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A flecha foi lançada: as contribuições da literatura-terreiro nas narrativas do futebol brasileiro

Melina Sousa da Rocha 18 de agosto de 2021

Cotidianamente, seja em nossas telas, ou nos estádios, o futebol permeia nossas narrativas de existência. Ritualisticamente, nos encontramos poeticamente com a paixão efusiva a cada gol feito ou perdido, a cada vitória ou perda. Transmitida em nossos corpos, a linguagem do futebol também se expressa através da espiritualidade. Aquela “fezinha” firmada no terço, na vela e em diversas simpatias percorrem as nossas narrativas com o futebol. Coisa de Exú, com certeza. O brincalhão que organiza e desorganiza tudo, aquela virada inacreditável, o gol perdido, em tudo está Exu.

A literatura- terreiro se propõe a romper com a tradição grafocêntrica da literatura, que busca formatar e enquadrar a poesia como algo rígido e branco, longe das artimanhas, mandingas e malemolências da nossa tradição. Se eles acreditam na escrita, acreditamos que em nossas pernas e pés, o caminho está sendo construído e desconstruído por Exu. Sim! Desses arranjos literários que branco não manja, sacou?  Antes mesmo da literatura clássica ser consolidada pelos colonizadores, o pindorama tecia sua literatura nas narrativas e práticas indígenas. Com a vinda forçada dos africanos, em condições de escravidão, chegam também diversas práticas de ser e existir.

São práticas sociais e culturais que configuram a literatura-terreiro. A oralidade nas narrativas de itans e histórias compartilhadas entre as gerações simbolizam um continuum das formas de ser africanas e negras na diáspora. Sendo assim, o futebol como prática social e cultural do povo brasileiro também está permeado de mandingas estratégicas de nosso povo negro.

Neste sentido Paulinho, Paulo Henrique Sampaio Filho, ao comemorar o quarto gol da vitória do Brasil sobre a Alemanha nas olimpíadas, saltou e atirou com a flecha do caçador, que pertence ao orixá Oxossi, quem governa seu Ori. Ao lançar a flecha, Paulinho também lançou umdebate crítico diante do racismo religioso existente na sociedade brasileira. Poeticamente, ao representar o caçador e rei das matas, e ao evocar Exu para iluminar a seleção brasileira, o jogador acionou a literatura terreiro como forma de reivindicar a sua existência. Foi tipo assim:

– Tô aqui viu, junto com Oxossi.  

Paulinho
Foto: Lucas Figueiredo/CBF/Fotos Públicas

A narrativa de Paulinho confronta a narrativa hegemônica, em que jogadores demonstram livremente a religiosidade cristã nos campos. Quem não se lembra da clássica foto do atacante Neymar com a faixa na cabeça, em que continha a frase 100% Jesus, nas olimpíadas de 2016? Na ocasião o comitê Olímpico Internacional (COI) chegou a sondar a possibilidade de advertir o jogador, mas entendeu a manifestação como um deslize.  

Neymar
Final Futebol Masculino Brasil x Alemanha no Maracanã. Foto: Roberto Castro/Brasil2016.

Nas competições brasileiras é comum haver comemorações que apontam aos céus, com sinais da cruz feitos com as mãos, ou como o goleiro Everson, goleiro do atlético mineiro, que colocou um crucifixo em seu gol na partida decisiva contra o Boca Juniors. Jogadores de Futebol em todo o Brasil tem evidenciado sua dimensão cristã, fator que reflete um país cada vez mais cristão, onde o racismo ofende e silencia outras cosmovisões e literaturas. A narrativa de Deus acima de todos parece valer bastante para alguns sujeitos que não querem que outros tenham o direito de existir.

Paulinho traz a afirmação da sua religiosidade como uma afirmação do seu modo de vida, orientado pela tradição oral dos orixás. Ao trazer essa visibilidade, ele se posiciona em confronto com o racismo religioso, que se expressa através de violências diretas aos terreiros e adeptos das religiosidades afro-brasileiras, mas também através do apagamento e silenciamento dos sujeitos dessas cosmovisões. Ao assumir publicamente, em um espaço majoritariamente cristão, sua forma de viver, Paulinho atira a flecha para nos questionar: onde está o povo de terreiro nas equipes de futebol? Porque tanto medo de assumir sua devoção?

