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Futebol e Religião: a fé e o reconhecimento ao rei

Amarildo da Silva Araujo 30 de agosto de 2023

Futebol e religião marcam, significativamente, o cotidiano e a cultura brasileira. Devido essa ligação muito se fala do futebol enquanto uma paixão nacional, como se fosse uma religião. Embora pareça ser um contraponto com a racionalização do mundo e a refinada tecnologia digital, hoje presente dentro e fora das quatro linhas do gramado, a religiosidade, a paixão, a fé, a crença e a esperança estão, efetivamente, presentes no universo do futebol.

Pretendo apresentar algumas aproximações entre o futebol e religião, a partir da consagração a um reinado, explorando como um fenômeno está ligado ao outro, ou seja, o futebol entremeado com as singularidades religiosas. Procuro demostrar que devotar um jogador de futebol o reconhecimento de Rei, não se restringe simplesmente a uma escolha. Apresento o caso do Clube Atlético Mineiro, como ilustração.

A expressão “Reino dos Céus” é utilizada em diversas passagens no Velho e Novo Testamentos da Bíblia Sagrada: “A participação no reino dos Céus[1] exige uma devoção ao Rei que poucos atingirão”. A entrada nesse Reino requer uma entrega, que a maioria dos homens encontrarão dificuldades e não conseguirão chegar a alcançar essa dádiva. Dentre inúmeras interpretações das escrituras entende-se esse Reino como um mundo sobrenatural, que está para além do material, sendo a ele atribuído uma dimensão superior e sagrada.

O Rei Davi[2] e o Rei Salamão[3] são alguns dos nomes bíblicos, representantes de como a palavra Rei é parte ao universo Divino. Dentre outros atributos, eles apresentavam “forças” extraordinárias que os diferenciavam dos homens comuns. Assim, por analogia, não é por acaso que, elevar um jogador de futebol a uma ordem superior desperta o imaginário do torcedor. Posto que existe algo incomum, desumano, “mágico” e sacro, que ultrapassa o mundo físico, sendo esse panteão destinado a poucos.

Para alcançar o reinado, não há um caminho determinado. É caminhando que se constrói o trajeto até a porta do Céu. O que indica que não há um único caminho e nem apenas uma maneira de percorrê-lo. Porém, não é qualquer indivíduo (jogador) que consegue ser desumanizado para ser divinizado e subir aos Céus. É preciso ser diferenciado. Esse Reino é somente para o(s) bem(ns) venturado(s), sendo creditado ao REI a esperança de fé, que por meio do seu talento, da sua magia e dos seus pés possa trazer para a sua morada a vitória.

De acordo com Casé (2021, p 2) os jogadores com “suas trajetórias em determinados clubes é que vão lhes garantir esse status junto à torcida”. Certamente, é preciso que haja o reconhecimento daquele que atribui ao outro um reinado, ou seja, é imprescindível que o torcedor conceda e legitime a consagração de um jogador a Rei. Dirigentes, treinadores, radialistas e outros profissionais não são os protagonistas dessa atribuição. Podem até oferecer o reinado, porém cabe ao torcedor e/ou a torcida a consagração e o seu reconhecimento “eterno”.

Dadá Maravilha
Dadá Maravilha. Foto: Wikipédia

No caso do Atlético Mineiro, o ex-jogador chamado de Rei Dadá, Dadá Maravilha[4] ou Dário Peito de Aço, não ficou marcado como o rei maior nesse clube. Ídolo no Galo Mineiro, foi campeão brasileiro em 1971 e jogou em mais de uma dezena de clubes pelo Brasil. Tornou-se um dos mais folclóricos jogadores da história do futebol brasileiro. Mesmo sem ter muita técnica, Dadá Maravilha foi um grande goleador e chegou a servir a Seleção Brasileira na Copa de 1970. Embora tenha méritos, carisma, se auto denominou como Rei Dadá, simbolicamente. O que mais caracterizou a sua imagem foi o aspecto folclórico que ele construiu ao longo de sua carreira, dentro e fora dos gramados.

Em meados dos anos de 1970, o Atlético revela um jogador talentosíssimo. Possuidor de uma técnica refinadíssima e um faro de gol que o levou a ser o maior artilheiro de todos os tempos do clube com 288 gols. Rei, Rei, Rei, Reinaldo é o nosso Rei era profetizado e entoado pela torcida durante a saudação, na entrada do time em campo, nas jogadas geniais e nos gols marcados. Coincidência ou não, ele trouxe no nome de batismo o prefixo para se tornar rei. Do ponto de vista da linguagem, seu nome, favoreceu a identificação com o título recebido. José Reinaldo de Lima foi consagrado e prevalece reconhecido como Rei do Galo e Rei do Mineirão pela torcida e pelo meio futebolístico.

Reinaldo Atlético-MG
Fonte: Atlético / Divulgação

Ao contrário, dois jogadores Renaldo Lopes da Cruz, que jogou de 1993 a 1996 e Reinaldo Rosa dos Santos 1993 a 1995, com nome de batismo, respectivamente, semelhante e igual ao do Rei maior, tiveram grandes momentos no Galo Mineiro e provavelmente as melhores fases de suas carreiras. Na época houve um burburinho na imprensa esportiva para elevar o nome desses jogadores como possíveis sucessores do ídolo Reinaldo de Lima. Porém, apesar de serem bons jogadores, estiveram distantes de ocupar esse lugar, pois a torcida não os reconheceu como Reis.

