFL) vem fazendo nos últimos anos, especialmente, para atrair as crianças.

Importante frisar que a transmissão é centralizada, então a inovação do padrão tecnoestético – neste caso, bastante critica no público por “sujar” a tela e tirar a atenção da bola no ao vivo, barreira relevante –, foi por parte da FIFA, não necessariamente da Cazé TV.

CazéTV
Grafismos na transmissão ao vivo – Austrália X Inglaterra. Fonte: Print do Terra de Inglaterra 1X3 Austrália, pela CazéTV no YouTube

Tratando-se de uma Copa de futebol de mulheres, destaca-se ainda a maior presença delas na transmissão. Na TV Globo, Renata Silveira dividiu a narração dos jogos em TV aberta com Luís Roberto, em esquema de revezamento por partida. Além dela, Ana Thaís Mattos seguiu como comentarista do primeiro time da TV aberta para jogos da Seleção – como já foi na Copa do Mundo FIFA Catar 2023.

Na CazéTV, uma das reclamações sobre a transmissão do mundial masculino foi a pouca participação das mulheres no ao vivo. Para esta Copa, vieram narradoras e comentaristas mulheres, incluindo ex-jogadoras. Isso gerou resistência do público misógino da internet e ligado ao futebol, que fez muitos comentários preconceituosos durante a primeira partida da Copa, vencida pela Nova Zelândia por um a zero contra a Noruega (Saicali, 2023). Depois disso, o chat das partidas passou por maior moderação de conteúdo.

Destaque positivo ainda para as pessoas negras, outro nível de representação que sempre fez falta na cobertura esportiva num país tão diverso como o Brasil. Como exemplo, podemos ver na Figura 2 o trio Felipe Leite (narrador), Jordana Araújo e Rafael Alves (comentaristas) na transmissão de Panamá 0x1 Jamaica, pela segunda rodada da Copa.

CazéTV
Equipe da CazéTV para Panamá X Jamaica. Fonte: Print de Panamá 0-1 Jamaica da CazéTV no YouTube

Considerações finais

Tanto as questões de representatividade social em quem trabalha na cobertura esportiva de megaeventos esportivos quanto o modelo de transmissão audiovisual na Copa do Mundo FIFA 2023 de futebol de mulheres demonstram o momento atual deste tipo de programa midiático no Brasil – com os atuais Jogos Panamericanos de Santiago 2023, tema para outros textos, reforçando isso.

No caso da estrutura atual, percebe-se uma tomada de fôlego financeiro dos agentes de maior porte, o que abre possibilidades de novas empresas e/ou um novo modelo de transmissão, em tempo que isso não significa processos revolucionários de formato, mas alterações pontuais.

É necessário considerar ainda que a transmissão ao vivo em plataformas gratuitas, ainda a TV aberta, segue sendo uma preocupação dos detentores de direitos de transmissão e patrocinadores de competições. Num país como o Brasil, a maior janela, e ainda mais democrática quanto ao acesso e à velocidade de transmissão, segue sendo esta.

O Grupo Globo já anunciou que não irá transmitir todas as partidas da Copa do Mundo FIFA 2026 de futebol masculino, que contará com 48 seleções pela primeira vez. Daqui até lá, passaremos ainda pela negociação da transmissão da Série A do Brasileiro e outras mais específicas sobre clubes e seleções da Europa se definirão (Champions League e EuroCopa masculinas). Cada estratégia precisa ser observada com atenção dentro do cenário macro da concorrência neste oligopólio que, definitivamente, seguiu para um novo modelo de estrutura.

Referências

BOLAÑO, C. R. S. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec, 2000.

BRITTOS, V. C. Estudos Culturais, Economia Política da Comunicação e o Mercado Brasileiro de Televisão. Buenos Aires: Clacso, 2022

SAICALI, L. de T. Copa do Mundo 2023: CazéTV fecha chat após comentários preconceituosos. Sport Buzz, s/l, 20 jul. 2023. Disponível em: https://sportbuzz.uol.com.br/noticias/futebol/copa-do-mundo-2023-cazetv-fecha-chat-apos-comentarios-preconceituosos.phtml. Acesso em: 20 jul. 2023.

SANTOS, A. D. G. dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Curitiba: Appris, 2019

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Anderson Santos

Professor da UFAL. Doutorando em Comunicação na UnB. Autor do livro "Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol" (Aprris, 2019).

Como citar

SANTOS, Anderson David Gomes dos. A Copa do Mundo de futebol de mulheres e as mudanças no mercado de transmissão. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 8, 2023.
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