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A época de ouro

Marcos Alvito 7 de setembro de 2012

Pode parecer uma contradição que os homens de negócios que dirigiam os clubes não estivessem tão preocupados com o lucro assim. Isto tem que ser percebido dentro do clima ideológico vigente na época vitoriana, de marcante filantropia. A prosperidade econômica trazida pelo desenvolvimento industrial refletia-se na construção de parques abertos ao público, de prédios pertencentes ao município, sinalizando a força e a importância daquela cidade. O papel de patrono dos clubes exercido pelos membros da classe comercial e industrial fazia parte desse movimento de orgulho cívico.

A filosofia da Football League, embora permeada por valores comerciais que causavam escândalo aos puristas da Football Association, jamais foi de largar o futebol ao sabor das forças do mercado – isso só aconteceria muito tempo depois, no final do século XX. Havia toda uma preocupação em respeitar os clubes enquanto agremiações que representavam uma comunidade. Em 1896, o presidente do Aston Villa disse claramente: “eu não gostaria que o clube se tornasse puramente uma máquina de fazer dinheiro”. Quando 30 mil pessoas pagam ingresso para ver o clássico de Sheffield, Wednesday x United, o Athletic News comenta que esperava que nenhum indivíduo lucrasse com aquilo e que os recursos gerados fossem aplicados para o avanço do futebol em Sheffield.

Dentro deste ideal, foram tomadas medidas para tentar equilibrar a competição entre os clubes e ajudá-los a se manter. Muitas vezes a Football League era descrita como uma “família” ou como uma “sociedade de amigos”. Um dos seus dirigentes descrevia a proposta da Football League como a proteção mútua visando “limitar o poder dos clubes mais fortes”. A principal medida igualitária tomada pela Football League, além de abraçar o teto salarial e o sistema de transferência propostos pela F.A., foi a divisão da renda entre os clubes. Ou seja: quando um clube “pequeno” jogava contra um clube poderoso e de grande torcida no campo deste último, a renda era compartilhada entre os dois clubes. Como o campeonato era todo à base de jogos de ida-e-volta, havia uma verdadeira redistribuição de renda entre os clubes. Este sistema garantia a sobrevivência e a relativa saúde financeira de clubes baseados em comunidades menores ou menos prósperas. Como sobreproduto, aumentava o grau de competição dentro da liga, tornando os campeonatos mais emocionantes, trazendo mais público e gerando mais renda. Era o típico círculo virtuoso.

Apesar disso, é claro que os clubes situados nos maiores centros urbanos, sobretudo onde havia produção industrial de monta, levavam vantagem. Os clubes que dominaram a liga antes da Primeira Guerra Mundial encaixavam-se neste perfil: Aston Villa (de Birmingham), Everton (de Liverpool), Sunderland e Newcastle. Mas o importante é que o sistema como um todo funcionava e o público do futebol não parava de crescer. Entre meados da década de 1890 e 1905, o número de torcedores pagando ingresso nos campeonatos da Football League passa de 2 para 6 milhões, ou seja, triplica em uma década. Por isso o futebol começa a ser chamado de The People’s Game, “o jogo do povo”.

Explicar a popularidade do futebol sempre foi um desafio. No caso da Inglaterra, o ponto-chave é entender o seu valor para a classe operária. Em uma época de grandes transformações, com milhões de pessoas migrando do campo para as cidades e tendo que reconstruir suas vidas, seu círculo de amizades e seu sistema de valores, o futebol era crucial. Ele permitia estabelecer novos vínculos, sobretudo entre os homens, recriando identidades e solidariedades em torno de um clube que passava a representar uma comunidade determinada. Jogado ou assistido, o futebol era o principal lazer dos trabalhadores, mas ia muito além disso. Nele estavam inscritos valores específicos da classe operária, como o espírito de equipe e a dureza necessária para enfrentar os desafios do dia-a-dia. Cimentava os laços masculinos e permitia marcar ainda mais as diferenças de gênero, pois as mulheres eram praticamente excluídas desse universo.

Até a evolução das regras do jogo reflete essa transformação do futebol naquilo que o historiador inglês Eric Hobsbawm chamou de “a religião laica da classe operária”. No primeiro código elaborado pela F.A., a regra número 6 estabelecia que todo aquele jogador que estivesse mais à frente que a bola estava “out of play” (fora de jogo). Ou seja, na prática, só se podia passar a bola para trás, nunca para frente. Isso impossibilitava os lançamentos e as tabelinhas. Só havia uma tática: pegar a bola e sair driblando pra frente até o gol. Era um jogo altamente individualista. Conta-se que um cavalheiro, instado pelos seus companheiros de time a passar um pouquinho a bola, teria respondido que jogava simplesmente para o seu prazer. Ou seja, de início, a forma como era jogado o futebol representava os valores nada coletivistas da classe dominante.

Torcedores do Arsenal em 1936.

Felizmente, já em 1866 é estabelecida a “offside rule” (regra do impedimento), estabelece que a bola podia ser passada à frente para um jogador, desde que ele tivesse entre ele e o gol pelo menos três jogadores adversários, número que cai para dois em 1925. Com isso desenvolve-se o jogo de passes, em que o conjunto da equipe torna-se mais importante do que o valor individual. É bem possível que o primeiro objetivo da mudança da regra tenha sido somente diferenciar ainda mais o Association Football do Rugby, onde até hoje a bola só pode ser passada para trás. A transformação do estilo de jogar não foi causada e sim permitida pela regra. Se o “dribbling” foi substituído pelo “passing game”, isso se deve à penetração dos valores operários. A própria disposição tática das equipes, com o estabelecimento de posições específicas, pode ser vista como um reflexo da divisão de trabalho predominante no ambiente da fábrica.

Dribbling game.

Na década de 1880, os clubes que haviam adotado o “passing game” tornam-se dominantes. O pioneirismo coubera às equipes escocesas. Em 1881, o Queen’s Park visita o Aston Villa e o jogo coletivo dos escoceses recebe altos elogios:

“cada jogador estava no seu lugar no momento certo. Os backs (defensores) e half-backs (meio-campistas) jogaram esplendidamente… Os forwards (atacantes) também formam um grupo magnífico, com dribles curtos e passes maravilhosamente precisos, enquanto nenhum deles demonstrava qualquer traço de egoísmo.”

Ser jogador de futebol passou a ser um sonho de quase todo filho de família operária. As vantagens materiais existiam e muitas vezes a carreira de jogador profissional, permitia melhorar de vida, embora não enriquecer, devido ao férreo teto salarial. Não havia garantias e o fantasma de uma contusão séria estava sempre presente: um quarto dos jogadores sofriam contusões de joelho que acabavam por afastá-los definitivamente dos gramados. As carreiras terminavam em média aos 28 anos. Era um trabalho duro e perigoso, dotado da mesma aura de virilidade do trabalho nas minas, nas fábricas ou nos portos. Até o final da década de 1950, o jogador de futebol, em atividade ou aposentado, era membro de uma comunidade, na qual era respeitado e admirado, às vezes até com fervor, mas no fim das contas era visto como uma pessoa comum, não como uma estrela. Eles viajavam de trem para os jogos, misturavam-se aos torcedores no pub, viviam no mesmo bairro que os outros trabalhadores.

Essa identificação quase perfeita entre o futebol e a classe operária refletia-se em um crescimento extraordinário do público presente aos estádios. Entre 1911-1912 e 1938-1939, a média de público nos jogos da primeira divisão da Football League passou de 17.000 para 30.600. Durante a Segunda Guerra Mundial, o futebol não foi interrompido de todo, mas havia apenas competições regionais, sem o mesmo apelo do campeonato da liga e da F.A. Cup. De qualquer forma, pode-se dizer que esta presença do futebol contribuiu para manter uma impressão de normalidade, a despeito de jogos interrompidos por conta de ataques aéreos e de jogadores impossibilitados de comparecer às vezes terem que ser substituídos por alguém que viera assistir ao jogo.

No pós-guerra, são retomadas todas as competições e o campeonato da liga voltaria com toda a força, registrando médias de público acima de 40 mil espectadores na primeira divisão. Em uma Inglaterra devastada pela guerra, o retorno das competições nacionais fazia parte de um sentimento de reconstrução e de congraçamento do país. A Copa da Inglaterra, suspensa desde 1939, retorna em 1946 com um público de quase 100 mil pessoas. Antes da final entre Charlton e Derby, a multidão presente canta de forma lenta e emocionada Abide with Me, um hino religioso, que pedia a Deus para ficar ao seu lado no momento em que “a escuridão se aprofunda”. Era um agradecimento coletivo por terem sobrevivido àqueles anos tenebrosos. O futebol era um sinônimo da esperança em melhores dias. Por conta dessa “fome de bola”, o público total  chegou a alcançar o recorde de quarenta e um milhões em 1948-1949. Para se ter uma ideia, nos dias de hoje, mesmo com todo o sucesso da Premier League, o público total das quatro primeiras divisões do futebol inglês está por volta dos vinte e nove milhões.

Uma mola propulsora para o crescimento do futebol sempre foi a imprensa. Em 1879, o semanário Athletic News, criado em Manchester, já publicava uma coluna específica sobre a temporada de futebol, além resultados e reportagens acerca das partidas. A popularidade do futebol, por sua vez, impulsionava as vendas dos jornais e semanários. O Athletic News, por exemplo, começa a ser vendido em quase todo o país (e também na Escócia), com tiragens cada vez maiores, chegando a quase duzentas mil cópias em 1896. Com a ajuda do telégrafo e depois do telefone, bem como em métodos de impressão cada vez mais desenvolvidos, multiplicam-se os jornais baratos dedicados a publicar os resultados das partidas poucas horas depois de terminada a rodada.

Além dessa imprensa especializada, os jornais diários começam a dedicar cada vez mais espaço ao futebol. Até o conservador The Times, que torcia o nariz para o futebol profissional, começa a publicar relatos completos acerca dos clubes da Football League a partir de 1915. Todo um setor de imprensa mais popular desenvolveu-se graças ao futebol, ao mesmo tempo em que favorecia sua divulgação junto ao grande público. Em 1920, o Daily Mail, sozinho, vendia mais de um milhão de cópias diariamente. Em 1940 o Daily Express chega a 2,6 milhões de cópias. O futebol era central para esse tipo de publicação.

A partir da década de 1920, com a invenção do rádio, outro poderoso meio de comunicação favorece a penetração e o crescimento do futebol. A BBC começou a cobrir o futebol desde 1927 e a transmitir a final da F.A. Cup ao vivo desde 1933. A Football League se opunha à transmissão dos jogos por medo de um impacto negativo sobre as bilheterias, da mesma forma que depois iria se opor ao televisionamento. Mas a entrada do futebol na programação da BBC selaria de vez o prestígio desse esporte como parte dos rituais públicos da nação. A final da Copa da Inglaterra era uma data cívica, sobretudo a partir de 1923, quando começa a ser realizada em Wembley, o mesmo estádio onde a seleção inglesa passa a jogar.

Enfim, podemos dizer que o sistema criado pela Football League funcionou com surpreendente estabilidade e bastante sucesso até o início da década de 1960, quando uma avalanche de transformações iria mudar para sempre a face do futebol inglês.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. A época de ouro. Ludopédio, São Paulo, v. 39, n. 2, 2012.
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