Outra forma religiosa de reconhecimento incorporada ao futebol é a santificação, que também faz parte da história do Atlético. Em maio de 2013, num jogo decisivo para o Galo avançar na Copa Libertadores, durante os instantes finais da partida, foi marcado um pênalti para o clube adversário. O goleiro Victor passou de herói a santo. Após fazer uma defesa milagrosa com os pés ele foi santificado e reconhecido pela torcida, sendo chamado de São Victor. O nome do santo católico e o contexto da defesa favoreceram a atribuição do título ao jogador. Com essa defesa, simbolicamente, ele mandou para a “lanterna dos infernos”[5], todas as disputas de pênaltis perdidas pelo time mineiro, inclusive quando perdeu a final do Campeonato Brasileiro de1977 nos pênaltis. Victor recebeu a bola autografada pelos companheiros de time, que virou o seu talismã[6], o que é um indicativo de diferentes formas simbólicas, materializadas das crenças nesse esporte.

O futebol nos mostra que não existe somente reis, santos, ídolos, heróis, mitos e lendários, há espaço para múltiplas crenças, supostamente até negativa, pois maltratam e destroem o adversário com jogadas magníficas e gols salvadores. Assim, em um outro viés temos um mago, Ronaldinho Gaúcho – o Bruxo[7] ou simplesmente Ronaldinho Bruxo, que também é conhecido pela nação atleticana como R49, número da camisa escolhido por ele. Fez jogadas mágicas, nunca realizadas por outro jogador. Conquistou a Copa do Mundo em 2002 e foi eleito melhor jogador do mundo pela FIFA, em 2004 e 2005. Campeão Mineiro em 2013, da Copa Libertadores 2013 e da Recopa Sul-Americana 2014, manteve o reconhecimento pela massa atleticana como Bruxo, pela magia e encantamento do seu futebol, com passes, dribles, gols, cobranças de faltas e a expertise dentro das quatro linhas.

À escala planetária, Edson Arantes do Nascimento foi considerado o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Consagrado mundialmente como Atleta do Século, por ser um jogador acima da média e efetiva qualidade técnica superior aos demais, encantou o mundo com seus dribles, passes, jogadas, chutes e gols. Nenhum jogador da história chegou perto de reunir e combinar harmonicamente os recursos técnicos, físicos e cognitivos como ele (RODRIGUES 2020).

Homenagem ao Pelé
Santos homenageia Pelé na estréia do Paulistão 2023 na Vila Belmiro. Foto: Ivan Storti/Santos FC.

Segundo Casé (2021) não faltaram, em todos esses anos, livros e filmes sobre Pelé. Foram destinadas a ele várias publicações, inclusive escritas por autores estrangeiros. Pelé é reconhecido como Rei, não somente pela torcida do Santos Futebol Clube (onde originou o seu reinado), bem como pelos torcedores, jogadores, imprensa e outros atores do meio futebolístico no Brasil e no mundo. Assim, seus feitos evocam a ideia de só quem faz algo aparentemente desumano atinge uma condição suprema, o que demonstra que a relação entre esses dois campos marcantes da nossa cultura (futebol e religião) carece e requer aprofundamentos, pois parece ter muito a nos revelar.

Notas

[1] Ver mais sobre o Reino do Céu. Disponível em: https://portaldori.com.br/2018/02/19/o-reino-dos-ceus-pertence-aos-que-sao-semelhantes-as-criancas-amilton-alvares/ Acesso em: 9 Abr. 2023.

[2] Ver mais sobre o Rei Davi. Disponível em: https://www.ebiografia.com/davi/#:~:text=Era%20o%20oitavo%20filho%20de,C Acesso em: 9 Abr. 2023.

[3] Ver mais sobre o Rei Salomão. Disponível em: https://www.ebiografia.com/salomao/#:~:text=Rei%20de%20Israel,-Depois%20da%20morte&text=Apesar%20de%20sua%20juventude%2C%20era,Eufrates%2C%20at%C3%A9%20a%20fronteira%20eg%C3%ADpcia Acesso em: 9 Abr. 2023.

[4] Para ver mais sobre esse jogador. Disponível em: https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/dario-o-dad-e1-maravilha Acesso 9 Abri. 2023.

[5] Para ver mais sobre esse assunto. Disponível em: https://tntsports.com.br/blogs/Sao-Victor-do-Horto—Sete-anos-depois-20200530-0010.html Acesso em: 5 Abr. 2023.

[6] Para ver mais sobre esse assunto. Disponível em: https://www.otempo.com.br/superfc/atletico/dia-de-sao-victor-10-fatos-que-voce-talvez-nao-saiba-sobre-a-defesa-1.2674938 Acesso em: 5 Abr. 2023.

[7] Para ver mais sobre esse assunto. Disponível em: https://futeblog.com.br/ronaldinho-gaucho-bruxo-por-que-ele-tem-esse-apelido/ Acesso em: 9 Abr. 2023.

Referências

CASÉ, Rafael.  A “máquina do tempo” de Pelé. Esporte e Sociedade, ano 13, n. 33, agosto 2021.

RODRIGUES, Sérgio. Pelé e a glória do mundo. Folha de SP, 21/10/2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Amarildo Araujo

Professor de Educação Física, Mestre em Estudos do Lazer e membro do Grupo de Estudos de Futebol e Torcidas GEFuT).

Como citar

ARAUJO, Amarildo da Silva. Futebol e Religião: a fé e o reconhecimento ao rei. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 30, 2023.
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