A explicação se dá no preconceito presente na sociedade brasileira contra os adeptos das religiosidades afro-brasileiras. A colonização portuguesa não dá brechas. Assim como buscou consolidar, a literatura a partir de sua visão imperialista e covarde, os portugueses imporão o catolicismo de forma bruta, através da tentativa de anulação cultural de africanos, negros e indígenas. Esses povos, porém, a partir das encruzilhadas, produziram uma cosmopolítica capaz de transformar e criar novas formas de culto à ancestralidade. Nesse sentido é importante considerar que, mesmo com a imposição do catolicismo no Brasil, os povos de terreiro seguiram realizando suas práticas, herdadas pela descendência africana, construindo novas formas de fazer e ser. Foi assim que São Sebastião foi sincretizado como Oxossi, apesar de não sê-lo.

Nesse sentido, o ofá[1] nos traz de volta a década de 80, no Rio de Janeiro, mais precisamente para o Flamengo. Na ocasião, Luís Pereira, o “Chevrolet”, havia desembarcado no Brasil vindo da Espanha. Ele deixava o Atlético de Madrid para integrar a zaga do time Carioca. O jogador, que era conhecido como o zagueiro que marcava gols, ostentava em seu pescoço, uma guia do orixá Oxossi.  Em reportagem de Ney Bianchi para a revista Manchete, o autor destaca a fé e o símbolo do atleta, atribuindo a Oxossi o fato do jogador “jogar sempre bem, mesmo fora de forma”, pois ele “caça a bola, o adversário, a vitória e chega a craqueza que Deus lhe deu.” O autor conclui o artigo provocando Telê Santana, o técnico na ocasião: “Que mais Telê pode querer? Pelé? Já Era”.

Foto: Reprodução

A guia do orixá Oxossi era a marca do jogador baiano, que também compôs o elenco de times como Palmeiras e Santo André. O jovem Paulinho, de 21 anos, por sua vez, ainda inicia uma longa carreira. Hoje ele pertence ao Bayer Leverkussen, mas iniciou no Madureira e passou de 2010 a 2017 no Vasco da Gama. No depoimento nomeado “Que Exu ilumine o Brasil, o jogador traz uma narrativa emocionante de sua vida, perpassando por sua infância junto com o irmão Romário, o amor ao Madureira, e ao orixá Oxossi. De fato, Paulinho foi extremamente importante para o ouro Brasileiro, e Luis Pereira, no auge dos seus 72 anos deve ter se orgulhado do menino que atirou contra o preconceito e reivindicou o direito de manifestar sua “filosofia de vida”, como Paulinho mesmo define.

Filhos de Oxossi são assim. Vitoriosos e valentes, desses que acertam em cheio o alvo. No Brasil é preciso acertar em cheio o racismo religioso e desconstruir a hegemonia do discurso cristão, que demoniza e criminaliza as narrativas e cosmovisões afro-ameríndias. A liberdade religiosa precisa ser defendida em meio às frequentes ameaças de democracia do país, tema que não foge das falas de Paulinho. A discriminação religiosa no Brasil possui uma dimensão racial, que só pode ser combatida através do enfrentamento. Que Exu, senhor do movimento e da transformação, possa poetizar mais corpos de jogadores.

Quem sabe em breve teremos pedidos no fantástico de domingo, de pontos para Exu, Iansã e Oxossi? Que Exu ilumine o futebol brasileiro!

Notas

[1] Nome em Yorubá que designa a ferramenta utilizada por Oxossi: O arco e a flecha. Em um dos tantos itans, Oxossi salvou sua aldeia após acertar um pássaro, enviado por feiticeiras e que estava trazendo mazelas para a comunidade.

Referências

Freitas, Henrique. O arco e a arkhé: ensaios sobre literatura e cultura. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2016.

Bianchi, Ney. A volta do dono da bola. Revista Manchete, nº1.484, ano 29. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1980.

Paulinho. Que Exu ilumine o Brasil. [entrevista concedida ao The Players Tribune]. Jul. 2021. 10 de agosto de 2021.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

ROCHA, Melina Sousa da. A flecha foi lançada: as contribuições da literatura-terreiro nas narrativas do futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 34, 2021.
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