171.14

A dança da intolerância

José Paulo Florenzano 14 de setembro de 2023

Os xingamentos de “macaco” ecoam pelos estádios de futebol da Europa desde o momento em que atletas negros começaram a participar com destaque das competições e torneios nacionais e internacionais. Entoados com maior ou menor intensidade consoante a conjuntura política, a especificidade cultural e a rivalidade esportiva de cada país, tais manifestações mantêm o esporte mais popular do planeta ancorado em uma imaginário racista cuja força se estende para além do Velho Mundo, moldando as ações também na América do Sul. [1] 

Com efeito, nos primeiros meses de 2022 as competições sul-americanas registraram um recorde de nove casos de racismo contra equipes brasileiras, refletidos em um amplo repertório de ações que incluíam a imitação de macaco, urros simiescos e bananas atiradas aos adversários.[2]  Estas manifestações não constituíam nenhuma novidade. A rigor, elas remontam a um passado não muito distante. É bem conhecido, por exemplo, o episódio ocorrido na decisão da Taça Libertadores da América de 1963 em que os atletas do Santos, dentre os quais se encontrava Pelé, foram recebidos em La Bombonera pelos coros de “macaquitos do Brasil”, proferidos em uníssono pelos torcedores do Boca Juniors.[3]

Talvez, no entanto, seja menos conhecido o fato de que Pelé também foi chamado de “macaco” nos estádios brasileiros, assim como hoje os atletas afrodescendentes continuam sendo alvo de injúrias raciais, em especial nas regiões onde predomina a extrema direita, como, por exemplo, no campo do Athletico Paranaense.[4]

Todavia, entre o passado e o presente houve uma mudança significativa no ambiente cultural dos estádios brasileiros, desencadeada pela postura combativa dos atletas negros em relação às injúrias raciais, proferidas tanto por torcedores nas arquibancadas quanto por adversários dentro de campo. O gesto do  goleiro Aranha, do Santos, protestando contra os adeptos do Grêmio que o xingavam de “macaco” durante uma partida pela Copa do Brasil, em 2014, representa um marco no processo de desnaturalização das práticas racistas que eram até então reproduzidas sem questionamento, como se constituíssem expressões naturais de uma cultura futebolística supostamente estática.

Nesse sentido, talvez a principal contribuição do caso Vinícius Júnior consista precisamente em problematizar as manifestações racistas no futebol espanhol, deixando evidente o quanto elas são intoleráveis e devem ser combatidas sem tergiversações. A problematização em questão, por sua vez, remete-nos à análise dos motivos que, segundo as palavras de um periodista espanhol, levaram Vinícius Junior a se transformar no jogador mais odiado da Espanha. As razões parecem residir em três aspectos interligados, a saber: o contexto histórico do país ibérico, a rivalidade esportiva da equipe madrilenha e a performance individual do atleta brasileiro.

A extrema-direita, na Espanha, na Itália ou nos Estados Unidos, possui como denominador comum o ódio ao imigrantes africanos, latino-americanos, muçulmanos, pobres e negros. De um modo geral, eles são acusados de roubar empregos, praticar a criminalidade e ameaçar as identidades nacionais.[5] É justamente esta dimensão identitária que o contexto ritualístico do jogo permite dramatizar, isto é, colocar em foco, dar visibilidade, reafirmando os valores, ideais e normas defendidos pela neofascismo. Além de atuar nas redes sociais, no sistema política e nas manifestações de rua, a extrema direita também almeja converter os estádios no teatro de operações dos agrupamentos mais militantes, encarregados de reiterar a distância intransponível que acreditam existir entre “nós” e os “outros”.

Nesse sentido, convém recordar o teatro macabro promovido pelos ultras do Verona, em abril de 1996, no estádio Bentegoldi. Enquanto se desenrolava a partida contra o Chievo, os torcedores extremistas, trajados com o capuz característico da Ku Klux Kan, desceram por uma corda um boneco de cor de preta, com a inscrição na camisa: Negro Go Way, em protesto pela anunciada contratação de um atleta afrodescendente.[6] Qualquer semelhança com o boneco de cor preta, pendurado em janeiro de 2023 em uma ponte da cidade de Madrid por torcedores do Atlético, não é mera coincidência.

Vinícius Jr.
Vinícus Jr. em ação pelo Real Madrid. Foto: vitaliivitleo/Depositphoto.

As rivalidades esportivas no futebol espanhol, sobredeterminadas pelas tensões regionais que pairam como uma eterna ameaça à unidade nacional, também contribuíram para potencializar o ódio a Vinícius Júnior, como nos mostra o coro de “morra” que lhe foi dedicado pelos adeptos do Barcelona no estádio Camp Nou, em março de 2023.[7] Mas, além da ascensão da extrema direita e do acirramento das rivalidades esportivas, devemos considerar, ainda, a performance do atleta brasileiro.

Com efeito, a escalada do ódio que culmina nos acontecimentos do estádio Mestalla, em Valência, tem como momento-chave a  polêmica envolvendo a dança com a qual Vinícius Júnior celebrava os gols. A partir do confronto ente Real Madrid e Mallorca, realizado em setembro de 2022, as manifestações de repúdio às danças adquiriram força inaudita, assumindo os contornos de um escândalo moral. De um modo geral, torcedores, atletas e jornalistas passaram a exigir de Vinicius Junior que ele parasse de desrespeitar os adversários, fosse com os dribles, fosse com as danças. Todavia, em vez admitir a culpa que lhe era imputada, pedir desculpas pela afronta que diziam que ele havia cometido, comprometendo-se daí em diante a atuar de acordo com os códigos de comportamento prescritos pelos agentes brancos do campo esportivo -, Vinícius Júnior veio a público para criticar os que pretendiam “criminalizar” as suas danças.

Conforme ele argumentava, as danças, inspiradas nas expressões culturais da diáspora africana: no Samba, no Funk e no Reggaeton, almejavam “celebrar a diversidade cultural do mundo”. No melhor estilo Muhammad Ali, ele postava no Instagram uma declaração que exprimia a recusa em se resignar ao papel do “bom negro” que lhe era designado: “Aceitem, respeitem ou surtem. Eu não vou parar.”  A frase, ao que parece, teve o efeito de um gancho de esquerda nos adversários, os quais, de fato, surtaram, transformando uma simples dança em uma complexa questão ligada à defesa da moral pública, do profissionalismo esportivo e da identidade nacional, como se depreende do comentário feito por Pedro Bravo, presidente da Associação de Empresários de Atletas, no programa esportivo da televisão espanhola, El Chiringuito de Jugones:

Deve-se respeitar o adversário. Quando você faz um gol, se quiser sambar, que vá a um sambódromo, no Brasil. Aqui, o que se tem de fazer é respeitar seus companheiros de profissão e deixar de fazer macaquices[8].

A estrutura de significados em cujos termos os espectadores, jornalistas e atletas costumavam interpretar o futebol-arte vem sendo modificada pela difusão de um novo esquema conceitual. [9] Durante muito tempo, os meios de comunicação europeus celebraram o calcio samba, o fussball-samba ou, ainda, o samba boys, conjunto de representações estereotipadas que situavam a dança no cerne da definição do futebol atribuído aos atletas brasileiros. No entanto, o que antes se revelava aos olhos europeus como uma arte exótica, agora, em uma conjuntura histórica cada vez mais influenciada pela difusão dos valores, princípios e ideais de extrema direita, afigura-se como uma afronta à moral e aos bons costumes da pátria. Eis a nova apreensão do futebol arte.  

Uma apreensão, aliás, não muito diferente do processo em curso no Brasil, onde os extremistas de direita, em aliança com os fanáticos religiosos, promovem a demonização do samba, do carnaval e do candomblé, dentre outras expressões da cultura afro-brasileira, com o objetivo de instaurar o reino da intolerância.  


Notas

[1] TONINI, Marcel Diego. Dentro e fora de outros gramados: histórias orais de vida de futebolistas brasileiros negros no continente europeu. 2016. 478 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

[2] “Futebol Sul Americano tem recorde de casos de racismo em 2022, aponta Observatório”, Marcelo Carvalho, 20 de maio de 2022, Observatório da Discriminação Racial no Futebol https://observatorioracialfutebol.com.br/futebol-sul-americano-tem-recorde-de-casos-de-racismo-em-2022-aponta-observatorio/

[3]“Pelé relembra pressão em La Bombonera e caso de racismo: ‘los macaquitos de Brasil’”, Vitor Pajaro, Uol, 27 de junho de 2012 https://www.uol.com.br/esporte/futebol/campeonatos/libertadores/ultimas-noticias/2012/06/27/pele-relembra-pressao-em-la-bombonera-e-caso-de-racismo-los-macaquitos-de-brasil.htm

[4] Sobre Pelé, ver Florenzano, José Paulo. “Um gesto de revolta”, Ludopédio, 4 de junho de 2020.  Sobre o racismo no Sul, cf. “Torcedor do Athletico faz gestos racistas direcionados a torcida do Flamengo na Arena da Baixada”,  O Globo, 8 de maio de 2023 https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/05/torcedor-do-athletico-faz-gestos-racistas-direcionados-a-torcida-do-flamengo-na-arena-da-baixada.ghtml

[5] Todorov, Tzvetan. “O medo dos bárbaros: para além do choque de civilizações”. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2010.

[6] Tratava-se de um protesto contra a contratação do atleta afrodescendente, de nacionalidade holandesa, Maickel Ferrier. Caso a contratação se efetivasse, ele seria o primeiro jogador negro da história do Verona. Mas a diretoria, pressionada pelos ultras, voltaria atrás, desistindo da contratação. Florenzano, José Paulo. “The Babel of Football: Intercultural Athletes and the Ultras Fans”. Dossiê História e Futebol, Revista de História, Humanitas/Universidade de São Paulo, n.163, jul./dez. 2010, pp.149-174

[7] FIGOLS, Victor de Leonardo. As transformações do campo esportivo espanhol: A globalização do futebol e o FC Barcelona entre 1975-2000. 2022. 217 f. Tese (Doutorado em História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.

[8] “Na Espanha, Vinícius Júnior é alvo de racismo e recebe apoio”, O Estado de S. Paulo, 17 de setembro de 2022.

[9] Cf. Sahlins, Marshall. “Cultura na Prática”, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A dança da intolerância. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 14, 2023.
Leia também:
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza